sexta-feira, 1 de abril de 2016

Na morte de Kertész Imre

Sem Destino

Passou nas salas portuguesas o filme húngaro Sem Destino (produzido com o Reino Unido e Alemanha, 2005), adaptado de Sorstalanság (1975), com que Imre Kertész (Budapeste, 1929) relança a carreira, até ao Prémio Nobel da Literatura, em 2002.
Fui à antestreia, feliz por ter sido adoptado no filme o título breve que propus em 2003 – saíram quatro edições e, depois desse, traduzi outros quatro do autor –, além de coincidências do guião em que a legendagem me retomava, e curioso, ao mesmo tempo, por ver como o realizador Lajos Koltai resolvia problemas (não vou alargar-me nisso) como a variedade linguística num campo de concentração, que me obrigara a dezenas de notas. Reduziu esse aspecto ao mínimo; não conseguiu transmitir sensações, odores, ironias e ingenuidades que o texto dá; mas, em densos 134 minutos, sai obra digna, mesmo notável, sessenta anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. 
Há uma pergunta a fazer: mais um filme sobre o Lager, sobre os campos de extermínio? É verdade; é possível. Mas este argumento é mais do que isso, pois, sendo trabalhado do ponto de vista de um adolescente judeu de catorze anos e meio (idade do autor em 1944, quando é enviado para Auschwitz, passando, depois, por Buchenwal e Zeitz), transforma-se num outro tipo de crescimento dentro de rotina que é elogio da amizade e camaradagem; mais, ainda: embora sem saída, durante a guerra e no regresso à capital destruída, órfão de pai, György Köves (este apelido significa ‘pedregoso’) sabe que «não há absurdo que não se possa viver naturalmente».
A próxima experiência do mesmo autor, ao querer editar esse livro, contada em A Recusa, reitera tal conclusão, agora em regime de estalinismo doce. Ao jovem sobrevivente, mais do que as vicissitudes ou os «horrores» por que todos lhe perguntam, em cidade afinal demudada e hostil, interessa algo que «se assemelhava à felicidade», «lá, entre as chaminés, nos intervalos do sofrimento» (p. 183). Felicidade, vendo fios de fumo dos fornos crematórios? É verdade.
“O Holocausto como cultura” (título de conferência e livro) será, doravante, o principal tema de Kertész: alarga o conceito à experiência comunista, ao capitalismo selvagem que a esta sucedeu no seu país e a comportamentos sionistas em que se não reconhece. Torna-se, logo, um ser contra esses mundos – já questionando se faz sentido trazer filhos ao mundo, em Kaddish para Uma Criança Que não Vai Nascer –, agarrado à traumática vivência juvenil e a um complexo citacional maioritariamente de língua alemã (de que traduziu alguns dos principais autores), embora também extensivo a, por exemplo, um Bernardo Soares e seu Livro do Desassossego, em epígrafe no livro Um Outro. Crónica de Uma Metamorfose.
De prosa algo pesada, pouco literária – o segundo romance, A Recusa, será o melhor, em termos de composição, apesar de leitura difícil –, e com parca aceitação no seu país (o Nobel foi inesperado para todos), é, todavia, o mais traduzido. Este filme tem, ainda, o mérito de relançar cinematografia bem melhor do que a nossa.

[Reproduzido de Mensageiro de Bragança, 6-7-2006]


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