Sem Destino
Passou nas salas portuguesas o filme húngaro Sem Destino (produzido com o Reino Unido e Alemanha, 2005),
adaptado de Sorstalanság (1975), com
que Imre Kertész (Budapeste, 1929) relança a carreira, até ao Prémio Nobel da
Literatura, em 2002.
Fui à antestreia, feliz por ter sido adoptado no filme o título breve que
propus em 2003 – saíram quatro edições e, depois desse, traduzi outros quatro
do autor –, além de coincidências do guião em que a legendagem me retomava, e
curioso, ao mesmo tempo, por ver como o realizador Lajos Koltai resolvia
problemas (não vou alargar-me nisso) como a variedade linguística num campo de
concentração, que me obrigara a dezenas de notas. Reduziu esse aspecto ao
mínimo; não conseguiu transmitir sensações, odores, ironias e ingenuidades que
o texto dá; mas, em densos 134 minutos, sai obra digna, mesmo notável, sessenta
anos após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Há uma pergunta a fazer: mais um filme sobre o Lager, sobre os campos de extermínio? É verdade; é possível. Mas
este argumento é mais do que isso, pois, sendo trabalhado do ponto de vista de
um adolescente judeu de catorze anos e meio (idade do autor em 1944, quando é
enviado para Auschwitz, passando, depois, por Buchenwal e Zeitz), transforma-se
num outro tipo de crescimento dentro de rotina que é elogio da amizade e
camaradagem; mais, ainda: embora sem saída, durante a guerra e no regresso à
capital destruída, órfão de pai, György Köves (este apelido significa
‘pedregoso’) sabe que «não há absurdo que não se possa viver naturalmente».
A próxima experiência do mesmo autor, ao querer editar esse livro, contada
em A Recusa, reitera tal conclusão,
agora em regime de estalinismo doce. Ao jovem sobrevivente, mais do que as
vicissitudes ou os «horrores» por que todos lhe perguntam, em cidade afinal
demudada e hostil, interessa algo que «se assemelhava à felicidade», «lá, entre
as chaminés, nos intervalos do sofrimento» (p. 183). Felicidade, vendo fios de
fumo dos fornos crematórios? É verdade.
“O Holocausto como cultura” (título de conferência e livro) será,
doravante, o principal tema de Kertész: alarga o conceito à experiência
comunista, ao capitalismo selvagem que a esta sucedeu no seu país e a
comportamentos sionistas em que se não reconhece. Torna-se, logo, um ser contra esses mundos – já questionando se
faz sentido trazer filhos ao mundo, em Kaddish
para Uma Criança Que não Vai Nascer –, agarrado à traumática vivência
juvenil e a um complexo citacional maioritariamente de língua alemã (de que
traduziu alguns dos principais autores), embora também extensivo a, por exemplo,
um Bernardo Soares e seu Livro do
Desassossego, em epígrafe no livro Um
Outro. Crónica de Uma Metamorfose.
De prosa algo pesada, pouco literária – o segundo romance, A Recusa, será o melhor, em termos de
composição, apesar de leitura difícil –, e com parca aceitação no seu país (o
Nobel foi inesperado para todos), é, todavia, o mais traduzido. Este filme tem,
ainda, o mérito de relançar cinematografia bem melhor do que a nossa.
[Reproduzido de Mensageiro de
Bragança, 6-7-2006]
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