sábado, 2 de abril de 2016

O autor apresenta Uma Bondade Perfeita


 Caros Amigos e Leitores

Reencontramo-nos na segunda Livraria mais antiga deste país, aonde é sempre bom voltar, gratos ao nosso anfitrião João Paulo. Também regularmente, torno à Gradiva, numa relação que vem de 1988, embora mais intensa desde 2010. Além do editor Guilherme Valente e de Rodolfo Begonha [cuja apresentação agradeço], o trabalho de edição faz-se com Fátima Carmo e sua particular ciência do texto, que nos melhora, logo seguida pela atenta produção de Sónia Rodrigues e a delicadeza de Helena Rafael, nos contactos com o universo da crítica.
Respeito a crítica, enquanto oficial da letra pública desde os 14 anos. Conheço as suas limitações, alcance e bastidores. Não me posso queixar da recepção, desde a primeira novela editada, em 1980. Melhor: desde a estreia em livro, em 1973. Ao mesmo tempo, o historiador da literatura que já fui – hoje, faço história da cultura -, e primeiro responsável pela actualização do Dicionário de Literatura, de Jacinto do Prado Coelho, sabe das contingências da fortuna literária e como, nestas artes, tudo é precário. Vale-nos o quê? A atenção que dedico a, entre outros, o Gil Vicente de Exortação da Guerra, cruzadismo com péssimas consequências nos dias de hoje, um Fernão de Oliveira que deu O Romance do Gramático saído na Gradiva, um Tomé Pinheiro da Veiga e sua Fastigínia, a quem dediquei 23 anos (mas continuo a pensar nele) e me exigiu milhares de euros, um António Pedro Lopes de Mendonça fundando o primeiro jornal socialista em 1848, algum Herculano, Camilo Castelo Branco, de quem acabo de editar criticamente A Queda Dum Anjo, nos seus 150 anos. É como se deparasse com alguém da minha família literária, que gostava de apresentar a tantas presenças, que agradeço fundamente.
No quadro dessa contingente fortuna literária, valem as ligações que eu possa estabelecer com os leitores, talvez despertos para o monólogo final de Molly Bloom, ao lerem as últimas palavras da minha heroína, no fluxo verbal sem pontuação. Ora, é a diferença, na admiração por outrem, que importa: Joyce faz de personagem grosseira uma incontinente; a minha, contida, no verbo e na vida sucinta, acrescenta à moral restrita uma conduta de vida saturada no próprio nome grego, em que Ágata significa bondosa. Este é um exemplo de interposição que o leitor crítico deveria fazer; se o não fizer, se tresler ou nem abrir o livro, está no seu direito. Um autor depende de si mesmo, ou isso defendo, tendo concluído, segundo a história literária, que os favores ao público e mil cedências não trazem amanhãs. Quem me dera que um leitor – um leitor, ao menos -, no crepúsculo dos nossos dias e vidas, pudesse dizer: «A penumbra tecia seus ângulos». Que, frente ao espelho, dissesse: «Este espelho fica-me bem.» Deguste cada um, lentamente, a claridade desta prosa, e isso me basta, se a minha anonimia significar uma frase na boca de alguns. Todos dizem de Portugal «jardim da Europa à beira-mar plantado», e poucos sabem quem assim o definiu; eu repito muitas vezes «A noite cegava os caminhos», e ninguém se lembra ser frase de um conto de cego ilustre, Jorge Luis Borges.
Peço pouco, à medida do prazer insensato que me dá escrever, e dialogar sobre estas matérias, se quiserem interpelar-me, no final.

Terminei Uma Bondade Perfeita em 8-IV-2010. Há seis anos, falava-se pouco de refugiados, mas eu sentia que essa condição em que ciclicamente se vê a humanidade voltaria a assombrar a Europa e o Mediterrâneo. Quando entreguei o original à editora, mal começara drama que é o pão amargo de cada dia.
O pano de fundo de uma catástrofe colectiva remetia-nos, ao tempo, para o Afeganistão. Decidi, assim, colocar aí, numa guerra e lugares indefinidos, com vítimas de carne e osso, as cenas mais atrozes, em que iriam mover-se percursos individuais, determinados por um sujeito moralmente deformado, e seus cúmplices.  A maldade suprema foi despejar bombas sobre uma tenda com centenas de miseráveis em fuga só para matar uma criança, talvez filho: assassinar este seria um crime; mas, se fossem centenas, seria uma estatística, adaptando o perfeccionista Adolf Eichmann. (Em boa verdade, este disse, em Budapeste, que cinco mil mortos eram uma catástrofe e cinco milhões uma estatística.) Nos estados-maiores aliados e nos media corruptos, falar-se-ia em «fogo amigo» e «danos colaterais»… Estamos habituados a este discurso. Se o crime fosse dos outros, seria um acto terrorista. Eis indecências da História, em maiúsculas.
O argumento decorre entre 22 de Fevereiro e 8 de Março de 2010, com missa de sétimo dia por alma da heroína, Ágata, judia que se convertera ao catolicismo e trazia medalha de Nossa Senhora de Fátima, aonde prometera levar nos braços o seu filho do coração. Não cumpriu, por culpa do Céu. Para compreensão do todo, precisamos, todavia, de recuar 26 anos na voz do jovem autobiógrafo Clemente e 40 anos na palavra do ex-jornalista, agora frade, Filodemo, ou amigo do povo, o qual conta as sucessivas paternidades de Menigno e percebe o significado deste nome próprio, a fim de o vencer. Em poucas horas, entre 5 e 6 de Março, essas duas vozes erguem incidentes dos últimos 15 dias e resumem décadas.
Desde Janeiro de 2010, Clemente apanha o penúltimo comboio para um estranho emprego: ser carrasco em prisão vazia, dirigida por um psicopata que dele faz vítima e isco. Este projecta aniquilar cinco filhos e duas mulheres (uma filha também é neta), para, com uma agente secreta inglesa, viver a reforma em beira-mar privativa. Como chegou aí esse filho de pai violento e lúbrico?
Menigno casa com Violeta, de quem tem duas filhas: Irma e Ágata. Responde à mulher com água a ferver, levando-a ao suicídio. Afaga mágoas na viúva dona Mercedes, com dois filhos – o médico Hipócrates e a professora de línguas Alcina -, nela gerando terceiro filho, Benévolo. Ameaçada com a revelação deste rebento, dona Mercedes aceita que Alcina case com Menigno. Mas esta gosta de um jornalista, Filodemo, que investiga a morte de Violeta; e engravida.  
Menigno encontra sentido para a sua vida se se vingar de Alcina, que deserta de casa com o filho, para se dedicar a organização não-governamental de apoio aos refugiados, no outro lado da fronteira afegã, no Paquistão.  A bondade mecânica de Alcina precipita o enredo. Esta personagem vem do Orlando Furioso, passa em Albinoni, desemboca na ópera Alcina (1735), de Händel, e a sua pertinência intertextual fica para os críticos.
A identidade de Clemente é o segredo destas páginas. Até aos dois anos, conheceu, em casa, um homem violento, que talvez justifique fuga da mãe. Desta, além de um cobertor de bebé, guardou um perfume, que, agora, o sobressalta na prisão: recebeu ordem de a executar e, por isso, recorre ao frade. É a cena inicial. Mas nenhum dos narradores sabe a história completa, que só Alcina e a mãe, dona Mercedes, conhecem. A solução está na décima segunda linha a contar do fim.
Dona Mercedes, também na ironia deste nome próprio, foi despojo, e continua presa de Menigno, que nela gerou Benévolo, um infeliz assassinado na estação de comboio, onde tem bar aberto. Quem culpar? Resolvido este passado, dona Mercedes ainda agradece que o filho médico, Hipócrates, tenha emprego inútil na cadeia.
Alcina fora, entretanto, perseguida, já não só por Menigno, mas também pelo coração de Filodemo. Quando troca o jornalismo pela vida monástica, daquela só fica memória pintada por um mestre italiano. Clemente é parecido com esse Menino Jesus, se não é reencarnação, olhando-se sereno, bem alimentado, e já fugitivo nos braços de Ágata. O contraste da capa explicita duas formas – ideal e terrena - de ser mãe. Choca-nos a injustiça que afecta milhões, refugiados ou não. Se «A justiça é a grandeza das nações», como lemos em Provérbios, 14: 34, é caso para concluir: falta grandeza a certas nações; falta grandeza ao Ocidente civilizado. Mas não só de justiça vive o homem.
Entra, na circunstância, uma breve, muito breve, carta 34 de Séneca a Lucílio. Séneca, envelhecendo, alegra-se com os progressos do discípulo: «Tu estás ligado a mim, és obra minha.» Louva-lhe a vontade de ir em frente, pois «o começo é só por si metade da obra». Tudo vai da vontade, «e por isso uma grande parte da bondade consiste em querermos ser bons». Ora, querer não chega, como se diz Clemente.
Alcina reorganiza vidas no lado de lá, na fronteira paquistanesa; de facto, foge a um amor proibido pela mãe, dona Mercedes. Sem vontade própria, mecanicamente altruísta, não persegue o bem supremo da paz de consciência, e, se ajuda uns, abandona o filho aos cuidados de uma jovem funcionária.
Em contraponto, Clemente e Ágata, sua verdadeira mãe, são modelos de um sofrimento que não procuram, atingindo os cimos da bondade, assim expressa por Séneca: «Sabes o que eu chamo ser bom: ser de uma bondade perfeita, absoluta, tal que nenhuma violência ou imposição nos possa forçar a ser maus.» Se acrescentarmos coerência entre palavras e actos, estaremos no «caminho da verdade». É este o propósito de Filodemo, que não abandona o projecto moral de, no antigo jornal, influenciar a verdade. Filodemo triangula essa bondade perfeita ­ jamais obra de um sujeito atomizado ­, ao lutar, magnânimo, pela mulher que dele se afastou.
Menigno, modelo vingador, arquitecta em sete passos assassinos o fim da linhagem. Teve veleidades políticas, que a morte da primeira mulher turvou. Ajudado por quem ajudou a subir na hierarquia dos serviços secretos ingleses, que localizaram Alcina na fronteira asiática, julga dar o golpe final, sem dramas de consciência, se a morte do filho ocorrer entre centenas de refugiados, atraindo, assim, mulher esquiva. Mas o jornalista, que o segue desde Londres, salva a criança…
A maldade retoma-se. Já se livrou do filho Benévolo. Tem na bilheteira da estação a filha e neta Indira, que acusa de homicida, maneira de atrair Ágata à casa da irmã Irma, onde um serventuário espia os contactos com Alcina. Clemente, se não morreu na tenda, sob bombas da aviação aliada, licenciou-se para o desemprego e aceitou, em Janeiro de 2010, o trabalho de carrasco. Não sabe quem é Menigno; não vê a mãe desde os dois anos; ignora que Hipócrates, médico da prisão, é seu tio; que a proprietária da Casa de Vidro é irmã de Ágata. Em 22 de Fevereiro, segunda-feira, ao ir apanhar o comboio, depara com uma loja de espelhos onde fora casa de mau porte. Entrevê um rosto e entra. Na demanda de outrem, vê-se, pela primeira vez, demoradamente, ele que nem espelho tinha para se barbear. Começa a criar uma identidade. Simultaneamente, tem uma visão: se é impossível ser Ágata (mas não há impossíveis; é mesmo ela), porque não o rosto da filha raptada?
Isso confirma no dia seguinte, quando os jornais anunciam a execução desse rosto. Ora, na qualidade de carrasco ele não confirma, e a Imprensa sensacionalista, que não costuma autocriticar-se, reconhece que deu a notícia demasiado cedo: falta o assassínio de Benévolo para, então, sim, incriminar Indira.   
Emerge lição: a humanidade não se salva se o mal nos torna maus, pois seremos iguais a quem nos venceu. É isso a escalada da guerra, não raro alimentada pelos media e seus manipuladores. Ser defensivo é outra coisa, e, desde logo, obviar à iniquidade, que conduz à servidão, nem que a única saída, sempre em aberto, seja a morte – morte digna, como a de Ágata.
Diz Séneca, na carta 70, que «o sábio prolongará a sua vida enquanto dever, e não enquanto puder. […] Deve ter no pensamento a qualidade da vida, não a sua duração. […] Morrer mais cedo, morrer mais tarde ­ é questão irrelevante; relevante é, sim, saber se se morre com dignidade ou sem ela, pois morrer com dignidade significa escapar ao perigo de viver sem ela!» Estas palavras seriam úteis ao debate sobre a eutanásia, enquanto resposta digna a um mal reconhecidamente incurável.
Se o maldoso quer os outros maldosos ­ com que alcança vitória ­, façamos-lhe frente. Assim se executa antigo jornalista, enquanto assiste à vergonha de muitas primeiras páginas manipuladas, noticiando alegada execução de alegada assassina, Indira, filha e neta do psicopata Menigno, repito, que quer, assim, atrair mãe, Ágata, e protectora desta, Alcina, para que seja o filho destas, o carrasco Clemente, a executá-las. É um plano tenebroso.
Ao sair da prisão, subir a colina e socorrer-se do frade, Clemente e Filodemo retrospectivam, alternadamente, várias existências, até à hora madrugadora em que descem, entram na prisão, Filodemo combate Menigno e Clemente liberta a mãe biológica. O romance é qual teia ficcional em que, nos nomes próprios e comportamentos oblíquos, todas as personagens caem, semelhando a maranha urdida por Menigno. Este é ajudado pelos ingleses, em particular, Carmela, e, já neste país nunca citado, de beira-mar proibida, cuja linha de comboio ele também controla, servem-no a ardina Restituta, o chefe da estação e revisor, que ora se chama Sérvulo, ora Sicário, e explora a ingenuidade de Irma, bem como explora o barman Benévolo, vítima desta saga criminosa.
Na agilidade fílmica da prosa, com diálogos vivos e final surpreendente, além de virtudes estilísticas que deixo ao apetite dos leitores, pergunto se a humanidade perdeu a sua raiz vocabular, do adjectivo humano, que, no francês ‘humain’ (c. 1150, ou 1160), já tinha o sentido de ‘compreensivo’ e ‘bondoso’. Quando penso em modelos, lembro duas mães que também eu tive, iguais em virtude: minha Mãe (que prometeu levar-me nos braços a Fátima, e não cumpriu, pois eu cresci depressa) e a irmã primogénita, Maria de Lourdes.
Concluo. Este romance é um alerta contra a desumanidade, eivada de mil injustiças; pede-se inteligência, para que nada nos force a ser maus. Mas falta o essencial, em que António Lobo Antunes me corrobora. Num momento inspirado, disse ele ao Diário de Notícias (5-XII-2015): «Temos a mania de que a inteligência é a maior virtude, mas a bondade é maior.» Sim: se for uma bondade perfeita


 [Texto da apresentação, em 31-III-2016.]

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Na morte de Kertész Imre

Sem Destino

Passou nas salas portuguesas o filme húngaro Sem Destino (produzido com o Reino Unido e Alemanha, 2005), adaptado de Sorstalanság (1975), com que Imre Kertész (Budapeste, 1929) relança a carreira, até ao Prémio Nobel da Literatura, em 2002.
Fui à antestreia, feliz por ter sido adoptado no filme o título breve que propus em 2003 – saíram quatro edições e, depois desse, traduzi outros quatro do autor –, além de coincidências do guião em que a legendagem me retomava, e curioso, ao mesmo tempo, por ver como o realizador Lajos Koltai resolvia problemas (não vou alargar-me nisso) como a variedade linguística num campo de concentração, que me obrigara a dezenas de notas. Reduziu esse aspecto ao mínimo; não conseguiu transmitir sensações, odores, ironias e ingenuidades que o texto dá; mas, em densos 134 minutos, sai obra digna, mesmo notável, sessenta anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. 
Há uma pergunta a fazer: mais um filme sobre o Lager, sobre os campos de extermínio? É verdade; é possível. Mas este argumento é mais do que isso, pois, sendo trabalhado do ponto de vista de um adolescente judeu de catorze anos e meio (idade do autor em 1944, quando é enviado para Auschwitz, passando, depois, por Buchenwal e Zeitz), transforma-se num outro tipo de crescimento dentro de rotina que é elogio da amizade e camaradagem; mais, ainda: embora sem saída, durante a guerra e no regresso à capital destruída, órfão de pai, György Köves (este apelido significa ‘pedregoso’) sabe que «não há absurdo que não se possa viver naturalmente».
A próxima experiência do mesmo autor, ao querer editar esse livro, contada em A Recusa, reitera tal conclusão, agora em regime de estalinismo doce. Ao jovem sobrevivente, mais do que as vicissitudes ou os «horrores» por que todos lhe perguntam, em cidade afinal demudada e hostil, interessa algo que «se assemelhava à felicidade», «lá, entre as chaminés, nos intervalos do sofrimento» (p. 183). Felicidade, vendo fios de fumo dos fornos crematórios? É verdade.
“O Holocausto como cultura” (título de conferência e livro) será, doravante, o principal tema de Kertész: alarga o conceito à experiência comunista, ao capitalismo selvagem que a esta sucedeu no seu país e a comportamentos sionistas em que se não reconhece. Torna-se, logo, um ser contra esses mundos – já questionando se faz sentido trazer filhos ao mundo, em Kaddish para Uma Criança Que não Vai Nascer –, agarrado à traumática vivência juvenil e a um complexo citacional maioritariamente de língua alemã (de que traduziu alguns dos principais autores), embora também extensivo a, por exemplo, um Bernardo Soares e seu Livro do Desassossego, em epígrafe no livro Um Outro. Crónica de Uma Metamorfose.
De prosa algo pesada, pouco literária – o segundo romance, A Recusa, será o melhor, em termos de composição, apesar de leitura difícil –, e com parca aceitação no seu país (o Nobel foi inesperado para todos), é, todavia, o mais traduzido. Este filme tem, ainda, o mérito de relançar cinematografia bem melhor do que a nossa.

[Reproduzido de Mensageiro de Bragança, 6-7-2006]


segunda-feira, 14 de março de 2016

Uma Bondade Perfeita

CONVITE

A Gradiva e a Livraria Ferin têm o prazer de a/o convidar
para o lançamento do romance
Uma Bondade Perfeita
de Ernesto Rodrigues

A obra será apresentada pelo autor.
A sessão terá lugar no próximo dia 31 de Março de 2016, quinta-feira, pelas 18h30, na Livraria Ferin, Rua Nova do Almada, 70-74, Lisboa.
Seguir-se-á uma sessão de autógrafos.


ENTRADA LIVRE

quarta-feira, 9 de março de 2016

Ensaios de Cultura

Ernesto Rodrigues, Ensaios de Cultura, Lisboa: Theya Editores. eBook.
Os 21 Ensaios de Cultura (1977-2015) assentam na complementaridade entre historiador e analista da cultura face a conjuntos culturais diversos. Convocados elementos visuais (vitral, artes plásticas, pequena escultura) e sonoros (fonógrafos, gramofones), domina o livro enquanto impresso, suas dedicatórias e seus brancos. Olha-se, desde mais acessível Idade Média, ao conto popular, à viagem, ao desporto, aos óculos, à polémica, ao elogio dos bombeiros e ao tema da Virgem e o Menino na Cultura Portuguesa; desde a Roma antiga, à fortuna dos nomes Célia e Lídia. A ilustração do idioma – com antológica de seiscentistas – decorre até hoje, ora dissecando o discurso político em 1976, ora intervindo em debates ainda acesos. Que personalidade cultural será, porém, a nossa, e que mitos alimenta? Essas mais longas reflexões decorrem do texto inaugural, qual introdução ao estudo da Cultura, que também sinaliza os princípios orientadores de uma entrega de décadas à investigação e ao ensino.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Museu da Língua Portuguesa



Historicamente, os Bragançãos, a par dos Sousas, constituem uma família estruturante do Reino: o derradeiro braganção, Nuno Mendes de Chacim, bisavô de Inês de Castro (e tendem os historiadores, cada vez mais, a casá-la com D. Pedro em Bragança, onde nasceu o segundo filho, D. João de Portugal e Castro), está sepultado no Mosteiro de Castro de Avelãs.
A riqueza dos falares, documentada em recolhas, do guadramilês ao barrosão, que beneficiaram, sobretudo, o riodonorês e, nos últimos 16 anos, o mirandês ‒ oficialmente, segunda língua nacional ‒, ganha muito com as relações transfronteiriças, em que concorrem os demais museus de Bragança.
Região felizmente conservadora do que importa aos etnógrafos e etnólogos ‒ hoje, antropólogos, musicólogos, etc., nacionais e estrangeiros ‒, em que os trabalhos e os dias se conjugam em expressões culturais e quadros linguísticos singulares, torna-se fácil carrear para um Museu da Língua materiais existentes ou inéditos, desde filmes sobre a região e autores a recolhas musicais ou cópia de papéis de José Leite de Vasconcelos depositados no Centro de Tradições Populares Manuel Viegas Guerreiro. Este, com a nova designação de grupo de Estudos de Tradições Populares, está integrado no Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras de Lisboa, centro que dirijo, onde temos grupos dedicados à África de língua oficial portuguesa e ao Brasil.
Projecto científico de escopo eminentemente pedagógico ‒ e, desde logo, seguramente visitado, como se percebe pela afluência estudantil ao Museu do Abade de Baçal e, mais do que estudantil, ao Museu Militar ‒, esta região, tradicionalmente ligada à emigração europeia, brasileira e africana, mas também à missionação, desde Quinhentos, tem oferecido ao País e à Língua, nestes seis séculos, nomes de respeito em várias frentes, como se prova em A Terra de Duas Línguas. Antologia de Autores Transmontanos (2011, 2013), volumes amplamente divulgados na Lusofonia.
Justifica-se, assim, um Museu da Língua Portuguesa, «projecto de extrema relevância para Bragança, que trará cá muita gente», como disse Hernâni Dias, presidente do município, em entrevista ao Mensageiro de Bragança (18-2-2016). Como estive na génese desta ideia, solicitado por Adriano Moreira há um ano, convém lembrar aos poderes públicos (Ministério da Cultura e Instituto Camões) esta precedência, quando outros, inspirados por um nefasto incêndio, se querem substituir ao Museu da Língua de São Paulo…
Com efeito, por iniciativa da Academia das Ciências de Lisboa, tivemos, em Fevereiro de 2015, na sede desta, uma reunião preparatória. Em Março, a mesma secção de Lexicologia e Lexicografia, sob a presidência do Professor Artur Anselmo, contou, já, com o presidente do Instituto Politécnico de Bragança. Em Junho e Julho, os académicos deslocaram-se a Bragança desde os citados a Telmo Verdelho, Fernando Sousa, etc. Em 4 de Setembro, constituiu-se, notarialmente, uma associação promotora do Museu, integrando a Academia das Ciências, o Instituto Politécnico e a Câmara Municipal. 
A Academia garante a matéria científica, o Instituto oferece um edifício e a Câmara responsabiliza-se pelas obras, candidatando-se a fundos comunitários. Acresce que, numa reunião em Bragança, interveio o anterior presidente autárquico, Jorge Nunes, agora bem situado, no Porto, na distribuição dos referidos fundos, e cuja experiência de 16 anos à frente da edilidade será muito útil.
O Museu ficou planeado no papel, à espera de futura arquitectura. Várias academias e outras instituições associaram-se. Houve, também, contactos junto de algumas personalidades. Constituídas as comissões executiva, científica e de curadores, falta aprontar o espaço físico, para que foi escolhido um antigo celeiro, de três torres, vistas de vários ângulos da cidade. Espero que esta ideia se concretize. Veiculei esta informação em mail para Ana Paula Laborinho, presidente do Instituto Camões, e minha colega na Faculdade de Letras de Lisboa. E noticiada, agora, pelo presidente do Executivo bragançano, deve criar-se um movimento de opinião pública que se espalhe ao país.

Jornal Nordeste (Bragança), 23-II-2016
  
    

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Os Noivos

Ernesto Rodrigues (selecção e fixação do texto),
Os Noivos, Lisboa, Âncora Editora, 2016
ISBN: 978-972-780-534-1


Trinta e um poemas de 26 autores nascidos entre 1392 e 1956 compõem a antologia Os Noivos, com selecção e fixação do texto de Ernesto Rodrigues. Não se trata somente de poemas de amor, que todos são; mas, desde o século XVII, encontramos a figuração do casal futuro, seja em nota disfórica, senão humorística, ou em reunião de vontades felizes. O interesse pelo tema recresce no século XIX, com larga cópia na Imprensa periódica (também aqui representada), embora a qualidade do verso nem sempre atinja altura lírica. Artistas maiores, todavia, resgatam, e eternizam, o estado noival.