quarta-feira, 1 de março de 2017

Do Movimento Operário e Outras Viagens




Do movimento operario e outras viagens  de Ernesto Rodrigues[1]



Foi com prazer e grande surpresa que li este livro que me levou a descobrir a poesia de Ernesto Rodrigues, autor que só conhecia do ensaio e da narrativa de ficção, sobretudo como romancista.
Impõe-se desde já assinalar nos poemas deste livro um diálogo fecundo com alguns dos maiores poetas da nossa tradição lírica, bem como das poéticas contemporâneas: com Camões, com algum Cesário Verde, no registo coloquial, com Fernando Pessoa, sobretudo com a obra ortónima e as odes de Ricardo Reis, naqueles poemas mais curtos e próximos, de certo teor aforístico, por vezes. No seu aspecto formal, deparamos essencialmente com uma escrita poética num registo de cariz narrativo, registo que entre nós ganhou algum fôlego a partir do trabalho poético dos autores do Grupo de Poesia 61. 

Trata-se de um livro que apresenta uma estrutura discursiva com variações de registo e um cruzamento de linhas num jogo de vozes, mas também de imagens e memórias, constituindo uma experiência visual, num misto de celebração e angústia do sujeito poético, além da grande intensidade que comporta o plano da sua dimensão intertextual. E neles, na sua maioria, uma linha que liga à nossa memória colectiva,  à História, um elemento de interseção dos poemas. E por essa via se inscreve, de  certo modo, paradoxalmente, a modernidade deste discurso poético, nos termos que assinalou Jean-Marie Domenach (em O Regresso do trágico), como forma de visitação poética ou cosmogonia que tem, fixados no intertexto, plurais vasos comunicantes com uma literatura de exigência de reflexão.
A dominante maior deste discurso poético é a sua consciência histórica  (que é uma consciência feliz), precisamente porque a escrita poética, tendo neste autor uma dimensão ética fortíssima, torna-se ao mesmo tempo testemunho e garantia da não-existencia daquilo que designamos por má-consciência.
Lemos no poema “Proposição” (p. 50):

«A luz, a cor, o dom de minha terra
canto, no tempo mau em que navego.
Queria perceber, na forma nova, 
dor que rondou milénio, sobre mim,
e faz do verso vate justo, cego,
eco de homem, sua mesma prova;  
olhar de perto como sou – assim, 
nosso chão canto, bom, que Céu encerra.»

Direi, portanto, abreviando um pouco, que nos situamos perante um discurso poético que se movimenta no quadro de uma consciencia histórica, sendo esta o eixo estruturante do discurso e das suas viagens. Viagens que surgem como testemunho ou ofício do sujeito lírico enquanto operário de palavras desse seu edifício que vai construindo, ou, se quisermos, das viagens necessárias ao percurso próprio desse universo. Vejamos o exemplo, a este título, do poema “Do movimento operário e outras viagens” (p.7):

« Não deixa de ser curioso como, a tremer de frio, vou encontrar, num museu, a forja de meu
                                                                                                                                                      pai.
Ele emigrou em finais de 66, não consoou já connosco, nesse natal. No baixo,
continuava tudo igual: cheiro a ferros, o coração do fole em repouso, a bigorna
em recolhimento. Em dezembros seguintes, quando voltava,
não dei por que houvesse mudanças. De facto,
a minha educação não descia à oficina e, por isso, martelares sob a sala
onde eu escrevia, demoras do pai na comida que arrefece, nunca
gostei de trabalho escravo e  quanto a mãe se ralava! No entanto,
ele era um artista de primeira. Solda mais perfeita! mãos mais empreendedoras!
Com elas eu lia, estudei, dali fugi. Ontem (tão fora de natal, ainda),
como de volta a casa de meu pai, reconheci
que vasto sopro se acalenta na ferrugem dos materiais,
trazidos de rupturas várias, despertando em cada consciência. Eis porque,
agora que de vez emigrou para a sua própria casa, não encontrará, na oficina,
as brasas extintas ao cabo de quinze anos. Nem, para exercer o gesto cuidado,
os seus instrumentos. Ganhou riquezas caras: almoço a horas certas;
o prazer de, num domingo, dar um salto ao museu fazer perguntas aos objectos.
Confirmarei termos doado a forja, tenazes, o coração do fogo, bigorna, martelos.
As devolvidas mãos eu pedirei, coisa de segundos, a meu pai.
O tempo de, sem os irmãos verem, lhas
beijar; depois, beber um copo à saúde.»
   
A carga afectiva dos objectos de memória transforma-se numa função  heurística intrínseca a este discurso poético, neste quadro.
E daí resulta uma dimensão mais complexa desta escrita: é uma poética que integra a viagem como premissa do fazer poético, sendo a própria escrita a imagem de uma viagem para o desconhecido, para o questionamento, essencialmente, como neste fragmento do poema “Democracia” (p. 66):

 «Nós não sabemos a origem do poema.

Como se faz? Nasceu de quem? – Assim é
um país, filho de um querer desvairado,

sem razão própria, sonho de família,
de sobrevivos, aptos para quanto
for erigido. Entre sol e sono, 
 […]»

Aqui se constata que a relação com a História não é mera evocação do passado, porque surge neste discurso como forma de viagem com um especial cariz: o passado impõe-se como pretexto para interrogar o presente ou, mais concretamente, o real  do poema.
E o questionamento persiste,  prossegue, na página 53:
  
«A luz, a cor, o dom
de minha terra,
canto,
no tempo mau em que navego.
Queria perceber,
na forma nova,
dor que rondou milénio, 
sobre mim,
e faz do verso
vate justo, cego, 
eco de homem,
sua mesma prova;»

O contraste entre “a luz, a cor, / o dom”  e o “tempo mau” potencia a imagem de uma passagem para algo. Talvez se possa assinalar de imediato aqui, entre outras linhas de trabalho que se abrem à leitura destes poemas, a passagem da ideia de deserto como referente.
A referência ao deserto do sujeito poético é elemento contíguo à imagem de isolamento, do silêncio, também. O que testemunha, neste contexto, que a escrita poética resiste nestes poemas contra uma certa angústia humana do presente.  Relembro aqui, de forma oblíqua, Baudelaire, precisamente na sua referência ao deserto.  Baudelaire  foi o  autor que colocou a imagem do deserto no plano ontológico e a trouxe para a literatura (em Le Peintre de la Vie Moderne / O Pintor da vida moderna) há um século e meio, quando se referiu ao “grande deserto de homens”, na sociedade do século XIX, entre os elementos que o artista apreende no meio em que vive.
 E a imagem do deserto aparece explícita nestes textos, até com certo registo irónico, por exemplo, no poema «Narrações” (p. 57):  

 «Um deserto de ser 
– que bom um deserto!
Sem uma árvore, nem sombra vã,
sem de areia um grão, sem
a ideia, mesmo, de deserto.»

Neste fragmento fica vincado ainda o contraste entre o problema, de ordem metafísica, do “deserto de ser” e um “bom deserto”, “sem / a ideia, mesmo, de deserto”, e, muito particularmente, através da modalização do discurso pelo sujeito (“– que bom um deserto!”).
 E ainda, no fim do poema (p. 61) :     

« Mar, deserto, cidade – quem procura,
do vagir aos confins, perde-se bem:
no oceano da tarde, que fundura,
coração? Que bravia sombra vem,
ronronante, levando-me por sobre
sonhos gastos de pátria tão pobre?»

       Neste poema, as imagens constituem elementos concretos que nos remetem para a erosão da memória, da memória cultural, porque “quem procura” “perde-se”, defronta-se com “bravia sombra” e “sonhos gastos”. Há aqui uma certa desolação, um certo desacerto identitário também, que podemos aproximar da situação de “grande deserto de homens”, que é expressão que se pode aplicar à erosão que resulta das nossas sociedades contemporâneas, na proporção exacta da avassaladora consolidação da tecnociência e da desumanização crescente. 
Por isso, os textos deste livro surgem como foco de intensidade poética que sugere ausências, veredas, à procura de uma experiência nova, que se nos impõe em cada poema, como uma viagem à volta dessas imagens que nos questionam o tempo presente, que lemos como se fossem páginas de um livro de memórias, livro de questionamentos identitários, não sem alguma auto-ironia na arena da História, como ilustram os poemas “História de Portugal” e  “Pátria”. No primeiro (p. 45), podemos ilustrar esses mesmos veios de questionamento no fragmento seguinte:

A 1128
Sucedeu 43.
O povo não era muito,
foi assim que Deus nos fez.               

Ou no poema “Pátria”, por exemplo (p. 46): 

 «Heróis do mar. Por favor! 
Heróis foram, no entanto.
Partiu-se a barca de espanto,
 vogamos sempre em redor.»

É nesta ideia que vinca uma forte consciência crítica da memória colectiva, de um fazer poético enquanto território de questionamentos, que se inscreve também este livro de Ernesto Rodrigues. Sabendo de antemão que o questionamento pode ter como resposta a ideia de mudança. Mudança que antecipa a imagem do deserto, ou já de resposta à ideia de deserto, como, por exemplo, o fragmento da página 58:

«Tudo muda,
diz a cidade
decadente.
Mas transforma-se
em presente,
que outrem contará.»

Num livro em que o espaço poético provém como explosão de memórias, tão importante quanto a autenticidade e fonte de onde emana o seu discurso, a sua natureza, é essa linha simbólica de demarcação, de um ponto onde se transcende a memória, ou, no plano imanente de uma subjectividade, onde se configura o colectivo em Nação ou em Pátria, questionados objectivamente. São elementos que se tornam neste livro marcadores de linguagem e sustentam o poema como afirmação autónoma ou autografia.
Do sujeito poético e das suas experiências do mundo, em que se cruzam ecos de algum do nosso passado colectivo, se expõe a memória do poema. Trata-se de uma poética marcada por uma linguagem com grande dinâmica de narratividade e por um forte realismo que lhes está implícito, o que surge como problema da objectividade da linguagem.
George Steiner, no seu livro Linguagem e Silêncio, refere-se à importância da objectividade na linguagem, à qual não podem ser alheios os escritores e da qual não escapam os filósofos:

Um dos maiores filósofos modernos é também o que mais se esforçou por escapar à espiral da linguagem […]. Com Wittgenstein, como com alguns poetas, é na luz e não na obscuridade que nós mergulhamos para lá da linguagem[2].

Nestes textos, e nesta manifesta tendência para a objectividade, perpassa alguma leitura,esquematicamente, da imaginação como modo de resistência.
E, ao mesmo tempo, o sujeito poético arrisca aqui um discurso para que se transcenda a si mesmo, operando nessa linha alquímica da questão identitária no ser do poema. O território da palavra poética é aquele em que a imagem de si pode precisamente transmudar-se na escrita como exercício de liberdade enquanto linguagem. E, no caso deste livro, isso acontece pela reiterada implicação da objectivação de que está impregnado este discurso.
Jorge Maximino









[1] Ernesto Rodrigues, Do movimento operário e outras viagens, Lisboa,  Âncora Editora, 2013
[2] George Steiner, Langage et Silence, Paris, Seuil, p. 143.

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