Caros
Amigos e Leitores
Reencontramo-nos
na segunda Livraria mais antiga deste país, aonde é sempre bom voltar, gratos
ao nosso anfitrião João Paulo. Também regularmente, torno à Gradiva, numa
relação que vem de 1988, embora mais intensa desde 2010. Além do editor
Guilherme Valente e de Rodolfo Begonha [cuja apresentação agradeço], o trabalho
de edição faz-se com Fátima Carmo e sua particular ciência do texto, que nos
melhora, logo seguida pela atenta produção de Sónia Rodrigues e a delicadeza de
Helena Rafael, nos contactos com o universo da crítica.
Respeito
a crítica, enquanto oficial da letra pública desde os 14 anos. Conheço as suas
limitações, alcance e bastidores. Não me posso queixar da recepção, desde a
primeira novela editada, em 1980. Melhor: desde a estreia em livro, em 1973. Ao
mesmo tempo, o historiador da literatura que já fui – hoje, faço história da
cultura -, e primeiro responsável pela actualização do Dicionário de Literatura, de Jacinto do Prado Coelho, sabe das
contingências da fortuna literária e como, nestas artes, tudo é precário.
Vale-nos o quê? A atenção que dedico a, entre outros, o Gil Vicente de Exortação da Guerra, cruzadismo com
péssimas consequências nos dias de hoje, um Fernão de Oliveira que deu O Romance do Gramático saído na Gradiva,
um Tomé Pinheiro da Veiga e sua Fastigínia,
a quem dediquei 23 anos (mas continuo a pensar nele) e me exigiu milhares de
euros, um António Pedro Lopes de Mendonça fundando o primeiro jornal socialista
em 1848, algum Herculano, Camilo Castelo Branco, de quem acabo de editar
criticamente A Queda Dum Anjo, nos
seus 150 anos. É como se deparasse com alguém da minha família literária, que
gostava de apresentar a tantas presenças, que agradeço fundamente.
No
quadro dessa contingente fortuna literária, valem as ligações que eu possa
estabelecer com os leitores, talvez despertos para o monólogo final de Molly
Bloom, ao lerem as últimas palavras da minha heroína, no fluxo verbal sem
pontuação. Ora, é a diferença, na admiração por outrem, que importa: Joyce faz
de personagem grosseira uma incontinente; a minha, contida, no verbo e na vida
sucinta, acrescenta à moral restrita uma conduta de vida saturada no próprio
nome grego, em que Ágata significa bondosa. Este é um exemplo de interposição que o leitor crítico
deveria fazer; se o não fizer, se tresler ou nem abrir o livro, está no seu
direito. Um autor depende de si mesmo, ou isso defendo, tendo concluído,
segundo a história literária, que os favores ao público e mil cedências não
trazem amanhãs. Quem me dera que um leitor – um leitor, ao menos -, no
crepúsculo dos nossos dias e vidas, pudesse dizer: «A penumbra tecia seus
ângulos». Que, frente ao espelho, dissesse: «Este espelho fica-me bem.» Deguste
cada um, lentamente, a claridade desta prosa, e isso me basta, se a minha
anonimia significar uma frase na boca de alguns. Todos dizem de Portugal «jardim
da Europa à beira-mar plantado», e poucos sabem quem assim o definiu; eu repito
muitas vezes «A noite cegava os caminhos», e ninguém se lembra ser frase de um
conto de cego ilustre, Jorge Luis Borges.
Peço
pouco, à medida do prazer insensato que me dá escrever, e dialogar sobre estas
matérias, se quiserem interpelar-me, no final.
Terminei
Uma Bondade Perfeita em 8-IV-2010. Há
seis anos, falava-se pouco de refugiados, mas eu sentia que essa condição em
que ciclicamente se vê a humanidade voltaria a assombrar a Europa e o
Mediterrâneo. Quando entreguei o original à editora, mal começara drama que é o
pão amargo de cada dia.
O pano
de fundo de uma catástrofe colectiva remetia-nos, ao tempo, para o Afeganistão.
Decidi, assim, colocar aí, numa guerra e lugares indefinidos, com vítimas de
carne e osso, as cenas mais atrozes, em que iriam mover-se percursos individuais,
determinados por um sujeito moralmente deformado, e seus cúmplices. A maldade suprema foi despejar bombas sobre
uma tenda com centenas de miseráveis em fuga só para matar uma criança, talvez
filho: assassinar este seria um crime; mas, se fossem centenas, seria uma
estatística, adaptando o perfeccionista Adolf Eichmann. (Em boa verdade, este
disse, em Budapeste, que cinco mil mortos eram uma catástrofe e cinco milhões
uma estatística.) Nos estados-maiores aliados e nos media corruptos, falar-se-ia em «fogo amigo» e «danos colaterais»… Estamos
habituados a este discurso. Se o crime fosse dos outros, seria um acto
terrorista. Eis indecências da História, em maiúsculas.
O
argumento decorre entre 22 de Fevereiro e 8 de Março de 2010, com missa de sétimo
dia por alma da heroína, Ágata, judia que se convertera ao catolicismo e trazia
medalha de Nossa Senhora de Fátima, aonde prometera levar nos braços o seu
filho do coração. Não cumpriu, por culpa do Céu. Para compreensão do todo,
precisamos, todavia, de recuar 26 anos na voz do jovem autobiógrafo Clemente e
40 anos na palavra do ex-jornalista, agora frade, Filodemo, ou amigo do povo, o qual conta as
sucessivas paternidades de Menigno e percebe o significado deste nome próprio,
a fim de o vencer. Em poucas horas, entre 5 e 6 de Março, essas duas vozes
erguem incidentes dos últimos 15 dias e resumem décadas.
Desde
Janeiro de 2010, Clemente apanha o penúltimo comboio para um estranho emprego:
ser carrasco em prisão vazia, dirigida por um psicopata que dele faz vítima e
isco. Este projecta aniquilar cinco filhos e duas mulheres (uma filha também é
neta), para, com uma agente secreta inglesa, viver a reforma em beira-mar
privativa. Como chegou aí esse filho de pai violento e lúbrico?
Menigno
casa com Violeta, de quem tem duas filhas: Irma e Ágata. Responde à mulher com
água a ferver, levando-a ao suicídio. Afaga mágoas na viúva dona Mercedes, com
dois filhos – o médico Hipócrates e a professora de línguas Alcina -, nela
gerando terceiro filho, Benévolo. Ameaçada com a revelação deste rebento, dona
Mercedes aceita que Alcina case com Menigno. Mas esta gosta de um jornalista,
Filodemo, que investiga a morte de Violeta; e engravida.
Menigno
encontra sentido para a sua vida se
se vingar de Alcina, que deserta de casa com o filho, para se dedicar a
organização não-governamental de apoio aos refugiados, no outro lado da
fronteira afegã, no Paquistão. A bondade
mecânica de Alcina precipita o enredo. Esta personagem vem do Orlando Furioso, passa em Albinoni,
desemboca na ópera Alcina (1735), de
Händel, e a sua pertinência intertextual fica para os críticos.
A
identidade de Clemente é o segredo destas páginas. Até aos dois anos, conheceu,
em casa, um homem violento, que talvez justifique fuga da mãe. Desta, além de
um cobertor de bebé, guardou um perfume, que, agora, o sobressalta na prisão:
recebeu ordem de a executar e, por isso, recorre ao frade. É a cena inicial. Mas
nenhum dos narradores sabe a história completa, que só Alcina e a mãe, dona
Mercedes, conhecem. A solução está na décima segunda linha a contar do fim.
Dona
Mercedes, também na ironia deste nome próprio, foi despojo, e continua presa de
Menigno, que nela gerou Benévolo, um infeliz assassinado na estação de comboio,
onde tem bar aberto. Quem culpar? Resolvido este passado, dona Mercedes ainda agradece
que o filho médico, Hipócrates, tenha emprego inútil na cadeia.
Alcina fora, entretanto, perseguida, já não só por
Menigno, mas também pelo coração de Filodemo. Quando troca o jornalismo pela
vida monástica, daquela só fica memória pintada por um mestre italiano. Clemente
é parecido com esse Menino Jesus, se não é reencarnação, olhando-se sereno, bem
alimentado, e já fugitivo nos braços de Ágata. O contraste da capa explicita
duas formas – ideal e terrena - de ser mãe. Choca-nos a injustiça que afecta
milhões, refugiados ou não. Se «A justiça é a grandeza das nações», como lemos
em Provérbios, 14: 34, é caso para concluir:
falta grandeza a certas nações; falta grandeza ao Ocidente civilizado. Mas não
só de justiça vive o homem.
Entra,
na circunstância, uma breve, muito breve, carta 34 de Séneca a Lucílio. Séneca,
envelhecendo, alegra-se com os progressos do discípulo: «Tu estás ligado a mim,
és obra minha.» Louva-lhe a vontade de ir em frente, pois «o começo é só por si
metade da obra». Tudo vai da vontade, «e por isso uma grande parte da bondade
consiste em querermos ser bons». Ora, querer não chega, como se diz Clemente.
Alcina
reorganiza vidas no lado de lá, na fronteira paquistanesa; de facto, foge a um
amor proibido pela mãe, dona Mercedes. Sem vontade própria, mecanicamente
altruísta, não persegue o bem supremo da paz de consciência, e, se ajuda uns, abandona
o filho aos cuidados de uma jovem funcionária.
Em
contraponto, Clemente e Ágata, sua verdadeira mãe, são modelos de um sofrimento
que não procuram, atingindo os cimos da bondade, assim expressa por Séneca:
«Sabes o que eu chamo ser bom: ser de uma bondade perfeita, absoluta, tal que
nenhuma violência ou imposição nos possa forçar a ser maus.» Se acrescentarmos
coerência entre palavras e actos, estaremos no «caminho da verdade». É este o
propósito de Filodemo, que não abandona o projecto moral de, no antigo jornal,
influenciar a verdade. Filodemo triangula essa bondade perfeita jamais obra de um sujeito atomizado , ao lutar,
magnânimo, pela mulher que dele se afastou.
Menigno,
modelo vingador, arquitecta em sete passos assassinos o fim da linhagem. Teve
veleidades políticas, que a morte da primeira mulher turvou. Ajudado por quem
ajudou a subir na hierarquia dos serviços secretos ingleses, que localizaram
Alcina na fronteira asiática, julga dar o golpe final, sem dramas de
consciência, se a morte do filho ocorrer entre centenas de refugiados, atraindo,
assim, mulher esquiva. Mas o jornalista, que o segue desde Londres, salva a
criança…
A
maldade retoma-se. Já se livrou do filho Benévolo. Tem na bilheteira da estação
a filha e neta Indira, que acusa de homicida, maneira de atrair Ágata à casa da
irmã Irma, onde um serventuário espia os contactos com Alcina. Clemente, se não
morreu na tenda, sob bombas da aviação aliada, licenciou-se para o desemprego e
aceitou, em Janeiro de 2010, o trabalho de carrasco. Não sabe quem é Menigno;
não vê a mãe desde os dois anos; ignora que Hipócrates, médico da prisão, é seu
tio; que a proprietária da Casa de Vidro é irmã de Ágata. Em 22 de Fevereiro,
segunda-feira, ao ir apanhar o comboio, depara com uma loja de espelhos onde
fora casa de mau porte. Entrevê um rosto e entra. Na demanda de outrem, vê-se, pela primeira vez, demoradamente,
ele que nem espelho tinha para se barbear. Começa a criar uma identidade.
Simultaneamente, tem uma visão: se é impossível ser Ágata (mas não há
impossíveis; é mesmo ela), porque não o rosto da filha raptada?
Isso
confirma no dia seguinte, quando os jornais anunciam a execução desse rosto.
Ora, na qualidade de carrasco ele não confirma, e a Imprensa sensacionalista,
que não costuma autocriticar-se, reconhece que deu a notícia demasiado cedo: falta
o assassínio de Benévolo para, então, sim, incriminar Indira.
Emerge lição:
a humanidade não se salva se o mal nos torna maus, pois seremos iguais a quem
nos venceu. É isso a escalada da guerra, não raro alimentada pelos media e seus manipuladores. Ser
defensivo é outra coisa, e, desde logo, obviar à iniquidade, que conduz à
servidão, nem que a única saída, sempre em aberto, seja a morte – morte digna,
como a de Ágata.
Diz
Séneca, na carta 70, que «o sábio prolongará a sua vida enquanto dever, e não enquanto puder. […] Deve ter no pensamento a
qualidade da vida, não a sua duração. […] Morrer mais cedo, morrer mais tarde
é questão irrelevante; relevante é, sim, saber se se morre com dignidade ou sem
ela, pois morrer com dignidade significa escapar ao perigo de viver sem ela!»
Estas palavras seriam úteis ao debate sobre a eutanásia, enquanto resposta
digna a um mal reconhecidamente incurável.
Se o
maldoso quer os outros maldosos com que alcança vitória , façamos-lhe
frente. Assim se executa antigo jornalista, enquanto assiste à vergonha de
muitas primeiras páginas manipuladas, noticiando alegada execução de alegada
assassina, Indira, filha e neta do psicopata Menigno, repito, que quer, assim,
atrair mãe, Ágata, e protectora desta, Alcina, para que seja o filho destas, o
carrasco Clemente, a executá-las. É um plano tenebroso.
Ao sair
da prisão, subir a colina e socorrer-se do frade, Clemente e Filodemo
retrospectivam, alternadamente, várias existências, até à hora madrugadora em
que descem, entram na prisão, Filodemo combate Menigno e Clemente liberta a mãe
biológica. O romance é qual teia ficcional em que, nos nomes próprios e
comportamentos oblíquos, todas as personagens caem, semelhando a maranha urdida
por Menigno. Este é ajudado pelos ingleses, em particular, Carmela, e, já neste
país nunca citado, de beira-mar proibida, cuja linha de comboio ele também
controla, servem-no a ardina Restituta, o chefe da estação e revisor, que ora
se chama Sérvulo, ora Sicário, e explora a ingenuidade de Irma, bem como explora
o barman Benévolo, vítima desta saga
criminosa.
Na
agilidade fílmica da prosa, com diálogos vivos e final surpreendente, além de
virtudes estilísticas que deixo ao apetite dos leitores, pergunto se a
humanidade perdeu a sua raiz vocabular, do adjectivo humano, que, no francês ‘humain’
(c. 1150, ou 1160), já tinha o sentido de ‘compreensivo’ e ‘bondoso’. Quando penso em modelos, lembro duas mães que também eu
tive, iguais em virtude: minha Mãe (que prometeu levar-me nos braços a Fátima,
e não cumpriu, pois eu cresci depressa) e a irmã primogénita, Maria de Lourdes.
Concluo.
Este romance é um alerta contra a desumanidade, eivada de mil injustiças;
pede-se inteligência, para que nada nos force a ser maus. Mas falta o essencial,
em que António Lobo Antunes me corrobora. Num momento inspirado, disse ele ao Diário de Notícias (5-XII-2015): «Temos
a mania de que a inteligência é a maior virtude, mas a bondade é maior.» Sim: se
for uma bondade perfeita.
[Texto da apresentação, em 31-III-2016.]
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