Voltamos ao Rio, ao mesmo hotel, ao mesmo cenário, para celebrar duzentos anos de um Grito, cem dos quais vividos por minha mãe.
Ernesto Rodrigues, A Terceira Margem
Vamberto Freitas
Edmund Wilson, uma muito antiga referência minha quanto a crítica ou ensaísmo sobre qualquer escritor, costumava ter como ritual inicial lavar as mãos num gesto simbólico de limpar a consciência para que fosse justo com o autor e particularmente com o livro em causa. Desde há muito que o imito, mas para ainda acertar o meu cérebro à escrita que devo tentar – tentar – fazer justiça à obra em análise e o “julgamento” sempre inevitável nestes instantes. A obra ensaística, poética e romanceada de Ernesto Rodrigues tem sido um acto substancial em todos os sentidos, e escrevi sobre alguns dos seus romances, e com o maior prazer da leitura ou do texto em si próprio. Ler um grande romance deste autor é, como indica o título deste meu texto, entrar irremediavelmente num labirinto literário cujo desafio nunca será procurar uma saída, uma conclusão declarada, mas sim a caminhada entre o desconhecido, e nunca necessariamente a vontade de ver a luz ao fundo da aventura de estarmos meio perdidos entre palavras, diálogos, tempos ou parágrafos narrativos, por vezes tão obscuros como os mistérios verdejantes dos míticos corredores demasiado antigos, mas que representa a condição humana na sua incerteza quanto ao seu destino, sorte, salvação ou morte na nossa incapacidade de encontrarmos de novo uma outra vida e a bondade dos deuses. A Terceira Margem – título feliz dado o nosso crescente hábito de falarmos em povos irmãos mas distantes – tem aqui outra significação: a bondade, a justiça que sempre falta, e muito especialmente a crueldade dos homens e mulheres entre si. Estamos aqui não só ante uma história de séculos, que se estendem de por duzentos e sessenta e seis anos, como avançamos para um futuro que se aproxima, 2020.
A nova crítica americana que vem desde os anos 40 do século passado, sugeria algumas pistas, ou deveres, da ficção, digamos maior: ironia, tom de linguagem, ponto de vista, ambiguidade, tempo histórico, palavras inusitadas na narração, entre outras peças para a análise ou aproximação a textos poéticos e ficcionais. Eliminaram a biografia do autor, e ainda mais a sua reputação entre os seus iguais ou colegas. Toda a teoria da literatura que vem até aos nossos dias não passa de cópia, versão-outra ou “cientificidade” dos mestres sulistas iniciais. O texto, qualquer texto criativo, tinha de se auto-sustentar, ou de nada valia. Só discordo do meu mentor livresco de uma coisa: a biografia de um autor tem tudo a ver com as suas invenções, nenhum deles poderá fugir a esse inevitável pormenor, dos seus sentimentos ou experiência de vida. Foi assim que certa literatura norte-americana se impôs ante os modernistas nova-iorquinos, e elevou os escritores das mais díspares geografias ao seu devido lugar, em pouco levando William Faulkner ao Prémio Nobel (era considerado até então um escritor mais ou menos “regionalista” ou obscuro). Resisto a comparar os nossos escritores a outros, seria como retirar a sua originalidade e capacidades próprias, como ombrearam com os seus pares no restante mundo sem nada dever-lhes. Bem sei que isto poderá ser um exagero da minha parte, pois os escritores lêem-se uns aos outros e consequentemente recebem influências várias. A chamada “universalidade” de uma peça literária é muito difícil de definir. Só a condição humana é universal, as boas obras que nascem de qualquer língua ou cultura poderão ser categorizadas, mas a sua originalidade, repetindo-me aqui, permanece ante qualquer leitor minimamente bem informado ou lido, dentro e fora das geografias em que nasce e vive.
A Terceira Margem tem como fundo referencial sete gerações que descendem de Pedro Álvares Cabral, o navegador que parte para Índia mas antes de lá chegar deixa o padrão português no que viria a ser o Brasil. Como diria José Saramago: a divisão entre autor e narrador é uma invenção dos académicos, que a certa altura nas décadas passadas caíram na ilusão de se sobreporem arrogantemente aos próprios verdadeiros artistas da palavra ou da narração ficcional. Neste mais recente romance de Ernesto Rodrigues não só existem tempos distanciados da narrativa, como também a movimentação do seu narrador ou narradores. Partimos do Brasil, naturalmente, de Portugal e ainda de Budapeste, a que o autor está para sempre ligado por razões de ensino universitário, assim como relacionamentos íntimos e cujo sangue do seu sangue, creio, continua por lá. Uma das características deste seu labirinto vai muito além da história inicial da nossa eterna ligação ao grande país que descobrimos – desculpem, “achamos” – que tanto podem ser relembradas já nos anos 60 do século XX, como dos anos mais próximos de nós. Tudo é contado ou meramente imaginado pelas gerações seguintes. De grandes e estranhos acontecimentos dos seus ou das suas alegrias é feito esta história, sempre com a tragédia de um ou uma a espreitar a sua vida corrente ou sugerindo um outro futuro. Não, não se trata da história inicial da nossa chegada ao Novo Mundo que está aqui em causa. É o futuro dos que seguiriam século após século que os narradores nos transmitem em linguagens ora claras, ora sugestivas, ora ambíguas ou incertas, umas acreditáveis outras parecendo-nos pura invenção ou desorientação mental. Amores e desamores, felicidade, ou dor se se estar vivo e, ainda em perpétuas andanças, mesmo quase todos vindos do longínquo antecessor maior e herói de uma pátria que hoje, bom, não está nunca desfeita, mas sempre à procura de uma outra identidade e integração num mundo que outrora ligou, globalizou com a conhecida violência e com a saudade das praias quietas no seu Ocidente nunca totalmente aceite, ou aceite com perplexidade e mesmo com desconfiança. Cada palavra em A Terceira Margem é de uma viveza inusitada, prendendo o leitor adentro das suas voltas entre “paredes” e à procura da tal luz de saída e conclusão.
“Quando assim, em ferida aberta, os regressos são lentos, sem interesse pela paisagem, que também cansa o corpo desejoso de cicratizar no Tejo. O Expresso d’Orient, no seu luxo de fantasia, fê-lo descer em Paris. O Sud Express, em Lisboa e no Hotel l’Europe, onde chegou a 7 de Dezembro, e soube que também a família imperial. Após dor e indiferença, serenava”.
Fala-se aqui de um dos protagonistas que havia visitado a Exposition Universelle em Paris. Pouco antes disso, fala nos brasileiros que, ouviu discursar em 1880, em festa dedicada a Camões. O círculo está a fechar-se, sem o corte, sempre sem corte, entre uns e outros. Eu tive um outro mentor na faculdade da Universidade Estadual da Califórnia que nos exigia sempre responder à pergunta: isto é um romance optimista ou pessimista? Respondia que nem uma coisa nem outra. Era mais uma representação do estado imemorial em que a Humanidade sempre viveu. As glórias e a tragédias de cada ser humano nunca estariam desligadas. É isso mesmo o que o leitor pensa ou pensará deste grande romance A Terceira Margem. A bondade de uns e a maldade de outros, o carinho de uns sempre seguido da crueldade de outros, a liberdade em convivência com a escravatura, de que nós portugueses somos e sempre fomos mestres, a culpa e a inocência tantas vezes indecifrável.
Já escrevi sobre outros romance de Ernesto Rodrigues e conheço mais ou menos bem a sua obra sobre várias facetas da nossa História, e até os seus livros sobre a nossa imprensa durante regimes muito diferentes. Lê-lo é a aprendizagem de factos, opiniões e, sim, de certo modo, fantasia. Só que há opiniões totalmente baseadas na ignorância, e outras fundamentadas no conhecimento dos factos, ou saídas de relevantes obras de arte, relembro uma vez mais. É esta última afirmação que se aplica por inteiro à presente ficção de Ernesto Rodrigues.
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Ernesto Rodrigues, A Terceira Margem, Lisboa, Guerra & Paz, 2021. Publicado na minha página “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 10 de Setembro, 2021.
AÇORIANO ORIENTAL
SEXTA-FEIRA, 10 DE SETEMBRO DE 2021
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