Foi
com prazer e grande surpresa que li este livro que me levou a descobrir a
poesia de Ernesto Rodrigues, autor que só conhecia do ensaio e da narrativa de
ficção, sobretudo como romancista.
Impõe-se
desde já assinalar nos poemas deste livro um diálogo fecundo com alguns dos
maiores poetas da nossa tradição lírica, bem como das poéticas contemporâneas: com
Camões, com algum Cesário Verde, no registo coloquial, com Fernando Pessoa,
sobretudo com a obra ortónima e as odes de Ricardo Reis, naqueles poemas mais
curtos e próximos, de certo teor aforístico, por vezes. No seu aspecto formal,
deparamos essencialmente com uma escrita poética num registo de cariz
narrativo, registo que entre nós ganhou algum fôlego a partir do trabalho
poético dos autores do Grupo de Poesia 61.
Trata-se
de um livro que apresenta uma estrutura discursiva com variações de registo e
um cruzamento de linhas num jogo de vozes, mas também de imagens e memórias,
constituindo uma experiência visual, num misto
de celebração e angústia do sujeito
poético, além da grande intensidade que comporta o plano da sua dimensão
intertextual. E neles, na sua maioria, uma linha que liga à nossa memória
colectiva, à História, um elemento de
interseção dos poemas. E por essa via se inscreve, de certo modo, paradoxalmente, a modernidade
deste discurso poético, nos termos
que assinalou Jean-Marie Domenach (em O Regresso
do trágico), como forma de visitação poética ou cosmogonia que tem, fixados
no intertexto, plurais vasos comunicantes com uma literatura de exigência de
reflexão.
A dominante maior deste discurso poético
é a sua consciência histórica (que é uma consciência feliz), precisamente
porque a escrita poética, tendo neste autor uma dimensão ética fortíssima,
torna-se ao mesmo tempo testemunho e garantia da não-existencia daquilo que designamos
por má-consciência.
Lemos
no poema “Proposição” (p. 50):
«A
luz, a cor, o dom de minha terra
canto,
no tempo mau em que navego.
Queria
perceber, na forma nova,
dor que
rondou milénio, sobre mim,
e faz
do verso vate justo, cego,
eco
de homem, sua mesma prova;
olhar
de perto como sou – assim,
nosso
chão canto, bom, que Céu encerra.»
Direi,
portanto, abreviando um pouco, que nos situamos perante um discurso poético que
se movimenta no quadro de uma consciencia histórica, sendo esta o eixo
estruturante do discurso e das suas viagens. Viagens que surgem como
testemunho ou ofício do sujeito lírico enquanto operário de palavras desse seu edifício que vai construindo, ou, se
quisermos, das viagens necessárias ao percurso próprio desse universo. Vejamos
o exemplo, a este título, do poema “Do movimento operário e outras viagens”
(p.7):
« Não
deixa de ser curioso como, a tremer de frio, vou encontrar, num museu, a forja
de meu
pai.
Ele
emigrou em finais de 66, não consoou já connosco, nesse natal. No baixo,
continuava
tudo igual: cheiro a ferros, o coração do fole em repouso, a bigorna
em
recolhimento. Em dezembros seguintes, quando voltava,
não
dei por que houvesse mudanças. De facto,
a
minha educação não descia à oficina e, por isso, martelares sob a sala
onde eu
escrevia, demoras do pai na comida que arrefece, nunca
gostei
de trabalho escravo ─ e quanto a mãe se ralava! No entanto,
ele
era um artista de primeira. Solda mais perfeita! mãos mais empreendedoras!
Com
elas eu lia, estudei, dali fugi. Ontem (tão fora de natal, ainda),
como
de volta a casa de meu pai, reconheci
que
vasto sopro se acalenta na ferrugem dos materiais,
trazidos
de rupturas várias, despertando em cada consciência. Eis porque,
agora
que de vez emigrou para a sua própria casa, não encontrará, na oficina,
as
brasas extintas ao cabo de quinze anos. Nem, para exercer o gesto cuidado,
os
seus instrumentos. Ganhou riquezas caras: almoço a horas certas;
o
prazer de, num domingo, dar um salto ao museu fazer perguntas aos objectos.
Confirmarei
termos doado a forja, tenazes, o coração do fogo, bigorna, martelos.
As
devolvidas mãos eu pedirei, coisa de segundos, a meu pai.
O
tempo de, sem os irmãos verem, lhas
beijar;
depois, beber um copo à saúde.»
A
carga afectiva dos objectos de memória transforma-se numa função heurística intrínseca a este discurso poético,
neste quadro.
E daí
resulta uma dimensão mais complexa desta escrita: é uma poética que integra a
viagem como premissa do fazer poético, sendo a própria escrita a imagem de uma
viagem para o desconhecido, para o questionamento, essencialmente, como neste
fragmento do poema “Democracia” (p. 66):
«Nós não sabemos a origem do poema.
Como
se faz? Nasceu de quem? – Assim é
um
país, filho de um querer desvairado,
sem
razão própria, sonho de família,
de
sobrevivos, aptos para quanto
for
erigido. Entre sol e sono,
[…]»
Aqui
se constata que a relação com a História não é mera evocação do passado, porque
surge neste discurso como forma de viagem com um especial cariz: o passado
impõe-se como pretexto para interrogar o presente ou, mais concretamente, o
real do poema.
E o questionamento
persiste, prossegue, na página 53:
«A
luz, a cor, o dom
de
minha terra,
canto,
no
tempo mau em que navego.
Queria
perceber,
na
forma nova,
dor
que rondou milénio,
sobre
mim,
e faz
do verso
vate
justo, cego,
eco
de homem,
sua
mesma prova;»
O
contraste entre “a luz, a cor, / o dom” e
o “tempo mau” potencia a imagem de uma passagem para algo. Talvez se possa
assinalar de imediato aqui, entre outras linhas de trabalho que se abrem à
leitura destes poemas, a passagem da ideia de deserto como referente.
A
referência ao deserto do sujeito poético é elemento contíguo à imagem de isolamento,
do silêncio, também. O que testemunha, neste contexto, que a escrita poética
resiste nestes poemas contra uma certa angústia humana do presente. Relembro aqui, de forma oblíqua, Baudelaire,
precisamente na sua referência ao deserto.
Baudelaire foi o autor que colocou a imagem do deserto no
plano ontológico e a trouxe para a literatura (em Le Peintre de la Vie Moderne / O Pintor da vida moderna) há um
século e meio, quando se referiu ao “grande
deserto de homens”, na sociedade do século XIX, entre os elementos que o
artista apreende no meio em que vive.
E a imagem do deserto aparece explícita nestes
textos, até com certo registo irónico, por exemplo, no poema «Narrações” (p. 57):
«Um deserto de ser
– que
bom um deserto!
Sem
uma árvore, nem sombra vã,
sem
de areia um grão, sem
a
ideia, mesmo, de deserto.»
Neste
fragmento fica vincado ainda o contraste entre o problema, de ordem metafísica,
do “deserto de ser” e um “bom deserto”, “sem / a ideia, mesmo, de deserto”, e,
muito particularmente, através da modalização do discurso pelo sujeito (“– que
bom um deserto!”).
E ainda, no fim do poema (p. 61) :
«
Mar, deserto, cidade – quem procura,
do
vagir aos confins, perde-se bem:
no
oceano da tarde, que fundura,
coração?
Que bravia sombra vem,
ronronante,
levando-me por sobre
sonhos
gastos de pátria tão pobre?»
Neste poema, as imagens constituem
elementos concretos que nos remetem para a erosão da memória, da memória cultural,
porque “quem procura” “perde-se”, defronta-se com “bravia sombra” e “sonhos
gastos”. Há aqui uma certa desolação, um certo desacerto identitário também, que
podemos aproximar da situação de “grande deserto de homens”, que é expressão
que se pode aplicar à erosão que resulta das nossas sociedades contemporâneas,
na proporção exacta da avassaladora consolidação da tecnociência e da
desumanização crescente.
Por
isso, os textos deste livro surgem como foco de intensidade poética que sugere
ausências, veredas, à procura de uma experiência nova, que se nos impõe em cada
poema, como uma viagem à volta dessas imagens que nos questionam o tempo
presente, que lemos como se fossem páginas de um livro de memórias, livro de
questionamentos identitários, não sem alguma auto-ironia na arena da História,
como ilustram os poemas “História de Portugal” e “Pátria”.
No primeiro (p. 45), podemos ilustrar esses mesmos veios de questionamento
no fragmento seguinte:
A
1128
Sucedeu
43.
O
povo não era muito,
foi assim que Deus nos fez.
Ou no poema “Pátria”,
por exemplo (p. 46):
«Heróis do mar. Por
favor!
Heróis foram, no entanto.
Partiu-se a barca de espanto,
vogamos sempre em
redor.»
É
nesta ideia que vinca uma forte consciência crítica da memória colectiva, de um
fazer poético enquanto território de
questionamentos, que se inscreve também este livro de Ernesto Rodrigues.
Sabendo de antemão que o questionamento pode ter como resposta a ideia de mudança.
Mudança que antecipa a imagem do deserto, ou já de resposta à ideia de deserto,
como, por exemplo, o fragmento da página 58:
«Tudo
muda,
diz a
cidade
decadente.
Mas
transforma-se
em
presente,
que
outrem contará.»
Num
livro em que o espaço poético provém como explosão de memórias, tão importante
quanto a autenticidade e fonte de onde emana o seu discurso, a sua natureza, é
essa linha simbólica de demarcação, de um ponto onde se transcende a memória,
ou, no plano imanente de uma subjectividade, onde se configura o colectivo em
Nação ou em Pátria, questionados objectivamente. São elementos que se tornam
neste livro marcadores de linguagem e sustentam o poema como afirmação autónoma
ou autografia.
Do
sujeito poético e das suas experiências do mundo, em que se cruzam ecos de
algum do nosso passado colectivo, se expõe a memória do poema. Trata-se de uma
poética marcada por uma linguagem com grande dinâmica de narratividade e por um
forte realismo que lhes está implícito, o que surge como problema da
objectividade da linguagem.
George
Steiner, no seu livro Linguagem e
Silêncio, refere-se à importância da objectividade na linguagem, à qual não
podem ser alheios os escritores e da qual não escapam os filósofos:
Um
dos maiores filósofos modernos é também o que mais se esforçou por escapar à
espiral da linguagem […]. Com Wittgenstein, como com alguns poetas, é na luz e não na obscuridade que nós
mergulhamos para lá da linguagem[2].
Nestes
textos, e nesta manifesta tendência para a objectividade, perpassa alguma
leitura,esquematicamente, da imaginação como modo de resistência.
E, ao
mesmo tempo, o sujeito poético arrisca aqui um discurso para que se transcenda
a si mesmo, operando nessa linha alquímica
da questão identitária no ser do poema.
O território da palavra poética é aquele em que a imagem de si pode
precisamente transmudar-se na escrita como exercício de liberdade enquanto
linguagem. E, no caso deste livro, isso acontece pela reiterada implicação da
objectivação de que está impregnado este discurso.
Jorge
Maximino
[1] Ernesto Rodrigues, Do movimento operário e outras viagens,
Lisboa, Âncora Editora, 2013
[2]
George Steiner, Langage et Silence,
Paris, Seuil, p. 143.
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