A Pedro Mexia
Vai a enterrar João Bigotte Chorão (Guarda, 1933),
que faleceu anteontem, 23, em Lisboa. Despedimo-nos na igreja do Campo Grande; mas
lembrarei, sempre, a tarde que Teresa e eu passámos em sua casa, em 20 de
Dezembro, numa esperançosa conversa com a esforçada Mulher, Maria José Mexia.
João Bigotte Chorão é
celebrado como camilianista. Com efeito, é exemplar a diligência do seu Camilo. Esboço de Um Retrato (1989), 2.ª edição revista de Camilo. A Obra e o Homem (1979).
Propõe-se, no Prefácio, aproveitar da vida de Camilo «o que for indispensável
ao conhecimento da obra». Recusando, por um lado, «o biografismo exaustivo e
anedótico» e, por outro, «o texto completamente autonomizado do autor»,
reconhece que «Este livro não é uma biografia, nem um ensaio de interpretação
literária, nem uma tese universitária», mas «uma síntese da vida e da obra de
Camilo». Explicitamente, convoca «esse leitor, estudante ou homem da rua,
tantas vezes perdido no labirinto camiliano».
Para melhor o conhecer, talvez
se deva começar pelo álbum de família, por eleição espiritual, que é Galeria de Retratos (2000), onde retoma
o desenho de O Escritor na Cidade
(1986). Por ordem cronológica, apresenta sínteses de Camões, Vieira, Garrett,
Camilo, Carlos Malheiro Dias, Almada, Francisco Costa, Régio, Torga, Moreira
das Neves, Álvaro Ribeiro, António Quadros, Afonso Botelho, antes de passar a
brasileiros (Alceu Amoroso Lima, Drummond, Lúcio Cardoso, diaristas, Marcos
Barbosa, Nelson Rodrigues), um castelhano (Unamuno), italianos (Papini, Piero
Bargellini), romenos (Eliade, Vintila Horia).
Textos saídos na Imprensa
entre 1971 e 1998, afora dois inéditos, somente o primeiro, «Camões, poeta para
um tempo de desastre», de 1976, cede ao ar do tempo, na analogia com «época de
sabotagem moral em que parece que é proibido ser português em Portugal» (p.
12). Outro modo de lermos esta colectânea encontra-se na reiterada afirmação de
uma vívida portugalidade, mesmo quando nos apresenta estrangeiros. Neste ponto,
a notícia de um diário inédito de Mircea Eliade sobre os seus anos portugueses
(p. 227) é uma revelação.
Seja qual for a opção de
leitura, podemos circunscrever três nomes e avaliá-los segundo trabalhos de
Bigotte Chorão: Camilo, aqui na complexa relação com as mulheres e, em
especial, Ana Plácido; Malheiro Dias, que curou em Carlos Malheiro Dias na Ficção e na História (1992), retomado
enquanto destinatário de carta inédita de Amoroso Lima; e Garrett, recuperado
de prefácio às Viagens na Minha Terra
(1998), esse «livro seminal» (p. 39).
Quanto ao diarista, podemos
começar por vê-lo num arco temporal que vem de 1958 a 1999.
Dos cinco «livros» que
compõem Diário Quase Completo (2002),
três eram conhecidos: O Discípulo
Nocturno, 1965, com que se usa referir a estreia do autor; Aventura Interior, 1969; O Reino Dividido, 1999, sobre que se
debruça a páginas 584-586. A demais bibliografia de Bigotte Chorão percorre
nomes aqui e ali retomados: João de Araújo Correia, Carlos Malheiro Dias, Tomaz
de Figueiredo e, sobretudo, Camilo Castelo Branco, única ‘família’ a que
reconhece pertencer; por extensão, a «honrada família dos que na solidão da
agonia gritam ao distante céu nocturno o seu abandono» (p. 27).
Isto tem consequências na
atitude do criador, em exílio interior e no seu país, bem como na recepção de
uma obra, com lembretes e retratos que também definem a nossa realidade
cultural. Mas outros encontros se sucedem: Aquilino, Almada, Ferreira de
Castro, Francisco Costa, Joaquim Paço d’Arcos, João Maia, etc., além de
brasileiros, italianos e romenos. A Itália de Papini vai de seduzi-lo, já
inebriado por tantos artistas e cidades, em particular Florença, que lhe
arranca as melhores páginas. O também diarista Vintila Horia exilado em Espanha
é-nos apresentado como um aristocrata do espírito, essoutra linhagem de que
todos desertam. A grande inspiração nacional, que desagua em memorável
convívio, chama-se, porém, Torga: ideologicamente diversos, provada fica a
triste pendência de uma nação dividida (e tanto se critica o marxismo como
certos meios católicos ou de direita); dentro da memorialística, é nome regular
no debate sobre a expressão do diário, a partir dos seus melhores cultores.
Esta poética convoca
ainda, além de Soffici, Pavese, Mircea Eliade, Ionesco, Léautaud, Ernst Jünger
e Lúcio Cardoso, a trindade Montaigne, Amiel e Gide, «que apenas quiseram ser espectadores
do grande teatro do mundo» (p. 33), cujo «totalitarismo» e mesmo insinceridade
se recusa. Em contrapartida, o Journal de Julien Green, «itinerário para o
invisível» – já «maior empenho social» (p. 41) no de Torga – fá-lo diarista regular.
Considerado o «mais híbrido» dos géneros, dele aproveita J. Bigotte Chorão «a
crítica impressionista, [...] o plano de ensaio, a reflexão intemporal,
o comentário circunstancial», incluindo a confissão «na terceira pessoa» (p.
38).
Sem exigir uma ordem na leitura, e acompanhando momentos altos de duas
gerações, o desassombro desta prosa cuidada e a variedade do homem de cultura
são companhia excelente para os nossos dias. João Bigotte Chorão ascendeu à
galeria dos grandes diaristas.
…E um Amigo nunca nos deixa.