Feira do Livro de Lisboa, 7 de Junho de 2024
Resumo
da apresentação
Após
colectâneas de poesia nos anos 70, estreei-me na ficção com Várias Bulhas e
Algumas Vítimas (1980), novela reproduzida no volume de contos e novelas A
Flor e a Morte (1983). Descontando Histórias para Acordar (1996), microcontos
dirigidos à infância, Cruzeiro Literário significa o regresso às
espécies narrativas que pratico desde os dez anos. Enquadram uma vida em cinco
espaços: na tipografia, no jornal, no meio literário, na vida editorial, na
universidade.
Tipógrafos
são a classe profissional com quem mais convivi, e neles assenta a galáxia de
Gutenberg. Dedico-lhes o conto “Os Lusíadas”, ou as diligências de
Camões para imprimir o Poema. Chegado a Lisboa na Primavera de 1570, com
miasmas da Grande Peste ainda pelos cantos da cidade, Luís Vaz visita a censura
dominicana e desloca-se ao desembargo do paço para atribuição de um preço às
oitavas. Estranhamente, esse preço não vai constar da edição; encontra aí
Duarte Nunes de Leão, que recomenda António Gonçalves, já impressor de obras do
jurista e gramático.
Em
“Natal de 1887”, celebro Guerra Junqueiro com a família em Viana do Castelo.
Convidado um abade para a ceia de Natal, este modela o discurso ultramontano da
época, seja contra o Eça d’A Relíquia, e não só, seja contra
Ramalho Ortigão e, naturalmente, contra A Velhice do Padre Eterno. As
referências pedem um leitor informado sobre estes três vencidos da vida.
No
conto “Vida nova”, mostro como as relações familiares podem ser salvas pela
literatura. Pai e filho rivalizam, e só uma terceira via os congrega, em final
emotivo.
Para
descansar, vejo muito cinema, de todo o género, mesmo de “Série B”, título de
conto que é reencontro com um passado imprevisível, como já intitulei
romance, ainda na ordem da filiação, assunto recorrente noutros textos. Aqui,
entretanto, há vontade em esclarecer o conúbio entre história narrada e forma
de expressão. Por que razão um autor vê claro onde o leitor nada vê ou se perde
numa alegada obscuridade? O moralista Chamfort tentou explicar: o autor vai do
pensamento à expressão; o leitor vai da expressão ao pensamento. Se, no deserto
do ser, eu definir alguém como «nuvem ociosa», e se deste adjectivo o leitor
nada extrair, ele não perceberá o estado anímico da personagem (não precisa de
saber que bebi essa nuvem em Proust). A expressão interessa menos ao leitor do
que ao autor (que nela tem o seu sangue criador); mas ler é um desafio que o
leitor se deveria impor enquanto tendendo, também, para uma espécie de autoria
a dois.
Vim
do quinto conto ao segundo, enquadrados por duas novelas. Abre “A Morte do
autor”, que é o que acontece quando separamos ser e estar, ou como as ideias
borbulham em palavras. O título participa de um conceito narratológico avesso à
presença de uma figura civil biografável. Ora, qualquer texto, mesmo anónimo,
institui um sujeito ou sua figuração colectiva. Numa escrita entre irónica e
sarcástica, mostro a febre universitária não enquanto ensino, investigação e
serviço cívico, mas máquina de produção: multiplica licenciaturas com nomes
incríveis; louva-se na organização de milhentes congressos nacionais e
internacionais (nestes, basta um convidado estrangeiro), cujas comunicações
são, não raro, risíveis; e, gravíssimo, instaura-se uma lamentável dependência,
até à promiscuidade, entre mestres e discípulos desejos de ascender. Alguns fizeram-se
catedráticos arrastando no braço valoroso a pasta do professor ou passeando-lhe
o caõzinho, enquanto a alma se humilhava. O argumento é, porém, diverso, e avalia
um conjunto de ensaios sobre obra erradamente atribuída a outrem, durante
décadas, em que cada texto da proeminente criatura (bisturizada, devidamente
retratada) repete, inocuamente, os ensaios anteriores. Devera ser a morte
intelectual de uma indigente, e não do alegado autor. Ora, a autocitação
inflaciona a bibliometria, com que se sobe na carreira; criando perfis falsos e
exigindo aos súbditos citações do mestre, mesmo que não respeitem ao assunto em
estudo, chega-se longe - a reitor da Universidade de Salamanca, por exemplo - e
ganham-se projectos assentes num cartel de citações. Com esta nova indústria, a
investigação está moribunda.
O
jornalismo televisivo, dominado pelo exército de comentadores de nada dizer, e
a polícia entram em acção, com desenvolvimentos que não vou descrever. Dei 41
anos ao ensino superior; este é o meu lamento, requiem talvez, pela
Universidade.
A
novela que titula o volume reúne os meios editorial, literário, jornalístico e
universitário, além do recurso final à Judiciária. Entre o comandante do navio
e o polícia de lacinho, actuam 33 vaidades, algumas com sede de glória: além da
trindade editorial, há 13 jornalistas e cinco professores universitários muito característicos,
reunidos para louvaminhar e vender 12 autores da casa. Alguns da trintena são
reconhecíveis, mas eu negarei sempre.
O
enredo policial, após assassínio do quase Nobel, suscita várias interpretações,
que também são erros de paralaxe, enquanto não se desvela a autoria do crime.
Creio
ter dado a atmosfera política, social, literária e tipográfica da Lisboa do
século XVI, além da sua topografia entre 1570 e 1580. O mesmo direi sobre uma
vaporosa consoada no século XIX, convocando autores que estudei a fundo e
editei. Se o diálogo, além e aqui, sai verosímil, mais solto e actual se lê nos
outros textos.
Honro-me
de entrar nesta editora e colecção, que me oferecem, pela primeira vez, uma
sobrecapa. Vêm saudades da adolescência e do tipógrafo em embrião que também
fui, cujos rudimentos da arte negra descrevi no romance A Terceira Margem (2021).
Prático nos caracteres móveis, o meu jovem herói «mal chegava ao cavalete; e só
em bicos de pés enxergava a caixa, em cujas divisões, ou caixotins, escolhia a
letra, segurando, na mão esquerda, o componedor. Num relance, fixava as frases
do manuscrito seguro no divisório (este, por seu turno, fixo na caixa), e,
quase instintivamente, levantava a letra, com a fenda ao alto, formando
palavras, frases, linhas, páginas, cadernos, volume. // Este acto de criação
inebriava-o: mais do que de Deus ou do autor, dependia de si o resultado final,
mesmo após cuidada revisão alheia […].»
A
revisão, que eu mesmo fiz, está perfeita. A vossa atenção mais agradável ainda.
Obrigado.