Os
450 anos d’Os Lusíadas foram celebrados com a edição crítica da princeps
(1572), que Rita Marnoto vinha anunciando em artigos de 2021-2022, um dos quais
no JL: «Qual é a edição princeps de Os Lusíadas? Um ponto
final» (n.º 1336, 15-12-2021). Agora, numa exposição informadíssima, clara e
serena, narra-se aventura que deveria suscitar mais do que um ruidoso silêncio.
O
vol. I divide-se em três partes: Problema Crítico; A Bibliografia Textual; A
Edição Princeps de Os Lusíadas / Estudo Bibliográfico. Anotada a
tradição manuscrita, mas sem manuscrito de tipografia do Poema, historia-se a
tradição impressa, desde as «dòs ediciones» segundo Manuel de Faria e Sousa, no
séc. XVII, e, a partir de Oitocentos, as siglas distintivas Ee/S, E/D, mais
comuns do que A e B (no séc. XX) ou, para dois estados de impressão de uma
única edição, OCTVO e OCTAVO (Jackson 2003): se esta sigla não vinga, ela serve
aos que continuam a defender E/D (bico do pelicano para a nossa direita, Dextra,
e 1.1.7 = «Entre») como princeps, da qual derivaria a mais corrigida
Ee/S (bico para a esquerda, Sinistra, e 1.1.7 = «E entre»). Para obviar
a alguma excepção (exemplar na British Library: bico à esquerda e «Entre»),
André B. Penafiel (2022) olha ao caractere itálico ou romano que abre cada
estância e prefere Italic edition (Ee) e Roman edition (E).
Marnoto analisa esta peculiar diferença.
Ora,
há 200 anos, já aflorava a hipótese de uma contrafacção, nomeando-se depois a
oficina de Andrés Lobato (1585), nome que vem de Tito de Noronha (1880) a João
Luís Lisboa (2014), mas eu não arrisco. À medida que iam sendo conhecidos novos
exemplares, as diferenças gráficas eram tais, que se justificava a suspeita. No
início do séc. XX, as edições de Epifânio da Silva Dias e José Maria Rodrigues,
seguidos por Hernâni Cidade, equilibram a contenda, ao preferirem Ee/S,
próximos de um critério-base da ecdótica, o de lectio difficilior potior,
que Aquilino, Sena ou Aguiar e Silva não reconhecem. A variante mais difícil
será simplificada por outros: «Portugues Cipião» de Ee/S vira «Portugues
Capitam» em E/D (8.32.3); Mercúrio, «Filho de Maia», troca-se em «Filho de
Maria» (2.56.2). Dos 29 exemplares analisados por Jackson parecia emergir a
precedência desta lectio facilior e a ideia de que, enquanto se imprimia
E/D, iam sendo introduzidas emendas (variantes de estado tipográfico). Quatro
erros técnicos comuns a todos os exemplares demonstrariam ter havido uma só
edição. Não: são deslizes paratextuais, que denunciam imitação. Sobrepondo as
imagens respeitantes a esses quatro erros, Marnoto evidencia dissemelhanças na
configuração tipográfica. Importa, pois, atentar em diferenças substanciais «no
plano da produção e na análise da materialidade dos exemplares» (p. 60), e, aqui,
é fundamental estudar o papel, e não só nas marcas de água. Face a 11
especímenes, João Ruas (2009) concluiu que os papéis de E/D seriam de entre
1573-1581, senão mais tarde. Conhecendo a fortuna, desde 1548 até 1594-1595, da
gravura frontispicial, estranha-se o seu mau decalque na alegada princeps
E/D.
A
segunda parte obedece aos preceitos da crítica textual: recolhe testemunhos –
39 exemplares, dando notícia de mais cinco – que analisa e autentica, para os
comparar e hierarquizar, assim concorrendo para a ideal copy do Poema,
também nas suas imperfeições (curiosa a gralha ‘rata’, em vez de ‘rota’, pois
rima com ‘frota’, corrigida em E/D, 1.29.8). A investigação na área da
Bibliografia, de que emergem autores pouco conhecidos entre nós, é acompanhada
de um conhecimento prático em tipografia e linguagens do livro. Há que
distinguir edição, estado tipográfico, variantes editoriais, e como, no curso
da impressão, já se desapertavam as ramas utilizadas, recolocando o material
nos caixotins. A modesta casa de António Gonçalves, decerto com uma só prensa, não
guardava as fôrmas, e, à luz de uma edição em continuum de emendas, não
se compreenderia substituir centenas de iniciais de oitavas de itálico para
redondo, que nenhum problema levantavam.
A
terceira parte visa concluir «pela existência de duas matrizes materialmente
distintas» (p. 123). Trabalhando o maior número de exemplares conhecidos até
hoje, por mediação e, sobretudo, de visu, Marnoto divide-os em dois
grupos bibliográficos – Ee/S e E/D –, e pratica o que antes teorizara,
contrapondo logo a Jackson factos incontrovertidos na posição de cabeça e pé de
página, incluindo aqui o reclamo, no número de canto em cabeça de página, a
foliação, e nos caracteres, além de outros erros afinais comuns. Sobrepondo várias
páginas dos dois grupos, é inquestionável a diferença de moldes. O mesmo faz
sobrepondo os frontispícios, alvará (com 33 e 34 linhas, o que suscita lição
sobre a mancha do texto e uso do componedor) e licença da Inquisição (frei
Bartolomeu dançando no espaço). Esmiúça inúmeras diferenças, que provam
distinta matriz. E assim no início do Poema, nas cabeças e pés de página, nas
fontes, variantes de texto e de algarismos, nas capitulares e ornamentos (menor
nitidez em E/D), etc. Importam, decisivas, as ligaduras, sendo três exclusivas
de E/D: as, is, sp, esta com altíssima percentagem.
Compulsadas 17 obras em latim, castelhano e vulgar do prelo de António
Gonçalves, afirmo que, entre 1568 e 1574, nunca ele se serviu dessas três
ligaduras.
Instrutiva
é outra lição sobre a origem do itálico e romano utilizados e quem seriam os
gravadores das fontes. O apartado final descreve cada um dos 39 exemplares – 16
de Ee/S, 8 de E/S, 15 mistos ou de outra procedência –, que dividiu em
homogéneos (pertencentes a uma das edições) e heterogéneos (de configuração
mista ou alheia a ambos os grupos). O volume encerra com seis pontos-chave que
contrastam nas duas edições.
O
vol. II contém a ideal copy segundo 17 exemplares ou partes de
exemplares de Ee/S, acompanhada de um aparato. A quinta parte dá a Bibliografia
citada.
É
um trabalho impressionante de minúcia e rigor, trocando a especulação pelo
factual. Em vésperas de quinto centenário do nascimento de Camões, a seriedade
destas quase mil páginas deveria convocar um debate não menos sério, sem ideias
cristalizadas, atento aos desafios que os prelos de Quinhentos nos levantam.
Luís de Camões
OS LUSÍADAS
Edição Crítica da
Princeps
por Rita Marnoto
Centre International d’Études Portugaises (Genève), 514 + 458 pp.
Ernesto Rodrigues
JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, 12-VII-2023
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