terça-feira, 21 de setembro de 2021

Sobre Teatro, em novoslivros.pt, 21.IX.2021

 1-Depois da ficção, como surgiu o teatro no percurso da sua escrita?

R- Escrevi a primeira peça em Setembro de 1973, meses depois de me estrear com um livro de versos, e, já, com os primeiros contos à espera de edição. Nestes, as dificuldades da vida rural e dos pequenos ofícios, no Nordeste, conduziam à emigração, que saldava um passado de dívidas. Mas resolver a economia familiar era insuficiente, e solução passageira, se o país não se perguntava sobre outras saídas: por isso, exigia-se liberdade de expressão, que a polícia persegue na figura de filho universitário. Tal como “A pedra” do título sufoca um pai emigrante, doente e sem futuro, assim cresce a revolta colectiva, após o funeral, resumida num letreiro: «Queremos respirar!» Eis como, da ficção assente em quadros ou cenas, com treino em diálogos (o que fez com que a quarta peça  [1977] fosse por mim lida, primeiro, como conto, editado em A Flor e a Morte, 1983), vim a um teatro político, mais interventivo após o 25 de Abril.   

 

2- Quais são as principais linhas temáticas das suas peças?

R- Da denúncia e reivindicação de um direito passei à hipótese de uma comunidade democrática, mau grado vícios que diríamos segunda pele (Faca no Sol, 1974-1975). Era um teatro hierático, pausado, contra a maré, em dias agitados. Daí, O Golpe (1975), neste ano de todos os possíveis, também na cena internacional, entre golpes e contragolpes, quadros soltos, sarcasmo, liberdade total ao encenador (como, aliás, em quase todas as peças). Esse teatro de guerrilha, confrontando poderes, criava um impasse, resolvido na violência de Guerra Civil (2019), que todavia, situei em cenário fratricida árabe. Já o modo como o Poder se mantém – entre mentira, manipulação, crime e ridículo, responsabilizando os meios de comunicação e comícios de sono – inspirou Sábado (2012-2013) e Doença (2016-2017). Assim, seis das onze peças entrevistam facetas do Poder. As outras debatem relações interpessoais e as síndromes que escondemos (Jardim, 1977; Acidente, 1998-2000; Delírio, 2015). Salientaria O Divino (2002), em que perpassam vidas nos últimos momentos de Almeida Garrett. Síntese destas interlocuções e de novos poderes que nos afectam é a derradeira, Pandemia (2020): sonhando-se romance com seis personagens (em que estas aparecem segundo a lógica da sextilha) e 36 cenas resolvidas, no Epílogo, por três vozes laterais, regresso ao pensamento originário de uma respiração democrática, sem deixar de celebrar a medicina.      

 

3-Qual a ideia que esteve na origem desta antologia agora publicada? 

R- Havia um trabalho secreto de 47 anos. Editara poemas, novelas, contos, romances; centenas de crónicas na Imprensa; crítica, ensaio, dicionarística e edição literária ocuparam-me 45 anos, inaugurados com trabalho sobre A Morte do Papa, peça de Jorge de Sena; traduções do húngaro, quatro décadas. Tinha uma dívida com a edição crítica da Exortação da Guerra vicentina, a publicar; com a leitura anual da Castro ferreirina e regular do Frei Luís de Sousa. Após o Théâtre de la Cruauté (1932) e Le Théâtre et Son Double (1938) de Artaud e Un Théâtre des Situations (1973) de Sartre, fiz récitas amadoras no Verão Quente de 1975. É o género mais livre e participável, onde melhor cabem as falas de todos. Eu próprio asfixiava, se não mostrasse este rosto desconhecido.

 

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Dentro de um outro labirinto ficcional

 Voltamos ao Rio, ao mesmo hotel, ao mesmo cenário, para celebrar duzentos anos de um Grito, cem dos quais vividos por minha mãe.

Ernesto Rodrigues, A Terceira Margem

Vamberto Freitas

Edmund Wilson, uma muito antiga referência minha quanto a crítica ou ensaísmo sobre qualquer escritor, costumava ter como ritual inicial lavar as mãos num gesto simbólico de limpar a consciência para que fosse justo com o autor e particularmente com o livro em causa. Desde há muito que o imito, mas para ainda acertar o meu cérebro à escrita que devo tentar – tentar – fazer justiça à obra em análise e o “julgamento” sempre inevitável nestes instantes. A obra ensaística, poética e romanceada de Ernesto Rodrigues tem sido um acto substancial em todos os sentidos, e escrevi sobre alguns dos seus romances, e com o maior prazer da leitura ou do texto em si próprio. Ler um grande romance deste autor é, como indica o título deste meu texto, entrar irremediavelmente num labirinto literário cujo desafio nunca será procurar uma saída, uma conclusão declarada, mas sim a caminhada entre o desconhecido, e nunca necessariamente a vontade de ver a luz ao fundo da aventura de estarmos meio perdidos entre palavras, diálogos, tempos ou parágrafos narrativos, por vezes tão obscuros como os mistérios verdejantes dos míticos corredores demasiado antigos, mas que representa a condição humana na sua incerteza quanto ao seu destino, sorte, salvação ou morte na nossa incapacidade de encontrarmos de novo uma outra vida e a bondade dos deuses. A Terceira Margem – título feliz dado o nosso crescente hábito de falarmos em povos irmãos mas distantes – tem aqui outra significação: a bondade, a justiça que sempre falta, e muito especialmente a crueldade dos homens e mulheres entre si. Estamos aqui não só ante uma história de séculos, que se estendem de por duzentos e sessenta e seis anos, como avançamos para um futuro que se aproxima, 2020.

nova crítica americana que vem desde os anos 40 do século passado, sugeria algumas pistas, ou deveres, da ficção, digamos maior: ironia, tom de linguagem, ponto de vista, ambiguidade, tempo histórico, palavras inusitadas na narração, entre outras peças para a análise ou aproximação a textos poéticos e ficcionais. Eliminaram a biografia do autor, e ainda mais a sua reputação entre os seus iguais ou colegas. Toda a teoria da literatura que vem até aos nossos dias não passa de cópia, versão-outra ou “cientificidade” dos mestres sulistas iniciais. O texto, qualquer texto criativo, tinha de se auto-sustentar, ou de nada valia. Só discordo do meu mentor livresco de uma coisa: a biografia de um autor tem tudo a ver com as suas invenções, nenhum deles poderá fugir a esse inevitável pormenor, dos seus sentimentos ou experiência de vida. Foi assim que certa literatura norte-americana se impôs ante os modernistas nova-iorquinos, e elevou os escritores das mais díspares geografias ao seu devido lugar, em pouco levando William Faulkner ao Prémio Nobel (era considerado até então um escritor mais ou menos “regionalista” ou obscuro). Resisto a comparar os nossos escritores a outros, seria como retirar a sua originalidade e capacidades próprias, como ombrearam com os seus pares no restante mundo sem nada dever-lhes. Bem sei que isto poderá ser um exagero da minha parte, pois os escritores lêem-se uns aos outros e consequentemente recebem influências várias. A chamada “universalidade” de uma peça literária é muito difícil de definir. Só a condição humana é universal, as boas obras que nascem de qualquer língua ou cultura poderão ser categorizadas, mas a sua originalidade, repetindo-me aqui, permanece ante qualquer leitor minimamente bem informado ou lido, dentro e fora das geografias em que nasce e vive.

A Terceira Margem tem como fundo referencial sete gerações que descendem de Pedro Álvares Cabral, o navegador que parte para Índia mas antes de lá chegar deixa o padrão português no que viria a ser o Brasil. Como diria José Saramago: a divisão entre autor e narrador é uma invenção dos académicos, que a certa altura nas décadas passadas caíram na ilusão de se sobreporem arrogantemente aos próprios verdadeiros artistas da palavra ou da narração ficcional. Neste mais recente romance de Ernesto Rodrigues não só existem tempos distanciados da narrativa, como também a movimentação do seu narrador ou narradores. Partimos do Brasil, naturalmente, de Portugal e ainda de Budapeste, a que o autor está para sempre ligado por razões de ensino universitário, assim como relacionamentos íntimos e cujo sangue do seu sangue, creio, continua por lá. Uma das características deste seu labirinto vai muito além da história inicial da nossa eterna ligação ao grande país que descobrimos – desculpem, “achamos” – que tanto podem ser relembradas já nos anos 60 do século XX, como dos anos mais próximos de nós. Tudo é contado ou meramente imaginado pelas gerações seguintes. De grandes e estranhos acontecimentos dos seus ou das suas alegrias é feito esta história, sempre com a tragédia de um ou uma a espreitar a sua vida corrente ou sugerindo um outro futuro. Não, não se trata da história inicial da nossa chegada ao Novo Mundo que está aqui em causa. É o futuro dos que seguiriam século após século que os narradores nos transmitem em linguagens ora claras, ora sugestivas, ora ambíguas ou incertas, umas acreditáveis outras parecendo-nos pura invenção ou desorientação mental. Amores e desamores, felicidade, ou dor se se estar vivo e, ainda em perpétuas andanças, mesmo quase todos vindos do longínquo antecessor maior e herói de uma pátria que hoje, bom, não está nunca desfeita, mas sempre à procura de uma outra identidade e integração num mundo que outrora ligou, globalizou com a conhecida violência e com a saudade das praias quietas no seu Ocidente nunca totalmente aceite, ou aceite com perplexidade e mesmo com desconfiança. Cada palavra em A Terceira Margem é de uma viveza inusitada, prendendo o leitor adentro das suas voltas entre “paredes” e à procura da tal luz de saída e conclusão.

“Quando assim, em ferida aberta, os regressos são lentos, sem interesse pela paisagem, que também cansa o corpo desejoso de cicratizar no Tejo. O Expresso d’Orient, no seu luxo de fantasia, fê-lo descer em Paris. O Sud Express, em Lisboa e no Hotel l’Europe, onde chegou a 7 de Dezembro, e soube que também a família imperial. Após dor e indiferença, serenava”.

Fala-se aqui de um dos protagonistas que havia visitado a Exposition Universelle em Paris. Pouco antes disso, fala nos brasileiros que, ouviu discursar em 1880, em festa dedicada a Camões. O círculo está a fechar-se, sem o corte, sempre sem corte, entre uns e outros. Eu tive um outro mentor na faculdade da Universidade Estadual da Califórnia que nos exigia sempre responder à pergunta: isto é um romance optimista ou pessimista? Respondia que nem uma coisa nem outra. Era mais uma representação do estado imemorial em que a Humanidade sempre viveu. As glórias e a tragédias de cada ser humano nunca estariam desligadas. É isso mesmo o que o leitor pensa ou pensará deste grande romance A Terceira Margem. A bondade de uns e a maldade de outros, o carinho de uns sempre seguido da crueldade de outros, a liberdade em convivência com a escravatura, de que nós portugueses somos e sempre fomos mestres, a culpa e a inocência tantas vezes indecifrável.

Já escrevi sobre outros romance de Ernesto Rodrigues e conheço mais ou menos bem a sua obra sobre várias facetas da nossa História, e até os seus livros sobre a nossa imprensa durante regimes muito diferentes. Lê-lo é a aprendizagem de factos, opiniões e, sim, de certo modo, fantasia. Só que há opiniões totalmente baseadas na ignorância, e outras fundamentadas no conhecimento dos factos, ou saídas de relevantes obras de arte, relembro uma vez mais. É esta última afirmação que se aplica por inteiro à presente ficção de Ernesto Rodrigues.

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Ernesto Rodrigues, A Terceira Margem, Lisboa, Guerra & Paz, 2021. Publicado na minha página “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 10 de Setembro, 2021.


AÇORIANO ORIENTAL 

 SEXTA-FEIRA, 10 DE SETEMBRO DE 2021

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Três perguntas [novoslivros.pt, 19-VIII-2021]

 

 

1– O que representa, no contexto da sua obra, o livro A Terceira Margem?

R – Oitavo romance desde A Serpente de Bronze (1989), que anunciava a actual casa comum europeia (desde 2004) e rastreava momentos altos da nossa História, também expandida ao desastre de Alcácer Quibir, A Terceira Margem vai além desse espírito viageiro cosmopolita e remitificação sebástica: debate o fim da pena de morte em Portugal e, sobretudo, a abolição da escravatura no Brasil, sem o que nações, comunidades e indivíduos não darão o salto para a terceira margem, a da dignidade. Por outro lado, irmana-se, aqui, a vertente regional, patente desde a estreia novelística (1980) até ao segundo romance, Torre de Dona Chama (1994), nome da vila transmontana donde sai (além do autor, além do narrador) a linha dos Cabrais que apelida a história entre 1756 e 2022. Adequando o registo discursivo a tempos, lugares e personagens – algumas bem conhecidas no imaginário luso-brasileiro, em que relevo Machado de Assis –, A Terceira Margem é o título-síntese das minhas diligências literárias.  

 

2 – Qual a ideia que esteve na origem deste livro?

R – O narrador, Pedro Álvares Cabral (1956), já comparecia naquele segundo romance, onde também pesava a lembrança de um avô, agora, em A Terceira Margem, figura central (1870-1966) e fonte de informação. Precisava de biografar um alter ego e sua linhagem num período – século XIX, em particular – que, com a independência política do Brasil, conduziu Portugal ao regime demo-parlamentar de hoje, sem termos ainda chegado à plena independência dos indivíduos. Choca-me que, sob formas várias, milhões de pessoas continuem a ser «mercancia», no dizer do padre António Vieira. Sem debelar esta chaga – sendo solução Uma Bondade Perfeita (2016), sexto romance –, a humanidade não é digna deste nome. Lateralmente, na sequência de ficção histórica como O Romance do Gramático (2011) e A Casa de Bragança (2013), faltava-me homenagear cerca de dois séculos e meio, que melhor conheço, enquanto investigador universitário. Era, também, outra forma de revisitar uma cidade de eleição, o Rio de Janeiro.

 

3 – Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?

R – Donald Trump e outros títeres inspiraram três novelas que se debruçam sobre o Poder – a principal preocupação de 11 peças em 47 anos de Teatro, que acabo de editar. Estão em retoques finais, à atenção de um futuro que se deseja mais responsável.   

Os Cabral em Budapeste, num romance português

 Provavelmente no espírito do próximo 200º aniversário da independência do Brasil, é que o romance do escritor e historiador literário português Ernesto Rodrigues, publicado nesta última Primavera, traça as complexas relações entre os dois países de língua portuguesa através da vida de sete gerações de uma família Luso-Brasileira. A história de 266 anos começa em 1766, quando o antepassado remoto da família conhece e casa com Maria Cabral, uma descendente tardia de Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, e termina num futuro próximo, a 7 de Setembro de 2022, no dia do “Grito do Ipiranga”.

A narrativa, que abrange épocas e distâncias geográficas, começa em Lisboa em 1966, quando o sétimo Pedro Álvares Cabral relembra a história da sua família, depois salta no tempo para o Rio de Janeiro do século XIX, e ao princípio de tudo, à Torre de Dona Chama, antes de continuar com os saltos para o Porto, Paris, Londres e Budapeste. Assim, por detrás das aventuras do(s) protagonista(s) que leva(m) o nome de Pedro Álvares Cabral, encontram-se os lugares e motivos recorrentes de Ernesto Rodrigues, o autor do romance: Torre de Dona Chama, onde nasceu, que já é o título de um dos seus romances anteriores, ou Budapeste, onde trabalhou durante anos como leitor português. A memória da cidade nas margens do Danúbio não foi evocada apenas num livro de poemas escritos há um quarto de século, mas também na primeira parte do romance Um Passado Imprevisível, publicado em húngaro no ano passado. Budapeste também aparece pelo menos quatro vezes no livro, que os Pedro Álvares Cabral de diferentes gerações visitaram em 1889, 1919, 1986 e no início dos anos 2000. O autor do livro, que em tempos aqui trabalhou como leitor de língua portuguesa, também está envolvido na história, pois tem de ajudar a encontrar nos arquivos de Budapeste nos anos 1980 os vestígios do avô do último filho Cabral, que tinha estado aqui um século atrás e se tinha apaixonado por uma menina húngara, Erzsébet Bánffy (filha suposta da imperatriz Sissi) que depois viajou pelo mundo e deu à luz em Lisboa o pai do filho que procurava os seus vestígios. A única pista valiosa nesta busca foi um programa de um concerto de Mahler realizado a 20 de Novembro de 1889, que tinha sido encontrado num programa de concertos. As memórias deste pai (sexto Cabral na ordem genealógica), nascido de um caso de amor que floresceu no final do século XIX, deram ao escritor a oportunidade de escrever sobre a Hungria entre as duas Guerras Mundiais, mostrando a devastação da Segunda Guerra Mundial, e, depois, a da invasão soviética que acabou com a revolução de 1956, e o gradual melhoramento da situação, recordando 1986 como o último momento, quando o penúltimo Pedro Álvares Cabral, que tinha entrado em contacto com a realidade húngara, morreu e o autor, que se tinha incluído no romance, já não era leitor.

Mas não são apenas as cidades e épocas que aparecem no romance de Ernesto Rodrigues, mas também as referências intelectuais das quais um historiador literário não pode escapar, as figuras do Romantismo português, Garret, Herculano, ao brasileiro Machado de Assis, e por um breve momento a figura da infeliz Imperatriz Sissi, cuja filha secreta e ilegítima se apaixona pelo misterioso avô, o quinto rapaz Cabral, em Budapeste.


Pál Ferenc

segunda-feira, 5 de julho de 2021

A Terceira Margem no Jornal de Letras, Artes e Ideias

 


Oitavo Distrito de Deus

 Acaba de sair

Dániel Levente Pál, O Oitavo Distrito de Deus (Az Úr Nyolcadik Kerülete), com tradução minha.



quinta-feira, 17 de junho de 2021

"A Terceira Margem", um abraço luso-brasileiro

 Acaba de sair A Terceira Margem (Lisboa, Guerra & Paz), oitavo romance de Ernesto Rodrigues, que ficciona sete gerações de uma família luso-brasileira (com pozinhos de Europa Central) entre 1756 e 7 de Setembro de 2022, quando se comemora o bicentenário do Grito do Ipiranga. Essa linhagem emerge em Torre de Dona Chama, com raízes no navegador Pedro Álvares Cabral, e, em Lisboa, num desembargador na Casa da Suplicação. A história é centrada no avô (1870-1966) do narrador, em defesa da dignidade humana, ou terceira margem, que recusa a escravatura, a pena de morte, os aljubes do pensamento. Momentos altos e figuras maiores de aquém e além-Atlântico, com a presença especial de Machado de Assis, aproximam-nos de uma História comum que uma prosa singular também celebra. O livro é apoiado pelos municípios de Mirandela e Bragança.

Ernesto Rodrigues é poeta, ficcionista, dramaturgo, cronista, crítico, editor literário, ensaísta e tradutor de húngaro, além de professor associado com agregação na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Com dezenas de títulos desde a estreia em livro (1973), reuniu, já este ano, 11 peças (1973-2020) sob o título Teatro, bem como Portugal segundo Trás-os-Montes e Alto Douro, em ebook disponível, aguardando-se edição em papel. Trata-se de homenagem à região, em síntese que percorre os séculos, vivências e figuras marcantes.

 

Mensageiro de Bragança, 2-VI-2021

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Três livros na RTP 1

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Perseu

 

Evoquei, já, a importância de dois livros no meu despertar para a literatura: Narrativas e Lendas da Antiga Grécia (1956), de Nathaniel Hawthorne, e Coração, de Edmondo De Amicis. Recebi-os de uma prima, em 1961, tinha eu cinco anos, quando começava a ler. No limiar da tese de doutoramento, salientei Cuore, mas A Wonder Book perseguia-me. Assim, quase sessenta anos depois, pego nessa tradução (que há muito mandei encadernar, e não doei, com outros oito mil volumes), da qual sai, a abrir, “A cabeça da górgona”. Não me recordava disto, ao encadear 14 sonetos sobre Perseu, que dá título ao recente livro de poemas (Fafe: Editora Labirinto, 65 páginas). Mas é certo que, num escaninho da memória, esse herói me acompanhou durante décadas. Em ficção e estudos sobre a crónica, eu já aproveitara alguns feitos de Zeus. Terei acordado o meu herói à leitura, nos 25 anos, de André Bonnard, Les Dieux de la Grèce, tão extraordinária era a história de Perseu, com tanto de Bíblia como de Camilo Castelo Branco, e remissão para Édipo, mas sorte diferente. Retorna em 1992, pois o segundo capítulo de Mitologia Clássica. Guia Ilustrado, de A. R. Hope Moncrieff, trata de Perseu, nas cores de Ticiano e E. Burne-Jones. A Editora Labirinto dá na capa Perseu com a Cabeça da Medusa, de Antonio Canova, um neoclassicismo sereno que simplifica igual título do clássico Benvenuto Cellini, longe da imagem terrífica da górgona. A história é simples: o rei de Argos ouve de oráculo que um descendente vai assassiná-lo. Encerra a filha, guardas em volta de entrada cuja chave traz consigo. Zeus metamorfoseia-se em chuva de ouro e gera criança. Respeitoso do deus, o rei poupa filha e neto, que lança em barca frágil. Salva-os pescador, irmão de rei que, autoritário, sonha desposar aquela. Na tensão entre irmãos (já se adivinha qual ganha), e para afastar Perseu de uma decisão desfavorável, confia-lhe missão impossível: matar Medusa, cujo olhar petrifica mortais. Ajudado por Hermes e Atena, essa é só a primeira aventura, com manhas e pormenores que não descrevo. Mas a cabeça sabiamente cortada vai servir para acabar com a raça do rei mau e salvar a mãe, entretanto refugiada no templo de Atena. A segunda aventura é salvar Andrómeda de um monstro, com ela casar e subir ao céu. Acontecem outras, mas corramos ao final: durante uns jogos, falha um lançamento de disco e mata, involuntariamente, o avô, cumprindo-se oráculo. Recusa o trono de Argos, governa Tirinto (ou Tirinte) e funda Micenas. Persée é uma entrada do Dictionnaire des Symboles, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, que não acolhe muitos outros heróis, mas falha ao curar da «complexité de la relation père- -fils, fils-père, existant en tout homme». Ora, Perseu não tem problemas com Zeus pai, nem com o avô, cuja fatalidade é de outra ordem. E vencer, sobre um Pégaso alado, a Medusa – «image excessive de la culpabilité –, não significa vencer uma culpabilidade própria, mas, sim, «acquérir le pouvoir de se regarder soi-même sans défomation». Curar de «vanité» e de «ses propres monstruosités» (que não podemos extrair da vitória sobre o monstro desejoso de Andrómeda) sobre que Perseu triunfou é adulterar o mito de alguém esforçado, que nem o destino atropela (como se deu com Édipo), já recusando o fácil (Argos), já erguendo cidade do nada (Micenas). Eis a narrativa de um amadurecimento, sobre que os versos também evoluem. Outras considerações roubariam ao leitor o gozo de pequenas descobertas. Valha dizer que os sonetos deste livro (e só um texto não é soneto), conjugados com a variedade da penúltima selecção – Do Movimento Operário e Outras Viagens (2013) – completam a imagem que me faço da poesia, subida, afinal, das brumas da infância.


PERSEU, DE ERNESTO RODRIGUES: POESIA, AMOR E MITO

 

De Ernesto Rodrigues, veio a lume a obra poética que faltava na lírica portuguesa de hoje – Perseu. Digo que nos faltava ao constatar que esta poesia rompe todos os padrões que possamos conhecer, oriundos que sejam dos clássicos (antigos ou renascentistas), dos românticos, dos modernistas ou de quaisquer outros, que dos contemporâneos é o poeta seu representante maior. Motivado por Perseu, titã da mitologia grega, filho de Zeus e da mortal Danae, e inspirado por uma ninfa tágide, tem o mérito de conjugar, neste poemário, a cultura grega da Antiguidade com a poesia lusa dos tempos hodiernos. Há um primeiro capítulo metapoético – Da poesia. Primeiro porque os dois poemas iniciais, quase desgarrados (Sílabas e Caos) não formam tema algum e serão prolegómenos dos tratados que preenchem a obra e prenúncio do estilo rebelde que os vai marcar. Em Ernesto Rodrigues, a poesia acontece “Quando, por Março, erro da cidade / aos campos, silabando vida, bom / dia às aves, ao rumor de ser, / de súbito, no verde, como nunca / vi, amarelo-seda vem até /meus dedos…”. Poesia que está imanente na vida, na natureza, no ser… e que se consubstancia, basicamente, em sonetos e nos versos decassilábicos que constituem a sua essência e nos mesmos decassílabos de outras formas poéticas. Poderemos afirmar que é nestes versos que reside a força de sentir e expressar a natureza bela. Natureza, no sentido mais vasto, total, entenda-se, a humana e a imaterial, os campos, os rios, o mar, a arte e os sentidos. Natureza das coisas que nos fazem viver e nos preenchem a vida e que dela rememoramos, mais que tudo, a beleza: “Beleza – eu não sei como dizê-la, / tão jovem é, tão grácil, que nem Vénus…”. A beleza está na juventude e esta permanece eterna nos deuses, sendo ambas, a juventude e a beleza, a sua condição essencial (deixando de parte os seus pecados, considerando que os deuses foram feitos à imagem e semelhança dos homens). Depois, há a beleza das palavras ditas por sentidas, e nisto reside a essência da obra, ainda que, por vezes, inatingível (para os mais desatentos). E por isso é poesia, na qual, assim como em uma qualquer pintura ou em uma qualquer obra de arte, podemos ler o que mais nos impressiona, discorrer e ler e descobrir o que nem o próprio poeta em tal teria pensado. Se a poesia é a linguagem da paixão, viva e animada, escrita sob norma pré-estabelecida ou livre, regra geral, Ernesto Rodrigues optou pelo soneto e cumpre a norma para esta forma poética. À sua maneira, com recurso às liberdades poéticas (violações da norma?) como é timbre de um poeta rebelde. Não obstante, o decassílabo é intocável e é cumprido com rigor, que neste âmbito a liberdade foi suspensa. De liberdades continuou a usar o poeta na translineação em final de um verso para o seguinte. Mantendo-se o decassílabo, a rima e a acentuação. Senão veja- -se o poema IV de “Do amor incompleto”: “Sentes? Há um perfume no meu corpo, / que desce madrugada. Redivivo / poema, irei logo onde for pos- / sível para de novo estar contigo”. Em matéria de fuga à norma, constata-se um impensável e inédito desafio ao leitor nos últimos dois sonetos da obra: a translineação une o XIII ao XIV, sendo que o primeiro se apresenta violador da norma (será soneto sem a rima adequada?) e o segundo rigorosamente respeitador do modo parnasiano. Contudo, é neste duplo soneto que assenta a conclusão – a salvação de Perseu, que coragem não lhe falta, perante os perigos maiores que residem ofuscados pela rara / beleza da Medusa. Liberdades poéticas. O amor é, para qualquer poeta, um tema incontornável. Porém, em Perseu, distingue-se o “amor” do “amor incompleto”. Bizantinices ou subtilezas de poeta-filósofo? Nem uma nem outra destas propostas de justificação se podem aqui adequar. Obviamente, a resposta perpassa pela linguagem da paixão verdadeiramente vivida, a que chamamos poesia do sentimento amoroso: “Há muito tempo foi; resta-me só / a cor do teu sorriso; nem sequer / a pele nua, bela, que beber / bebo aqui. Quis-te minha: nem lazer, nem sofrimento. Dura foste. Oh, / se a terra não soubesse amar o pó…”. Por isso, já nem a beleza desperta sentimento daquilo que sentiu; a relíquia que foi assemelha-se agora a uma antiga nevrose. E então, só o adeus pode confortar o poeta. Mas, por outro lado, no tema “Do amor”, as quadras e tercetos decassílabos bem estruturados segundo a norma do soneto, ou em elaborada poesia de dísticos com a mesma métrica (porque se encaixam nas mesmas estrofes), exprimem a natureza bela do amor vivido, amor supremo pelo qual até a vida se pode entregar: “Bebido teu nocturno beijo, / vou dizer às flores como sou feliz”. Ernesto Rodrigues conseguiu, neste capítulo, subverter a ideia de que o poeta tem de ser necessariamente sofredor. Não conseguiu fingir (porque sofrimento não tem aqui lugar), facto que configura, talvez, mais uma violação da norma: o poeta é feliz porque “fazer amor é supremo bem”. E aqui, neste soneto IX (será influência do canto IX de Os Lusíadas?) os versos respiram sensualidade, luxúria, fogo, felicidade. Em “Do amor” representa-se o belo em formas de felicidade completa. Para longe vai a ideia de poeta infeliz. Encerra a obra o tema cujo nome lhe dá o título – Perseu. Herói da mitologia grega, era uma espécie de semideus, por ser filho de Zeus e de Dánae, neto de Acrísio, rei de Argos. O poeta logra unir dois factos da nossa cultura ocidental, muito afastados no tempo e no conteúdo: o mito de Perseu da cultura helénica e a mais avançada poesia lusófona. Para lograr este desiderato, ele próprio se faz “narrador participante”, como se pode constatar logo no poema I do capítulo: “Busquei em terra, mar, fogo, ar, cheiro / de parca, mas ninguém a viu. Derroto / a sorte, que persegue fracos, quando / outro destino urdo – de que sou”. A mitologia reza: um oráculo não-identificado previu que um neto do rei Acrísio o haveria de matar. Por isso, mandou lançar ao mar mãe e filho (Perseu), dentro de uma caixa a servir de barco: “Cauteloso (não sei inda / o que isso é) face ao pai de / minha mãe, que não gosta de mim…”. O poeta identifica-se com Perseu que recebeu ordem do amante de Dánae, sua mãe, para cortar a cabeça de Medusa. Elimina seus medos, ou por outra, “tira do medo forças” e enfrenta a beleza da ninfa e seus longos cabelos, vendo-a apenas por meio de instrumentos cedidos pelo deus Hermes (uma espada), por Plutão (uma bolsa e o elmo), por Atena (escudo bem polido) e pelas traiçoeiras ou amedrontadas górgonas (fazendo dele Pégaso com asas nos pés), e corta-lhe a cabeça. Regressou ao ponto de partida e entregou a cabeça de Medusa a Atena. O risco era tremendo: a deusa, como castigo pela entrega de Medusa, em amor, transformara os seus longos cabelos em serpentes e a terrível sina de petrificar quem a fixasse no seu olhar. Metaforicamente, o poeta reconhece que “perigos maiores / vivem os ofuscados pela rara / beleza da Medusa, cuja lisa / e longa cabeleira prende quantos / não olham ao ser, mas ao fingimento”. E assim encontrámos a simbologia do mito de Perseu, aliado ao de Medusa: o medo reside naqueles que penetram na essência profunda dos seres, desvalorizando a superficialidade das coisas vãs. O medo existe apenas na mente dos fracos: “Com cabeça, olhemos o céu, sem / falsas defesas… Ser tudo ou nada”. Segundo a lírica de Ernesto Rodrigues, eis o mito de Perseu.

António Pinelo Tiza

“A Terceira Margem” é o mais recente livro do escritor transmontano Ernesto Rodrigues

 O romance histórico parte das raízes transmontanas do autor, de Torre de Dona Chama, no concelho de Mirandela, e chega ao Brasil. Conta a história de uma família, ao longo de mais de 200 anos, que por coincidência tem o mesmo apelido do navegador Pedro Álvares Cabral.

“É uma história que começa quer em Lisboa, quer em Torre de Dona Chama, onde dois avós vão contar uma história em família. A história começa, em Torre de Dona Chama, onde o primeiro avô casou com Maria Cabral, que era da família descendente de Pedro Álvares Cabral”, contou o autor.

O oitavo romance do escritor leva o leitor ao cerne da abolição da escravatura e da pena de morte.

Um alerta ainda necessário nos dias de hoje.

Além da abolição da escravatura e da pena de morte, as marcas do colonialismo, as tensões sociais, momentos altos e figuras maiores da história são temas também abordados n’A Terceira Margem, livro de Ernesto Rodrigues, que foi lançado esta semana.

Escrito por Brigantia

Jornalista: 
Olga Telo Cordeiro

terça-feira, 8 de junho de 2021

Uma história em família

 A Terceira Margem

(Lisboa, Guerra & Paz, 2021)

 


Pedro Álvares Cabral (1956) nasceu no Rio de Janeiro, aonde regressa com a mãe centenária, no significativo 7 de Setembro de 2022, e quando se perfazem 266 anos de uma linhagem luso-brasileira contada em A Terceira Margem.

Ainda criança, trocou o Rio por Lisboa, levado pelo avô (1870-1966). Neste, desembocam as memórias da dinastia familiar – àquele transmitidas –, desde um juiz do crime (Lisboa, 1756-1852), cujo nome só tardiamente se revelará, e Pedro Álvares (Torre de Dona Chama, 1756-1822), lavrador, que deu à filha Maria Cabral (1782-1831) o apelido da esposa descendente do descobridor do Brasil.

O discurso começa em 1876, quando, acompanhado pelo escravo Congo, o avô do narrador, agora menino de seis anos, leva uma carta do pai, Francisco António (Rio de Janeiro, 1822-1888), a figura enigmática protestando contra a escravatura na redacção do Jornal do Commercio, na Rua do Ouvidor. Congo é comprado no dia seguinte e, durante 90 anos, interroga-se o portador se a carta não era anúncio de venda de escravo… Veremos como essa criança deu o salto para a terceira margem, a da dignidade, assente nas epígrafes do padre António Vieira – «Oh trato desumano, em que a mercancia são homens!» – e da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A segunda geração assenta no casapiano Pedro Álvares (Lisboa, 1782-Torre de Dona Chama, 1851), que deserta na Guerra das Laranjas (1801) e encontra guarida nesta vila, casando com Maria Cabral. Nasce Pedro Álvares Cabral (Torre de Dona Chama, 1802-Rio de Janeiro, 1876): com dez anos, o abade da terra, das relações daquele juiz, emprega-o em tipografia de Lisboa. Abade e juiz têm duas mancebas, mãe e filha, respectivamente: a vingança daquela será a tragédia desta, em que arrasta esse padre cura, o pai, um irmão desconhecido e sobrinho, entre outros, disseminando-se em intriga camiliana…

Espíritos liberais, juiz e jovem tipógrafo fogem do reino no dia dos mártires da Pátria (18-10-1817). Desembarcam no Rio na hora da coroação de D. João VI (6-2-1818), para, esquivando os festejos, terem o primeiro choque: um italiano vendia escravo acorrentado. O juiz não só o negoceia, como lhe encontra companheira e adquire sobrado para os quatro.

Com a independência, faz-se capitalista: adquire terras, liberta escravos e relaciona-se com o imperador D. Pedro II. Após visita a Santos Marrocos, emprega o afilhado na tipografia oficial. O jovem Pedro Álvares Cabral sofre na composição de anúncios que prolongam o esclavagismo. Apaixona-se, entretanto, por Iara Maria de Santa Teresa (Rio de Janeiro, 1802-1831), que lhe dá Maria Álvares Cabral (1822-1888), quando também nasce o amigo Congo, filho do primeiro casal liberto.

Mal na pele de português que a independência do país não fez brasileiro, enviuvando cedo, Pedro Álvares Cabral entrega a filha ao ex-juiz do crime, para acompanhar o ex-imperador D. Pedro I até França, onde conhece Garrett, Herculano, e integra os 7 500 bravos do Mindelo.  Dos Açores ao Porto liberal sucedem-se aventuras, logo descido a Lisboa, onde contacta outros intelectuais A. P. Lopes de Mendonça, António Rodrigues Sampaio, etc. , lutando pela abolição da pena de morte, na peugada de Herculano contra Castilho. Angustiado por não receber novas do Brasil, e mais pela notícia do crime que envolveu o pai e quem se descobriu irmã deste (1851), despede-se de Torre de Dona Chama e de Lisboa.   

Na chegada ao Rio, vê mal o casamento da filha, Maria Álvares Cabral, com o filho daquele italiano, Francesco Schiavo, ou Francisco António. Este, sempre ausente, representa a fina-flor esclavagista, revertendo as decisões do ex-juiz abolicionista – em cujo palacete de Botafogo se fez rei e senhor e afastando o sogro para o centro do Rio. Vê abolicionistas nos republicanos e alerta para golpes imaginados nas viagens europeias de D. Pedro II.

Contra o terror doméstico, Maria Álvares Cabral chama a si o filho e segura o primeiro casal de escravos, libertos desde 1818, mas que não vêem o filho Congo e perderam uma neta. Convida-os, mesmo, para uma récita teatral, onde debatem com um muito presente Machado de Assis, que já vem das relações tipográficas do pai. O convite para a peça machadiana celebrando Camões no 10 de Junho de 1880 desvela ao avô do narrador, com dez anos, quem era aquela personagem no Jornal do Commercio

O 13 de Maio de 1888 é libertação plena dos escravos e, também, do jovem agora com 18 anos, que reencontra Congo vingando-se do antigo patrão, sem oposição do filho; morre, entretanto, a mãe, e, seguindo os passos imperiais, vem gastar a fortuna na Europa.

Entre um encontro londrino com Jaime Batalha Reis, a Exposição Universal de Paris (1889), uns olhos que persegue até Budapeste, virá gerar em suposta filha da imperatriz Sissi outro Pedro Álvares Cabral (1890-1986), pai do narrador. Mas é o avô cronista que vive os desacertos políticos de Portugal, enquanto a esposa, afastando-se, denuncia atrocidades europeias. Segue-a o filho, com aventuras do coração que só percebemos na última página.

Aos dez anos, por morte do avô (1966), tem o narrador o essencial da história, que a mãe, Teresa Cristina (1922), enfim encontrada, vai completar. Regressam ao Rio natal para celebrar os duzentos anos de uma independência digna – de indivíduos não sujeitos, nem mercancia, e de país livre. É a terceira margem do Atlântico.

Pedro Álvares Cabral, narrador, fora já personagem no romance Torre de Dona Chama (1994). Cosmopolita, mas apreendendo o cheiro do discurso nordestino, avança, recua e conjuga os tempos, como vai das derivas da memória. Constrói-se uma diacronia na eleição de momentos fortes desde finais de Setecentos, em que intervêm figuras conhecidas com textos e falas próprias. O rigor da informação vai a par de sucessos inesperados.  Sentimo-nos em casa, como se as invasões francesas ou o Ultimatum inglês tivessem sido ontem. O sonho de um autor é tornar tudo próximo e reconhecível, para que o leitor faça parte da família. 


domingo, 16 de maio de 2021

A Terceira Margem

     Acaba de sair o meu oitavo romance, A Terceira Margem, Lisboa, Guerra & Paz, 2021, 192 páginas.

A Terceira Margem ficciona sete gerações de uma família luso-brasileira (com pozinhos de Europa Central) entre 1756 e 7 de Setembro de 2022, quando se comemora o bicentenário do Grito do Ipiranga. Nestes 266 anos, ergue-se dinastia com raízes no navegador Pedro Álvares Cabral e em desembargador na Casa da Suplicação centrada no avô (1870-1966) do narrador, em defesa da dignidade humana, margem que recusa a escravatura, a pena de morte, os aljubes do pensamento. Momentos altos e figuras maiores de aquém e além-Atlântico, com a presença especial de Machado de Assis, aproximam-nos de uma História comum que esta prosa singular também celebra.

sábado, 24 de abril de 2021

Teatro, arte da respiração

 

No ano em que me estreei em livro (Inconvencional, poesia, 1973), escrevi a primeira de onze peças, agora reunidas em Teatro (Lisboa, Edição do Autor, 2021, 572 páginas). Era o sonho de uma arte participada por todos, como se exigia para uma diferente respiração nacional, politicamente moribunda. A Pedra metaforizava a opressão desse tempo, na figura de polícia que vem prender jovem universitário rebelde, escrevendo peça com o mesmo título, enquanto pai emigrante sufoca, sem perspectivas de amanhã, sob o cinismo do regime.  Voto colectivo, homens, mulheres e crianças abrem esta «penetragédia» (seja, quase tragédia, nas soluções corais), transformando um regresso de funeral em manifestação de protesto, em cujos cartazes se lê «Queremos respirar!».

Longe de mim pensar que, 47 anos depois, iria escrever Pandemia, em que a respiração tudo suspende, dos abraços à liberdade. Nestas cem páginas entre camilianas e detectivescas, adensa-se cada psicologia, e não sei se deva realçar oportunismos, as relações intrafamiliares, a construção de uma amizade, a abnegação e o bem morrer. Em off, um narrador enquadra as cenas: imagino projecção no cenário de quanto vemos diariamente nos ecrãs.

Entre estas duas peças, não deixei de questionar outros avanços – na estrutura do Poder, tantas vezes cruel e dissoluto, em que incluo conflitos interpessoais –, também da dramaturgia. Assim, Faca no Sol (1974) debruça-se sobre a construção de uma sociedade sem escravos, em que se arrisque a esperança. Escrita no pós-25 de Abril, troca, no final, o hieratismo do tom pela discussão solta entre os actores (já não as personagens) e o público.

O Golpe (1975) desenvolve A Pedra, no que tem de guerrilha efectiva a um governo de Direita autoritária bajulada pela sua Direita extrema. Quem manda, afinal? O desafio da liberdade, ainda num impasse, como nesse Verão Quente de esquerdas totalitárias e satélites, é compensado por quadros delirantes, validando o à-vontade de encenador imaginoso.

Duas personagens (e um empregado pouco falador) protagonizam Jardim (1977), que já publicara como conto em A Flor e a Morte (1983). O diálogo é a forma suprema de respiração: sem diálogo, asfixiamos. Tento por esta via, desde sempre, uma ficção facilmente adaptável à cena, e mais quando sabemos da dificuldade nacional em ‘falar naturalmente’. Mas deixando, por agora, o risco de contaminação entre géneros, direi da surpresa em ler aí a guerra entre genes masculinos e femininos, e como, em cada um de nós, se disputam, algo que deveria acalmar quem supinamente ignora fundamentos da genética.

Vinte e um anos depois, voltei à nossa condição de mortais: Acidente (1998-2000) começa por ser uma conversa sobre a actualidade entre dois mortos na morgue, cujos gavetões abrem e fecham, a par de existências comentadas por vivos, assim misturando memórias. O absurdo está na vida, nos vícios ou síndromes privados, como divertidamente mostro em Delírio (2015). Cada pausa anuncia uma explosão do sentido. Além de um teatro parco de meios e agentes – e as minhas personagens são mais indicações do que nomes próprios, capazes de desdobramentos, se um encenador quiser seguir esse guião –, junte-se boa disposição, além de um pé no quotidiano que nos afecta.

Diferente das cinco que antecedem e seguem, O Divino (2002) narra os últimos momentos de Almeida Garrett. Há restos de um conflito conjugal, de amores fugidos, da amizade reatada com Alexandre Herculano, eu sei lá! Conheço tão bem este autor, que preferi olhar ao homem, do qual, por vezes, me julgo companheiro. Ele é o nosso primeiro intelectual, cosmopolita por excelência, que sabe vestir bem, unindo coragem e génio brincado. Dá nome a praças, e à mais central de Bragança, que, todavia, não nos lembra. Espoliado da pátria, soube, também soldado, recuperá-la.

A mais longa, Sábado (2012-2013), assenta neste dia de reflexão, véspera do voto. Como ganhar uma eleição contra sondagens e evidências? Deve ligar-se a Doença (2016-2017), inaugurada com longo comício, em que um decrépito Pai da Pátria sobrevive à custa de sósias. Do jornalismo venal a um atentado gratuito, vale tudo, neste pântano e seus miasmas. À atenção, pois, de leitores e eleitores. Outra forma de sobrevivência, cínica e abjecta, é propor uma Guerra Civil (2019). Nesta trilogia, com micro-histórias onde, a par da denúncia, não deixo de exaltar valores, está a violência do nosso tempo, manipulador, em que se respira menos do que julgamos.

Deve a arte, entretanto, opor-se a qualquer veio de tirania; dizê-lo claramente em palco, a bem da nossa saúde.         

sexta-feira, 5 de março de 2021

Teatro

 Acabo de editar Teatro, 11 peças escritas entre 1973 e 2020, num total de 570 páginas.

Com excepção da dedicada a Almeida Garrett, O Divino, abordam questões de Poder - desde a vigilância policial no estertor do Estado Novo às relações interpessoais -, manipulação e vingança. São histórias que, mesmo em suspenso ou nas soluções delirantes, deixam germinar um grão de dignidade.