sábado, 21 de outubro de 2023

40 Anos de Camilo Castelo Branco

 


Índice

 

A Queda Dum Anjo

         Edição crítica

p. 13-218

 

A Queda Dum Anjo: citaxe

p. 220-285

 

Um Camilo global

p. 287-328

 

Anátema

p. 329-338

 

Eusébio Macário e A Corja

p. 339-362

 

Algumas personagens

Anátema (1851)

Mistérios de Lisboa (1854)

Livro Negro de Padre Dinis (1855)

Cenas Contemporâneas (1855)

Coração, Cabeça e Estômago (1862)

O Olho de Vidro (1866)

O Senhor Ministro (1882)

p. 363-472

 

Farpas inéditas contra Camilo

p. 473-485

 

Camilianos

p. 487-516

 

Albumista

p. 517-552

 

Camilo, poeta

         Antologia

p. 553-564; 565-737

        

Índices

p. 738-768

 

Fontes dos textos

p. 769-770

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Ensaios de Cultura


 


Ensaios de Cultura, Lisboa, CLEPUL, 2023, 644 p.

Índice:
O Estado da Cultura
Personalidade Cultural Portuguesa
Mitologia Nacional
O Casamento de Pedro e Inês
Geografia Particular: Trás-os-Montes e Alto Douro
Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança
“A Estalajadeira”
Impressões de Eternidade
Branco
Dedicatória: Relação e Discurso
Louvor e Ilustração da Língua Portuguesa
O Descobrimento do Brasil Intelectual pelos Portugueses do Século XX […]
Polémica: Um ‘Prato’ Nacional
O Discurso Político em 1976
Sob o Olhar de Hermes: Da Viagem à Vertigem
Serra da Lua
Notas de Viagem a Itália
Dante na Imprensa Periódica Oitocentista
A Literatura como Matriz do Património Artístico da Europa
João Vieira: Arte de Traduzir
Convite ao Mistério
Visão dos Tempos. Os Óculos na Cultura Portuguesa
Almanaque: Composição de Um Rosto
Fonógrafos e Gramofones
Coração Quente, Generosas Mãos
Jogos de Letras. O Desporto na Cultura Portuguesa
A Virgem e o Menino
Lídia, Célia

sexta-feira, 21 de julho de 2023

domingo, 16 de julho de 2023

A edição crítica da princeps d’Os Lusíadas


Os 450 anos d’Os Lusíadas foram celebrados com a edição crítica da princeps (1572), que Rita Marnoto vinha anunciando em artigos de 2021-2022, um dos quais no JL: «Qual é a edição princeps de Os Lusíadas? Um ponto final» (n.º 1336, 15-12-2021). Agora, numa exposição informadíssima, clara e serena, narra-se aventura que deveria suscitar mais do que um ruidoso silêncio.

O vol. I divide-se em três partes: Problema Crítico; A Bibliografia Textual; A Edição Princeps de Os Lusíadas / Estudo Bibliográfico. Anotada a tradição manuscrita, mas sem manuscrito de tipografia do Poema, historia-se a tradição impressa, desde as «dòs ediciones» segundo Manuel de Faria e Sousa, no séc. XVII, e, a partir de Oitocentos, as siglas distintivas Ee/S, E/D, mais comuns do que A e B (no séc. XX) ou, para dois estados de impressão de uma única edição, OCTVO e OCTAVO (Jackson 2003): se esta sigla não vinga, ela serve aos que continuam a defender E/D (bico do pelicano para a nossa direita, Dextra, e 1.1.7 = «Entre») como princeps, da qual derivaria a mais corrigida Ee/S (bico para a esquerda, Sinistra, e 1.1.7 = «E entre»). Para obviar a alguma excepção (exemplar na British Library: bico à esquerda e «Entre»), André B. Penafiel (2022) olha ao caractere itálico ou romano que abre cada estância e prefere Italic edition (Ee) e Roman edition (E). Marnoto analisa esta peculiar diferença.

Ora, há 200 anos, já aflorava a hipótese de uma contrafacção, nomeando-se depois a oficina de Andrés Lobato (1585), nome que vem de Tito de Noronha (1880) a João Luís Lisboa (2014), mas eu não arrisco. À medida que iam sendo conhecidos novos exemplares, as diferenças gráficas eram tais, que se justificava a suspeita. No início do séc. XX, as edições de Epifânio da Silva Dias e José Maria Rodrigues, seguidos por Hernâni Cidade, equilibram a contenda, ao preferirem Ee/S, próximos de um critério-base da ecdótica, o de lectio difficilior potior, que Aquilino, Sena ou Aguiar e Silva não reconhecem. A variante mais difícil será simplificada por outros: «Portugues Cipião» de Ee/S vira «Portugues Capitam» em E/D (8.32.3); Mercúrio, «Filho de Maia», troca-se em «Filho de Maria» (2.56.2). Dos 29 exemplares analisados por Jackson parecia emergir a precedência desta lectio facilior e a ideia de que, enquanto se imprimia E/D, iam sendo introduzidas emendas (variantes de estado tipográfico). Quatro erros técnicos comuns a todos os exemplares demonstrariam ter havido uma só edição. Não: são deslizes paratextuais, que denunciam imitação. Sobrepondo as imagens respeitantes a esses quatro erros, Marnoto evidencia dissemelhanças na configuração tipográfica. Importa, pois, atentar em diferenças substanciais «no plano da produção e na análise da materialidade dos exemplares» (p. 60), e, aqui, é fundamental estudar o papel, e não só nas marcas de água. Face a 11 especímenes, João Ruas (2009) concluiu que os papéis de E/D seriam de entre 1573-1581, senão mais tarde. Conhecendo a fortuna, desde 1548 até 1594-1595, da gravura frontispicial, estranha-se o seu mau decalque na alegada princeps E/D.

A segunda parte obedece aos preceitos da crítica textual: recolhe testemunhos – 39 exemplares, dando notícia de mais cinco – que analisa e autentica, para os comparar e hierarquizar, assim concorrendo para a ideal copy do Poema, também nas suas imperfeições (curiosa a gralha ‘rata’, em vez de ‘rota’, pois rima com ‘frota’, corrigida em E/D, 1.29.8). A investigação na área da Bibliografia, de que emergem autores pouco conhecidos entre nós, é acompanhada de um conhecimento prático em tipografia e linguagens do livro. Há que distinguir edição, estado tipográfico, variantes editoriais, e como, no curso da impressão, já se desapertavam as ramas utilizadas, recolocando o material nos caixotins. A modesta casa de António Gonçalves, decerto com uma só prensa, não guardava as fôrmas, e, à luz de uma edição em continuum de emendas, não se compreenderia substituir centenas de iniciais de oitavas de itálico para redondo, que nenhum problema levantavam.

A terceira parte visa concluir «pela existência de duas matrizes materialmente distintas» (p. 123). Trabalhando o maior número de exemplares conhecidos até hoje, por mediação e, sobretudo, de visu, Marnoto divide-os em dois grupos bibliográficos – Ee/S e E/D –, e pratica o que antes teorizara, contrapondo logo a Jackson factos incontrovertidos na posição de cabeça e pé de página, incluindo aqui o reclamo, no número de canto em cabeça de página, a foliação, e nos caracteres, além de outros erros afinais comuns. Sobrepondo várias páginas dos dois grupos, é inquestionável a diferença de moldes. O mesmo faz sobrepondo os frontispícios, alvará (com 33 e 34 linhas, o que suscita lição sobre a mancha do texto e uso do componedor) e licença da Inquisição (frei Bartolomeu dançando no espaço). Esmiúça inúmeras diferenças, que provam distinta matriz. E assim no início do Poema, nas cabeças e pés de página, nas fontes, variantes de texto e de algarismos, nas capitulares e ornamentos (menor nitidez em E/D), etc. Importam, decisivas, as ligaduras, sendo três exclusivas de E/D: as, is, sp, esta com altíssima percentagem. Compulsadas 17 obras em latim, castelhano e vulgar do prelo de António Gonçalves, afirmo que, entre 1568 e 1574, nunca ele se serviu dessas três ligaduras. 

Instrutiva é outra lição sobre a origem do itálico e romano utilizados e quem seriam os gravadores das fontes. O apartado final descreve cada um dos 39 exemplares – 16 de Ee/S, 8 de E/S, 15 mistos ou de outra procedência –, que dividiu em homogéneos (pertencentes a uma das edições) e heterogéneos (de configuração mista ou alheia a ambos os grupos). O volume encerra com seis pontos-chave que contrastam nas duas edições.

O vol. II contém a ideal copy segundo 17 exemplares ou partes de exemplares de Ee/S, acompanhada de um aparato. A quinta parte dá a Bibliografia citada.

É um trabalho impressionante de minúcia e rigor, trocando a especulação pelo factual. Em vésperas de quinto centenário do nascimento de Camões, a seriedade destas quase mil páginas deveria convocar um debate não menos sério, sem ideias cristalizadas, atento aos desafios que os prelos de Quinhentos nos levantam.

 

Luís de Camões

OS LUSÍADAS

Edição Crítica da Princeps

por Rita Marnoto

Centre International d’Études Portugaises (Genève), 514 + 458 pp.      


Ernesto Rodrigues

JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, 12-VII-2023

domingo, 28 de maio de 2023

A Bebé Digital

 

Ernesto Rodrigues

 

A BEBÉ DIGITAL

 

I

 

1

 

Quando nasci, fiz três coisas: dei um grito, tirei uma selfie, coloquei-a no Facebook.

É verdade. Estava tudo preparado.

A mamã, que seguiu as quatro operações – o nascimento não foi a menos importante –, carregou no Adoro, deu os «Parabéns!» em comentário, acrescentou um emoji, partilhou.

– É o nosso primeiro bebé digital – disse uma enfermeira.

 

2

 

No segundo acto, acordei, pois tremia o smartphone.

A mamã já transferira a agenda pessoal para um telemóvel colorido e algarismos enormes.

O número da chamada não trazia nome.

– Não fale com desconhecidos – disse uma visita.

Cumprindo, adormeci.

 

3

 

Essa senhora educada e distante chamava-se avó, que é um nome muito comum.

Vieram várias avós à nossa sala, vozeavam no corredor, e as mães, dirigindo-se aos bebés – ainda analógicos –, sussurravam:

– Vês? É a avó!

Eles não viam, mas faziam uns trejeitos que pareciam sorrisos.

– Lindo menino! – diziam as avós.

– Linda menina! – disse a minha, para ser original.

 

4

 

Vestiram-me um babygrow cor-de-rosa, que perfumava o universo.

Chegaram estranhos – com quem não falei –, e, na cauda de tanto espanto, um velho de má cara, que a mamã apresentou:

– É o avô.

Olhou para mim, como se eu estivesse a mais, e disse:

– É a cara do sujeito.

A mamã baixou os olhos. A avó agarrou nele e saíram.

 

5

 

Esse tom incomodou-me: não quis mamar.

Encostada ao seio direito, sentia que algo batia no lado oposto.

Mudou-me para a esquerda e serenou.

Fui bebendo docemente, quase sem lhe tocar.

A mamã estava triste, aguada; eu já sem fome, e talvez mais curiosa do que triste.

 

6

 

Saímos na manhã seguinte, e ainda bem, porque aqueles lindos meninos eram mais ruidosos que um rádio em ondas curtas – que eu só já conheci em filmes.

A vovó, duplicado que compensava a falta do avô, cobriu-me num sedoso lençol rosa e sentámo-nos, com a mamã, no banco de trás de automóvel conduzido por motorista.

A vovó mandou parar sobre o mar e apresentou-me ao oceano, que corria para mim, esbranquiçado. Estava uma brisa agradável, que me fez tossir.

A mamã, que não saíra, gritou interjeições, e seguimos para vivenda de flores, onde a custo desabrochei entre aplausos da criadagem.

 

7

 

Fui deitada numa cama com grades, cama invadida por botões que comecei logo a premir.

Eu crescera da noite para o dia.

Em frente, havia um ecrã panorâmico, que quase podia tocar com os dedos dos pés. Servia também de espelho. Via-me, assim, de corpo inteiro, nua ou já num pijama em veludo, elegante como a música do telemóvel que me acordava.

 

8

 

Era um desconhecido. Bastava tocar uma tecla e respondia.

– Sim? – ouvi. Não respondi. A música da voz prosseguiu: encantava-me.

Ao levantar a cabeça, vi no ecrã o que surgia no visor: um senhor, «Sim?», que me olhava, cabeça alta e limpa, ao lado da minha selfie.

«Eis o sujeito», pensei. A ligação caiu, subitamente.

 

9

 

Não fiquei muito tempo com o brinquedo: entrando veloz, a vovó arrancou-mo das mãos.

Pior: agarrou em mim e depositou-me num outro quarto, longe do futuro e seus desafios.

A mamã protestou, mas calou-se logo. Eu, não: chorei, como os actores.

Acorreram empregadas, tristes comigo; então, a mamã ergueu o indicador direito, não como ordem, mas sinal. Compreendi.

 

10

 

Vieram horas perdidas diante de uma televisão antiga, que recebia instruções de um leitor de videocassetes. Era muito complicado trocar de comandos.

Vi filmes antigos, não só impróprios para a idade, mas que logo me adormeciam. Eu não sabia que acabavam de vencer a Hiperactiva. Assim me chamavam.

Como não gosto de intervalos (e acabei de fazer um), a mamã avançou uma fita, para, logo, stopar – «Stop», disse – numa cena doméstica, em que um jovem elegantíssimo a beijava.

– É o papá – disse ela.

Ainda hoje me arrependo desta saída:

– Digitalizas?

Como ela sorrisse, acrescentei:

– Posso vê-lo?

– Um dia.

 

11

 

O castigo não durou muito. Quando regressei ao meu quarto, o mundo estava mudado. Em vez de velhos filmes ou histórias de «Era uma vez», agora, regulavam a temperatura da cama, de modo a entrar numa bolha de bem-estar, em que adormecia.

Na verdade, a mamã regulava as horas de sono, para, de três em três, ou de quatro em quatro horas, acordarmos, fosse para o biberão, fosse para outros banquetes. Uma pequena balança digital controlava o que eu comia; outra, na casa de banho, pesava a minha saúde. Mas fora do quarto tinha de ficar o smartphone, «por causa das radiações». Nunca vi nenhuma, mas Deus também não se vê: fará igualmente mal?

 

12

 

Indiferente às radiações e a Deus, custou-me não ter comigo, por vezes, um tablet de última geração, mais novo do que eu, que assobiava, bem-disposto, e foi a minha primeira universidade.

Numa noite em que o escondi, escrevi no Skype o número do telefone desconhecido (que memorizei no berçário) e saiu-me quem vira no filme, como se me esperasse.

– Olá! – ouvi, mas logo baixei o som.

– É o papá? – perguntei.

– Sou.

Não sabíamos como continuar.

 

13

 

Fiquei ali, a olhar, entre saudosa e ensonada, até que o despertador me acordou às três da madrugada. Veio a mamã com uma papa de maçã.

O papá continuava ali, sorrindo.

– Olá! – disse ela.

– Queres? – ofereci.

Estava cansado, mesmo de quem esteve quatro horas a olhar para mim. Respondeu:

– Obrigado. Dorme bem.

 

14

 

Mal comi; não conseguia.

Quis logo adormecer, esconder-me, esquecer, enquanto a mamã ajeitava o cobertor.

Chorei, pela primeira vez.

A história não podia acabar assim.

 


 

II

 

1

 

Passei três anos sozinha no quarto. À porta, colocavam mesinha de rodas e tabuleiro fumegante.

– Estou em greve – respondia.

 

2

 

Um dia, irrompeu o avô:

– Em minha casa, não há greves, nem meias greves!

– Eu disse greve, não greves. E meias greves não sei o que possam ser.

Tirou uma exclamação do nariz e retirou-se, furioso.

 

3

 

Enquanto não me decidia a regressar à mesa «paramentada em silêncio» (dirá a mamã) da sala de jantar, comecei a vasculhar a biblioteca, assente em três portas repletas de variedades. Este quarto era o meu novo castigo, como já fora da mamã, respondendo que os livros faziam mal à saúde.

– Eu sei: têm ácaros – sentenciou o avô. – Ao menos, ela tem companhia.

 

4

 

Entre companheiros invisíveis, remexi discos, cassetes, cds, disquetes. Era um mundo novo, há muito encerrado pela mamã.

Gira-discos não havia. As cassetes continham músicas roufenhas e uma ainda se desfiava no gravador. As videocassetes multiplicavam títulos de filmes, que dariam para uma velhice inteira. Outras, minúsculas, escoltavam câmara de vídeo, com uma dentro. O carregador ainda estava na máquina, pelo que bastou ir à tomada e aguardar.

Liguei-a e vi a mamã fotógrafa, em poses, recebendo indicações de uma voz algo distorcida.

 

5

 

Nas outras portas, além de diapositivos, microfilmes e negativos, havia centenas de fotografias, algumas em dois álbuns.

Num deles, o realizador, barbudo, diferente do que eu vira.

O segundo álbum era dedicado à gravidez, seja, ao meu desenvolvimento. O olhar descia sobre bola crescendo, como Virgem representada num quadro por cima da cama.

 

6

 

Os livros não eram muitos, e alguns repetiam-se. Semelhantes em cores e formatos, percebi, subitamente, que uma frase estava em todos. Era o nome do autor.

 

7

 

A mamã entrou no instante em que eu acariciava esse nome.

– Como se lê?

– Ensino-te a ler, se não fizeres greve.

Silabou o nome próprio; apelido. Na base dessas letras, e recurso às que completavam o alfabeto, aprendi a ler num abrir e fechar de olhos – mais num fechar de olhos, conduzido pelas sílabas do meu autor.

 

8

 

Espantei o universo ao regressar à mesa familiar.

A mamã também espantou, inesperadamente loquaz, na obrigação, dizia, de vencer a inacção. Trocava a música dos anos 80 (avô aplaudia) por computador de secretária, para valorizar-se.

Avô, desconfiado.

 

9

 

Como me mostrasse simpaticamente indiferente ao processador, hardware, software e outras ferramentas da mamã, fui brindada com uma playstation e jogos de guerra. A avó juntou um cd-rom sobre pintura flamenga, «para educar a sensibilidade».

– Não sou insensível – respondi, sem jeito.

 

10

 

As disquetes guardavam um mundo secreto, impossível de visitar. Preferi recuar ao preto e branco das fotos, prisão analógica de que não saíamos, pois também era impossível fugirmos dali.

Felizmente, ao contrário de nós, grevistas, os empregados tinham folgas.

 

11

 

Lembrei-me, por isso, de escrever uma carta, melhor, um cartão, que o motorista trouxesse consigo e entregasse às ordens da mamã. Tinha de ser uma letra de criança.

Ela informou que o mordomo vigiava saídas, mais por causa dos talheres de prata, e que, sim, o sobrescrito não podia ter o nome do destinatário.

– Aprendeste a escrever?

– Quase.

– E sabes o que dizer?

– Papá.

 

12

 

O mordomo deu carta branca ao novo motorista, durante semanas.

Enfim, no regresso do estrangeiro, o papá reuniu este insólito correio, fez uma espera ao portador, convidou-o a subir e perguntou:

– Tem filhos?

– Tenho um.

– Fazem revista?

– Só à saída.

– Peço-lhe que entregue este telemóvel.

 

13

 

Este diálogo estava a ser gravado no smartphone bem chegado. Nunca elogiei tanto a nanotecnologia. Navegávamos; conversávamos em surdina com uma cara lavada.

Onde escondê-lo?

Num livro em segunda fila.

 

14

 

Saía da mesa e refugiava-me no quarto. Vinha logo a mamã, fechando-nos à chave.

Faltava a última lança de liberdade, que exigiria outro calvário.

 


 

III

 

1

 

Sozinha, digitalizava músicas, filmes, fotografias. Os decibéis dos videojogos afastavam visitantes, não o silêncio em que ressuscitava aquele passado. A mamã assistia, às vezes – comovida ao ver a sua história de amor vertida em sistema binário. Nada de impressoras e portáteis, não fôssemos levantar suspeitas.

 

2

 

O ruído do quarto, a conversa à mesa sobre microprocessadores, a nossa simpática indiferença, tudo isso, porém, levantou suspeitas no avô.

Um dia, ao almoço, sujeito que nunca vimos invadiu o quarto e desviou o telemóvel.

 

3

 

A vida seguiu, como se nada fosse.

Despediu-se o motorista.

Estávamos sem saída.

 

4

 

Cometi uma maldade: estraguei a velha televisão.

A avó, transtornada, culpou as empregadas da limpeza, e, como o mordomo as desculpasse, ela refugiou-se no homem que ali estivera. Percebemos tudo.

 

5

 

A nova televisão chegou na manhã seguinte.

O avô não via; a avó, pouco. Dei-me ao luxo de, na sesta deles, correr canais.

Um deles deixou-me pasmada: via-me a correr no jardim, em dias diferentes.

Recordava-me de um drone a sobrevoar, e talvez fosse isso.

 

6

 

Fiz do jardim segunda morada, em actividades saudáveis, de que o avô desconfiava. Sobretudo, porque o drone se aproximava demasiado.

Quando quis explorar interconectividades da televisão, esta ficou reduzida ao canal preferido da avó.

Culpei o homem invisível.

 

7

 

Não sei quanto tempo amodorrei. A perfazer seis anos, vivera já imenso. Ia entrar na escola.

– Terá aulas em casa – cortou o avô.

– E quem escolhe? – silvou a mamã.

– A criança.

Ela perguntava que professor iria escolher o pai; ele entendeu ao contrário, e ainda bem.

 

8

 

Colocou um anúncio nos jornais.

Pré-seleccionou os mais velhos, restando sete, encerrados pelo mordomo na sala de estar.

Um a um, dirigiam-se à menina, sentada de costas, no meio do jardim, com avô, avó e mamã a uma distância inaudível.

 

9

 

O último esperou duas horas.

Ao sentar-se, sobressaltou-se a mamã.

 

10

 

– Os últimos serão os primeiros, lá diz a parábola – disse o avô. – Estudemos as condições.

Dirigiram-se ao gabinete.

 

11

 

O mordomo acompanhou-o à saída, voltava o avô.

– Muito cordial. Deu-me um forte aperto de mão e, em forma de agradecimento, demorou a mão direita no meu braço esquerdo.

– A menina merece – concluiu a avó.

 

12

 

Fechámo-nos no quarto. Abraçadas, em alegria.

– Como descobriste?

– Sorriu-me, entre lágrimas – respondi.

Foi um resto de tarde magnífico.

 

13

 

As aulas eram discretamente vigiadas, sem nos perturbarem. Como o fim do primeiro período chegava ao Natal, fiz questão que o professor viesse à ceia de Natal e ao almoço seguinte.

O final do segundo desembocava na Páscoa, e, como deixara crescer a barba, a avó via nele Jesus Cristo subindo ao Calvário.

Ao avô trazia más memórias aquela barba, mas, na harmonia geral, em si crescia perturbação. Espantou-nos, pois, em domingo de ressurreição:

– Senhor doutor, agradeço ter-me reconciliado com um passado de vingança.

 

14

 

Vieram doze anos serenos e entrada na universidade. Nesse Verão, casaram.

Ao discutirmos microchips sob a pele, ele sussurrou:

– Era o que trazia o avô no braço esquerdo desde a nossa primeira tarde. Tornei-o humano, mas a arte está no comando à distância.

Sorri baixo, passando as mãos pelos braços.

– O teu, filha, está no coração.

 

sexta-feira, 17 de março de 2023

Liliputine

 

Vivemos tempos negros, como a capa deste romance: populares derrubam a estátua de Estaline, que decapitam. É o voto do meu livro, em relação a Putin.

A história passa por Budapeste, onde se guarda memória desses dias de 1956, em que o Ocidente não respondeu ao apelo do primeiro-ministro. Já acontecera sublevação operária em Berlim Oriental, em 16-17 de Junho de 1953, três meses após a morte do Pai dos Povos, como Estaline vinha glorificado, e vai acontecer na Checoslováquia de 1968. Não menos grave, há menos tempo, deu-se noutras zonas de influência russa, até ao silêncio de Obama, Merkel e companhia na tomada da Crimeia, em 2014.

Se a Gazprom vergou estados europeus ditos independentes, a Ucrânia é, e será, um negócio para muitos – salvo para as centenas de milhares de mortos e feridos, e milhões de refugiados. Penso nestes, que atravessam o romance, como já lhes dedicara Uma Bondade Perfeita. Dez por cento da Humanidade passa fome; um por cento dos oito mil milhões são refugiados, dos quais dez por cento ucranianos. Outra tragédia é a anunciada corrida aos armamentos, com os orçamentos da Defesa queimando contribuintes. Os actuais dispositivos bélicos são suficientes para acabar com a fome, com refugiados e connosco; pelo que, quanto mais o Ocidente subir a parada, mais a Federação Russa troca o pão pelo gatilho. E, como se viu na Guerra Fria, ninguém vive de slogãs. O cinismo do Ocidente fará vergar a nomenklatura, donde saia um sucessor desse que viaja em comboio privativo, tem medo da livre expressão, sobrepõe-se ao aparelho judiciário e alterou a Constituição para se manter vivo em 2036, certo de que ninguém o afrontará – salvo a lei da vida. Nem Marx, nem Lenine, mas puro Estaline, esta escolha diz tudo da sua política.

Era eu criança e já ouvia em casa «Rádio Moscovo não fala verdade». Não é só Rádio Moscovo. Na dúvida se a maldade era só salazarista, fui, com 16 anos, até França, para acompanhar o torneio de xadrez Fischer-Spassky e alguns intelectuais de pensamento crítico; convicto de que nenhum partido pós-abrilista merecia a minha quota, fui, aos 25 anos, viver um quinquénio na Hungria. Internacionalismos e fraternidades operárias eram uma ilusão. Desde 1982, eu escrevia sobre o ditador Ceausescu; sobre polacos assaltando bananas e papel higiénico em Budapeste. Face à vertigem armamentista, a carestia de bens e o sufoco moral fizeram explodir esses países, que, no meu romance de estreia, A Serpente de Bronze, escrito em 1984-85, editado no glorioso ano de 1989, eu já via na casa comum europeia – e assim foi, em 2004.

A Rússia libertou-se com Gorbatchov, mas foi sol político de pouca dura; a sociedade civil ocidentalizou-se, contudo. O problema é que foi só nas grandes cidades, quando se trata de um país tão desigual, a vários níveis. Mas não vai esquecer a marca dessas três décadas, sobrevivam embora chauvinismos, verdades alternativas, dirigentes fora do quadro institucional e um controlo policial absoluto. Desejamos um país decente, não pária, envergonhado nas votações da ONU.

Ora, com a Gazprom quase dispensável num Ocidente ainda unido, com o PIB em queda e preços subindo a par do descontentamento, a lei das cliques ou da vida virá para Putin antes de 2036. O seu lugar na História, e na minha, é mancha a escorrer na galeria dos seres abjectos.

Não devemos ter medo das palavras: Putin é um ressabiado. Acaba o curso de Direito na cidade natal, São Petersburgo, e entra no KGB, cujos herdeiros dominam, hoje, a Federação Russa. Os chefes não lhe reconhecem particulares qualidades, sendo destinado, pois, à tranquila Dresden, na República Democrática Alemã. Um espião de primeira viria para o Ocidente.

Antes dos seus 40 anos, dissolve-se a União Soviética (1991), e um sonho que o inspira a partir do mandato presidencial de 2004-2008: reprimir dentro, conquistar fora. A NATO não percebeu; tomada a Crimeia, o Ocidente nem buliu. Convinha à Alemanha de Merkel, essa locomotiva europeia alimentada pela energia russa. Agora, com gás em reserva para o próximo Inverno, e as necessidades de petróleo em queda, não só sai afectada a economia (a par de outras sanções, cujos efeitos ainda mal se sentem), como se conclui isto: Europa refém da energia e propaganda russas não é uma Europa independente. A partir daqui, Putin inventou-se historiador para justificar o que poucos viam. No pretexto de desnazificar quem lhe fazia frente (um país dirigido por um judeu), mal informado (vergonha de espião), quis pisar Kiev em três dias. O sonho de 1991 começava a concretizar-se – ou isso parecia.

Eis a inspiração, ou aviso, para compor o meu nono romance editado, que descreve momentos fortes da História europeia desde a morte de Estaline, em 1953 (Putin não fala às crianças do acordo germano-soviético de 1939, visando dividir por ambos a Polónia; nem do massacre de Katyn). Saliento duas invasões: em 1956, na Hungria; em 1968, já não só os tanques soviéticos, mas também outras forças do Pacto de Varsóvia, na Checoslováquia. O actual czar, liliputiano, tem outro modelo: Pedro, o Grande – que, todavia, media dois metros e três. Resumo a história.

José de Arimateia e Maria de Jesus têm um filho, João Baptista, nascido em 1956, e vivem as ilusões de uma Hungria livre. Arimateia participa no levantamento de Budapeste, conviva de Lukács Mária, que dera à luz um filho do embaixador soviético Yuri Andropov, e este rapta. Andropov será chefe do KGB, logo, de Putin, e futuro secretário-geral do PCUS, na morte de Brejnev, em 1982. Em 1956, milhares de vencidos são desterrados para várias regiões da União Soviética, como acontece hoje na Ucrânia. Arimateia vive em Kaliningrado até Agosto de 1968: intérprete no exército que invade a Checoslováquia e põe fim à Primavera de Praga, salva uma adolescente, Hana, em cuja casa se refugia até 1971. Recusando contactar os comunistas portugueses no exílio, entra na vida de Miroslav, editor do realismo socialista europeu e latino-americano, e da empregada Krista, trazendo esta família para Lisboa.

Hana e João Baptista alimentam uma relação vigiada por Krista (que substitui mãe seduzida por poeta de Moscovo, onde vivem), relação suspensa entre 1979 e 1985, quando Hana acompanha Miroslav e Krista para Berlim Oriental – onde Lukács Mária lhe apresenta um espião soviético vindo de Dresden – e João Baptista faz espionagem (ou isso julga) ao serviço de Berlim Ocidental. Há uma promessa de reencontro na Hungria, o que acontece no Verão de 1985. Em 1986, nasce Magda Baptista, hoje docente de Estudos Europeus, que organiza este romance-reportagem em 49 cenas cinematográficas.

O glorioso 1989 separa o casal: Hana entrega-se, de vez, ao espião de Dresden, nascendo Boris. Foge com os filhos Magda e Boris para Moscovo. Os bons ofícios de Lukács Mária são recompensados com a visita do filho István, que não voltará a ver. João Baptista busca a filha, enquanto cicatriza a dor pelas capitais do Ocidente e, na pele de jornalista, visita a Roménia – sem encontrar Miroslav e Krista, aí desde 1985 – do ditador Ceausescu em fim de ciclo.

Em dificuldades, Hana entrega Magda ao pai João Baptista, que sabe diplomata em Roma (1992). Dera-se, entretanto, a Revolução de Veludo, e Miroslav e Krista regressam a Praga, onde Hana os visita, sabendo, enfim, que o seu verdadeiro pai e mãe vivem em Moscovo. Cumprirá uma vingança, antes de, nas linhas finais, sofrer castigo. Não acompanha o crescimento do filho Boris, que encontra os avós, e se faz atirador de elite ao serviço do novo czar – Putin, seu pai –, cujo historial de vida é parcialmente referido, quando não imaginado.

Após Roma, João Baptista vira conselheiro em Moscovo; afastado deste cargo, regressa como administrador de empresas, fornecendo o palácio presidencial. Tarde percebemos que Lukács István, sósia de Putin, é o seu interlocutor: morto Putin (ver-se-á por quem), não se prossegue a mesma política? A invasão da Ucrânia, com que abre o romance, obriga à fuga e a medidas solidárias que se impõem às democracias. Além de se contar segundo o olhar de outrem, Magda assume os seus passos e cria uma rede de apoio aos refugiados na fronteira húngara.      

Liliputine funde As Viagens de Gulliver e sua ilha de Liliput com Putin(e), nome donde deriva ‘liliputinar’, cujos presente do conjuntivo e imperativo significam: «reduza Putin à sua pequenez ou insignificância». Olha-se ao complexo estalinista de quem, no seu metro e sessenta e oito, se sonha um novo Pedro, o Grande. No seu palácio de medos, do qual fogem os que podem (um milhão, um milhão e meio), anuncia-se o estertor de um genocida, quem dera o regresso de um novo Gorbatchov. É exigência das democracias morais que se queiram independentes em todos os domínios defender os direitos humanos.

Tenho mais de quatro décadas de reflexão sobre o Centro e Leste da Europa, para lá de cinco anos vividos em Budapeste na década de 80, de que trouxe um olhar distanciado (para não dizer irónico) em relação aos materialismos dialéctico e histórico. Há personagens reais ou na realidade inspiradas, mortas algumas (caso do jornalista do Expresso Carlos Santos Pereira), outras no noticiário do dia, caso de Orbán Viktor, despontando em 1989, quando acompanhei visita de Estado de Mário Soares, em cuja segurança estava Lukács Mária. A reportagem de Magda Baptista em 49 capítulos divididos por sete partes assenta em inquéritos pessoais, documentação, visita a alguns lugares e uma sensibilidade própria, que organiza os breves quadros narrativos, os diálogos, e debate ideologias. Magda é um nome comum à língua do pai, da mãe e do local de nascimento: cosmopolita, imparcial, contida, compreensiva (como deve ser uma universitária), circula entre países em momentos capitais da História europeia dos últimos 70 anos, iluminando o presente. Além do prazer em ouvir anedotas políticas e lembrar segmentos do passado, nenhum de nós fica indiferente às páginas fortes deste livro. Fecho como comecei: vivemos tempos negros.