segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

No adeus a João Bigotte Chorão




A Pedro Mexia

Vai a enterrar João Bigotte Chorão (Guarda, 1933), que faleceu anteontem, 23, em Lisboa. Despedimo-nos na igreja do Campo Grande; mas lembrarei, sempre, a tarde que Teresa e eu passámos em sua casa, em 20 de Dezembro, numa esperançosa conversa com a esforçada Mulher, Maria José Mexia.
João Bigotte Chorão é celebrado como camilianista. Com efeito, é exemplar a diligência do seu Camilo. Esboço de Um Retrato (1989), 2.ª edição revista de Camilo. A Obra e o Homem (1979). Propõe-se, no Prefácio, aproveitar da vida de Camilo «o que for indispensável ao conhecimento da obra». Recusando, por um lado, «o biografismo exaustivo e anedótico» e, por outro, «o texto completamente autonomizado do autor», reconhece que «Este livro não é uma biografia, nem um ensaio de interpretação literária, nem uma tese universitária», mas «uma síntese da vida e da obra de Camilo». Explicitamente, convoca «esse leitor, estudante ou homem da rua, tantas vezes perdido no labirinto camiliano».
Para melhor o conhecer, talvez se deva começar pelo álbum de família, por eleição espiritual, que é Galeria de Retratos (2000), onde retoma o desenho de O Escritor na Cidade (1986). Por ordem cronológica, apresenta sínteses de Camões, Vieira, Garrett, Camilo, Carlos Malheiro Dias, Almada, Francisco Costa, Régio, Torga, Moreira das Neves, Álvaro Ribeiro, António Quadros, Afonso Botelho, antes de passar a brasileiros (Alceu Amoroso Lima, Drummond, Lúcio Cardoso, diaristas, Marcos Barbosa, Nelson Rodrigues), um castelhano (Unamuno), italianos (Papini, Piero Bargellini), romenos (Eliade, Vintila Horia).
Textos saídos na Imprensa entre 1971 e 1998, afora dois inéditos, somente o primeiro, «Camões, poeta para um tempo de desastre», de 1976, cede ao ar do tempo, na analogia com «época de sabotagem moral em que parece que é proibido ser português em Portugal» (p. 12). Outro modo de lermos esta colectânea encontra-se na reiterada afirmação de uma vívida portugalidade, mesmo quando nos apresenta estrangeiros. Neste ponto, a notícia de um diário inédito de Mircea Eliade sobre os seus anos portugueses (p. 227) é uma revelação.
Seja qual for a opção de leitura, podemos circunscrever três nomes e avaliá-los segundo trabalhos de Bigotte Chorão: Camilo, aqui na complexa relação com as mulheres e, em especial, Ana Plácido; Malheiro Dias, que curou em Carlos Malheiro Dias na Ficção e na História (1992), retomado enquanto destinatário de carta inédita de Amoroso Lima; e Garrett, recuperado de prefácio às Viagens na Minha Terra (1998), esse «livro seminal» (p. 39).
Quanto ao diarista, podemos começar por vê-lo num arco temporal que vem de 1958 a 1999.
Dos cinco «livros» que compõem Diário Quase Completo (2002), três eram conhecidos: O Discípulo Nocturno, 1965, com que se usa referir a estreia do autor; Aventura Interior, 1969; O Reino Dividido, 1999, sobre que se debruça a páginas 584-586. A demais bibliografia de Bigotte Chorão percorre nomes aqui e ali retomados: João de Araújo Correia, Carlos Malheiro Dias, Tomaz de Figueiredo e, sobretudo, Camilo Castelo Branco, única ‘família’ a que reconhece pertencer; por extensão, a «honrada família dos que na solidão da agonia gritam ao distante céu nocturno o seu abandono» (p. 27).
Isto tem consequências na atitude do criador, em exílio interior e no seu país, bem como na recepção de uma obra, com lembretes e retratos que também definem a nossa realidade cultural. Mas outros encontros se sucedem: Aquilino, Almada, Ferreira de Castro, Francisco Costa, Joaquim Paço d’Arcos, João Maia, etc., além de brasileiros, italianos e romenos. A Itália de Papini vai de seduzi-lo, já inebriado por tantos artistas e cidades, em particular Florença, que lhe arranca as melhores páginas. O também diarista Vintila Horia exilado em Espanha é-nos apresentado como um aristocrata do espírito, essoutra linhagem de que todos desertam. A grande inspiração nacional, que desagua em memorável convívio, chama-se, porém, Torga: ideologicamente diversos, provada fica a triste pendência de uma nação dividida (e tanto se critica o marxismo como certos meios católicos ou de direita); dentro da memorialística, é nome regular no debate sobre a expressão do diário, a partir dos seus melhores cultores.
Esta poética convoca ainda, além de Soffici, Pavese, Mircea Eliade, Ionesco, Léautaud, Ernst Jünger e Lúcio Cardoso, a trindade Montaigne, Amiel e Gide, «que apenas quiseram ser espectadores do grande teatro do mundo» (p. 33), cujo «totalitarismo» e mesmo insinceridade se recusa. Em contrapartida, o Journal de Julien Green, «itinerário para o invisível» – já «maior empenho social» (p. 41) no de Torga – fá-lo diarista regular. Considerado o «mais híbrido» dos géneros, dele aproveita J. Bigotte Chorão «a crítica impressionista, [...] o plano de ensaio, a reflexão intemporal, o comentário circunstancial», incluindo a confissão «na terceira pessoa» (p. 38).
Sem exigir uma ordem na leitura, e acompanhando momentos altos de duas gerações, o desassombro desta prosa cuidada e a variedade do homem de cultura são companhia excelente para os nossos dias. João Bigotte Chorão ascendeu à galeria dos grandes diaristas.
…E um Amigo nunca nos deixa.

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