Ernesto
Rodrigues
A BEBÉ DIGITAL
I
1
Quando
nasci, fiz três coisas: dei um grito, tirei uma selfie, coloquei-a no Facebook.
É
verdade. Estava tudo preparado.
A
mamã, que seguiu as quatro operações – o nascimento não foi a menos importante
–, carregou no Adoro, deu os
«Parabéns!» em comentário, acrescentou um emoji,
partilhou.
– É
o nosso primeiro bebé digital – disse uma enfermeira.
2
No
segundo acto, acordei, pois tremia o smartphone.
A
mamã já transferira a agenda pessoal para um telemóvel colorido e algarismos
enormes.
O
número da chamada não trazia nome.
–
Não fale com desconhecidos – disse uma visita.
Cumprindo,
adormeci.
3
Essa
senhora educada e distante chamava-se avó, que é um nome muito comum.
Vieram
várias avós à nossa sala, vozeavam no corredor, e as mães, dirigindo-se aos
bebés – ainda analógicos –, sussurravam:
–
Vês? É a avó!
Eles
não viam, mas faziam uns trejeitos que pareciam sorrisos.
–
Lindo menino! – diziam as avós.
–
Linda menina! – disse a minha, para ser original.
4
Vestiram-me
um babygrow cor-de-rosa, que
perfumava o universo.
Chegaram
estranhos – com quem não falei –, e, na cauda de tanto espanto, um velho de má
cara, que a mamã apresentou:
– É
o avô.
Olhou
para mim, como se eu estivesse a mais, e disse:
– É
a cara do sujeito.
A
mamã baixou os olhos. A avó agarrou nele e saíram.
5
Esse
tom incomodou-me: não quis mamar.
Encostada
ao seio direito, sentia que algo batia no lado oposto.
Mudou-me
para a esquerda e serenou.
Fui
bebendo docemente, quase sem lhe tocar.
A
mamã estava triste, aguada; eu já sem fome, e talvez mais curiosa do que
triste.
6
Saímos
na manhã seguinte, e ainda bem, porque aqueles lindos meninos eram mais
ruidosos que um rádio em ondas curtas – que eu só já conheci em filmes.
A
vovó, duplicado que compensava a falta do avô, cobriu-me num sedoso lençol rosa
e sentámo-nos, com a mamã, no banco de trás de automóvel conduzido por
motorista.
A
vovó mandou parar sobre o mar e apresentou-me ao oceano, que corria para mim,
esbranquiçado. Estava uma brisa agradável, que me fez tossir.
A
mamã, que não saíra, gritou interjeições, e seguimos para vivenda de flores,
onde a custo desabrochei entre aplausos da criadagem.
7
Fui
deitada numa cama com grades, cama invadida por botões que comecei logo a
premir.
Eu
crescera da noite para o dia.
Em
frente, havia um ecrã panorâmico, que quase podia tocar com os dedos dos pés.
Servia também de espelho. Via-me, assim, de corpo inteiro, nua ou já num pijama
em veludo, elegante como a música do telemóvel que me acordava.
8
Era
um desconhecido. Bastava tocar uma tecla e respondia.
–
Sim? – ouvi. Não respondi. A música da voz prosseguiu: encantava-me.
Ao
levantar a cabeça, vi no ecrã o que surgia no visor: um senhor, «Sim?», que me
olhava, cabeça alta e limpa, ao lado da minha selfie.
«Eis
o sujeito», pensei. A ligação caiu, subitamente.
9
Não
fiquei muito tempo com o brinquedo: entrando veloz, a vovó arrancou-mo das
mãos.
Pior:
agarrou em mim e depositou-me num outro quarto, longe do futuro e seus
desafios.
A
mamã protestou, mas calou-se logo. Eu, não: chorei, como os actores.
Acorreram
empregadas, tristes comigo; então, a mamã ergueu o indicador direito, não como
ordem, mas sinal. Compreendi.
10
Vieram
horas perdidas diante de uma televisão antiga, que recebia instruções de um
leitor de videocassetes. Era muito complicado trocar de comandos.
Vi
filmes antigos, não só impróprios para a idade, mas que logo me adormeciam. Eu
não sabia que acabavam de vencer a Hiperactiva. Assim me chamavam.
Como
não gosto de intervalos (e acabei de fazer um), a mamã avançou uma fita, para,
logo, stopar – «Stop», disse – numa cena doméstica, em que um jovem
elegantíssimo a beijava.
– É
o papá – disse ela.
Ainda
hoje me arrependo desta saída:
–
Digitalizas?
Como
ela sorrisse, acrescentei:
–
Posso vê-lo?
– Um
dia.
11
O
castigo não durou muito. Quando regressei ao meu quarto, o mundo estava mudado.
Em vez de velhos filmes ou histórias de «Era uma vez», agora, regulavam a
temperatura da cama, de modo a entrar numa bolha de bem-estar, em que
adormecia.
Na
verdade, a mamã regulava as horas de sono, para, de três em três, ou de quatro
em quatro horas, acordarmos, fosse para o biberão, fosse para outros banquetes.
Uma pequena balança digital controlava o que eu comia; outra, na casa de banho,
pesava a minha saúde. Mas fora do quarto tinha de ficar o smartphone, «por causa das radiações». Nunca vi nenhuma, mas Deus
também não se vê: fará igualmente mal?
12
Indiferente
às radiações e a Deus, custou-me não ter comigo, por vezes, um tablet de última geração, mais novo do
que eu, que assobiava, bem-disposto, e foi a minha primeira universidade.
Numa
noite em que o escondi, escrevi no Skype
o número do telefone desconhecido (que memorizei no berçário) e saiu-me quem
vira no filme, como se me esperasse.
–
Olá! – ouvi, mas logo baixei o som.
– É
o papá? – perguntei.
–
Sou.
Não
sabíamos como continuar.
13
Fiquei
ali, a olhar, entre saudosa e ensonada, até que o despertador me acordou às
três da madrugada. Veio a mamã com uma papa de maçã.
O
papá continuava ali, sorrindo.
–
Olá! – disse ela.
–
Queres? – ofereci.
Estava
cansado, mesmo de quem esteve quatro horas a olhar para mim. Respondeu:
–
Obrigado. Dorme bem.
14
Mal
comi; não conseguia.
Quis
logo adormecer, esconder-me, esquecer, enquanto a mamã ajeitava o cobertor.
Chorei,
pela primeira vez.
A
história não podia acabar assim.
II
1
Passei
três anos sozinha no quarto. À porta, colocavam mesinha de rodas e tabuleiro
fumegante.
–
Estou em greve – respondia.
2
Um
dia, irrompeu o avô:
– Em
minha casa, não há greves, nem meias greves!
– Eu
disse greve, não greves. E meias greves não sei o que possam ser.
Tirou
uma exclamação do nariz e retirou-se, furioso.
3
Enquanto
não me decidia a regressar à mesa «paramentada em silêncio» (dirá a mamã) da
sala de jantar, comecei a vasculhar a biblioteca, assente em três portas
repletas de variedades. Este quarto era o meu novo castigo, como já fora da
mamã, respondendo que os livros faziam mal à saúde.
– Eu
sei: têm ácaros – sentenciou o avô. – Ao menos, ela tem companhia.
4
Entre
companheiros invisíveis, remexi discos, cassetes, cds, disquetes. Era um mundo
novo, há muito encerrado pela mamã.
Gira-discos
não havia. As cassetes continham músicas roufenhas e uma ainda se desfiava no
gravador. As videocassetes multiplicavam títulos de filmes, que dariam para uma
velhice inteira. Outras, minúsculas, escoltavam câmara de vídeo, com uma
dentro. O carregador ainda estava na máquina, pelo que bastou ir à tomada e
aguardar.
Liguei-a
e vi a mamã fotógrafa, em poses, recebendo indicações de uma voz algo
distorcida.
5
Nas
outras portas, além de diapositivos, microfilmes e negativos, havia centenas de
fotografias, algumas em dois álbuns.
Num
deles, o realizador, barbudo, diferente do que eu vira.
O
segundo álbum era dedicado à gravidez, seja, ao meu desenvolvimento. O olhar
descia sobre bola crescendo, como Virgem representada num quadro por cima da
cama.
6
Os
livros não eram muitos, e alguns repetiam-se. Semelhantes em cores e formatos,
percebi, subitamente, que uma frase estava em todos. Era o nome do autor.
7
A
mamã entrou no instante em que eu acariciava esse nome.
–
Como se lê?
–
Ensino-te a ler, se não fizeres greve.
Silabou
o nome próprio; apelido. Na base dessas letras, e recurso às que completavam o
alfabeto, aprendi a ler num abrir e fechar de olhos – mais num fechar de olhos,
conduzido pelas sílabas do meu autor.
8
Espantei
o universo ao regressar à mesa familiar.
A
mamã também espantou, inesperadamente loquaz, na obrigação, dizia, de vencer a
inacção. Trocava a música dos anos 80 (avô aplaudia) por computador de secretária,
para valorizar-se.
Avô,
desconfiado.
9
Como
me mostrasse simpaticamente indiferente ao processador, hardware, software e
outras ferramentas da mamã, fui brindada com uma playstation e jogos de guerra. A avó juntou um cd-rom sobre pintura
flamenga, «para educar a sensibilidade».
–
Não sou insensível – respondi, sem jeito.
10
As
disquetes guardavam um mundo secreto, impossível de visitar. Preferi recuar ao
preto e branco das fotos, prisão analógica de que não saíamos, pois também era
impossível fugirmos dali.
Felizmente,
ao contrário de nós, grevistas, os empregados tinham folgas.
11
Lembrei-me,
por isso, de escrever uma carta, melhor, um cartão, que o motorista trouxesse
consigo e entregasse às ordens da mamã. Tinha de ser uma letra de criança.
Ela
informou que o mordomo vigiava saídas, mais por causa dos talheres de prata, e que,
sim, o sobrescrito não podia ter o nome do destinatário.
–
Aprendeste a escrever?
–
Quase.
– E
sabes o que dizer?
–
Papá.
12
O
mordomo deu carta branca ao novo motorista, durante semanas.
Enfim,
no regresso do estrangeiro, o papá reuniu este insólito correio, fez uma espera
ao portador, convidou-o a subir e perguntou:
–
Tem filhos?
– Tenho
um.
–
Fazem revista?
– Só
à saída.
–
Peço-lhe que entregue este telemóvel.
13
Este
diálogo estava a ser gravado no smartphone
bem chegado. Nunca elogiei tanto a nanotecnologia. Navegávamos; conversávamos
em surdina com uma cara lavada.
Onde
escondê-lo?
Num
livro em segunda fila.
14
Saía
da mesa e refugiava-me no quarto. Vinha logo a mamã, fechando-nos à chave.
Faltava
a última lança de liberdade, que exigiria outro calvário.
III
1
Sozinha,
digitalizava músicas, filmes, fotografias. Os decibéis dos videojogos afastavam
visitantes, não o silêncio em que ressuscitava aquele passado. A mamã assistia,
às vezes – comovida ao ver a sua história de amor vertida em sistema binário.
Nada de impressoras e portáteis, não fôssemos levantar suspeitas.
2
O
ruído do quarto, a conversa à mesa sobre microprocessadores, a nossa simpática
indiferença, tudo isso, porém, levantou suspeitas no avô.
Um
dia, ao almoço, sujeito que nunca vimos invadiu o quarto e desviou o telemóvel.
3
A
vida seguiu, como se nada fosse.
Despediu-se
o motorista.
Estávamos
sem saída.
4
Cometi
uma maldade: estraguei a velha televisão.
A
avó, transtornada, culpou as empregadas da limpeza, e, como o mordomo as
desculpasse, ela refugiou-se no homem que ali estivera. Percebemos tudo.
5
A
nova televisão chegou na manhã seguinte.
O
avô não via; a avó, pouco. Dei-me ao luxo de, na sesta deles, correr canais.
Um
deles deixou-me pasmada: via-me a correr no jardim, em dias diferentes.
Recordava-me
de um drone a sobrevoar, e talvez fosse isso.
6
Fiz
do jardim segunda morada, em actividades saudáveis, de que o avô desconfiava.
Sobretudo, porque o drone se aproximava demasiado.
Quando
quis explorar interconectividades da televisão, esta ficou reduzida ao canal
preferido da avó.
Culpei
o homem invisível.
7
Não
sei quanto tempo amodorrei. A perfazer seis anos, vivera já imenso. Ia entrar
na escola.
–
Terá aulas em casa – cortou o avô.
– E
quem escolhe? – silvou a mamã.
– A
criança.
Ela
perguntava que professor iria escolher o pai; ele entendeu ao contrário, e
ainda bem.
8
Colocou
um anúncio nos jornais.
Pré-seleccionou
os mais velhos, restando sete, encerrados pelo mordomo na sala de estar.
Um a
um, dirigiam-se à menina, sentada de costas, no meio do jardim, com avô, avó e
mamã a uma distância inaudível.
9
O
último esperou duas horas.
Ao
sentar-se, sobressaltou-se a mamã.
10
– Os
últimos serão os primeiros, lá diz a parábola – disse o avô. – Estudemos as
condições.
Dirigiram-se
ao gabinete.
11
O
mordomo acompanhou-o à saída, voltava o avô.
–
Muito cordial. Deu-me um forte aperto de mão e, em forma de agradecimento,
demorou a mão direita no meu braço esquerdo.
– A
menina merece – concluiu a avó.
12
Fechámo-nos
no quarto. Abraçadas, em alegria.
–
Como descobriste?
–
Sorriu-me, entre lágrimas – respondi.
Foi
um resto de tarde magnífico.
13
As
aulas eram discretamente vigiadas, sem nos perturbarem. Como o fim do primeiro
período chegava ao Natal, fiz questão que o professor viesse à ceia de Natal e
ao almoço seguinte.
O
final do segundo desembocava na Páscoa, e, como deixara crescer a barba, a avó
via nele Jesus Cristo subindo ao Calvário.
Ao
avô trazia más memórias aquela barba, mas, na harmonia geral, em si crescia
perturbação. Espantou-nos, pois, em domingo de ressurreição:
–
Senhor doutor, agradeço ter-me reconciliado com um passado de vingança.
14
Vieram
doze anos serenos e entrada na universidade. Nesse Verão, casaram.
Ao
discutirmos microchips sob a pele,
ele sussurrou:
–
Era o que trazia o avô no braço esquerdo desde a nossa primeira tarde. Tornei-o
humano, mas a arte está no comando à distância.
Sorri
baixo, passando as mãos pelos braços.
– O
teu, filha, está no coração.
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