terça-feira, 4 de outubro de 2011

O Romance do Gramático, um romance total


Quando entramos na casa do romance grego, é curioso observar a importância que tiveram os diálogos socráticos na constituição do romance biográfico, a terceira espécie de romance antigo, segundo Bakhtine, em Estética e Teoria do Romance. Ele divide o romance biográfico em «dois tipos principais de autobiografia»: o de tipo platónico – caso da Apologia de Sócrates e do Fédon –, em que acompanhamos a existência de quem, ignorante mas confiado, céptico e autocrítico, se aproxima de si mesmo, só então atingindo o verdadeiro conhecimento: há crise e regeneração, assistimos a uma «metamorfose»; e, segundo tipo, aquele que assenta no enkomion, não nos ocorrendo, hoje, que esse encómio era elogio fúnebre de um cidadão. Aí está uma singular forma biográfica, a narrativa de uma vida, por si mesmo e interpostas figuras, até ao leitor. O Romance do Gramático é autobiografia de um ser em crise, duvidoso, parcialmente encomiástica, porque editorialmente curada após a sua morte.
A metamorfose já é elemento processual no romance de costumes, a segunda modalidade de romance grego, para Bakhtine, que se demora com O Asno de Ouro, de Apuleio: as peregrinações do herói Lucius, transformado em burro, visam uma identidade. Da culpa à redenção, é a história de um destino. Também aqui, Fernão de Oliveira e o velho dominicano que o segue vão da culpa à redenção.
Esta modalidade alarga, por já conter uma série de provas a vencer, o mais conhecido romance de aventuras, estudado em primeiro lugar pelo ensaísta russo.
Ora, aventuras (primeira modalidade), costumes (segunda) e biografia (terceira, entre autobiografia e encómio post-mortem) estão conjugados n’O Romance do Gramático, qual tábua de saberes, de discursos, autores e problemas do século XVI português e europeu.
Fernão de Oliveira foi um irrequieto, no tempo em que emergiam as aventurosas novelas de cavalarias. Fugiu dos dominicanos em 1532, com 25 anos, internando-se em Castela. Que outra Europa, além de França e Inglaterra, não terá conhecido, até Janeiro de 1536, quando sai a pioneira e mal conhecida Gramática da Linguagem Portuguesa?
Nesse lapso breve de dúvidas, entra o tempo da primeira parte do meu romance, mais psicológico do que histórico. Não se trata de formação ou aprendizagem, nem de desilusão, como diria Lukács, na sua Teoria do Romance. Sob ameaça e vitórias turcas na Europa Central, um convento resiste na Eslovénia, não longe da fronteira austríaca. É uma ilha mais de nacionalistas que de frades, embora isso só a pouco e pouco se vá percebendo, porque o autobiógrafo veladamente o diz – exprimindo-se, depois, abertamente, pela boca da sua sombra, aquele dominicano censor de obra sob cujo peso a consciência vai ceder. Outra forma de distrair o leitor, de o levar por derivas e veredas de sentido, de criar um estranhamento, é trazê-lo à realidade de hoje, quando, por exemplo, se sugere um concurso internacional Cristo do Ano…
Estamos ainda à superfície, em narrativa do visível, do sensível e palpável, do imaginável, do não dito pelo herói que a si mesmo se escreve, enquanto, nas partes baixas (que não é o que se julga), algo de mais profundo se passa, só denunciado pelo velho dominicano, nascido em 1494, com Tordesilhas. Este frade é a sombra de Oliveira, o outro lado, que o persegue; mas Fernão percebe-se guiado, e vigiado, por outrem, ignora quem – guiado por um poder obscuro, talvez Sua Sentidade (não procuramos nós sentidos?), vigiado pela ordem religiosa donde fugiu, pelas regras sociais, gramaticais, não raro subvertidas; à primeira leitura, contudo, mostra-se respeitador, heterodoxo, inquieto.
Fernão dá-nos a superfície do acontecer e das relações conventuais; mas também aquilo em que se torna, alguém que, ajudado por mulher da família de Sua Sentidade (uma filha bastarda de D. Manuel I, logo, irmã do então rei D. João III, nascida em 1512, quando também nasce o irmão e inquisidor-mor cardeal D. Henrique), nela gera um filho, ausente até à última página. O amor foi possível por teimosia dela, guiando-lhe os passos, até ao labirinto da natureza humana e vegetal, onde ele quase se perde; mas esse amor tornou-se, por razões de Estado, impossível, ou só parcialmente concretizável, fugaz, na demanda do filho, que Fernão empreende na segunda parte.
Assim, há razão para esse romance (o que ele escreve e o que vive com nova Judite, que lhe faz perder a cabeça) entrar no primeiro Index manuscrito, de 1547, a cargo de dominicano perverso, que se sentirá ludibriado, só tarde percebendo que, no interior da ilha, nas suas partes baixas, falsos frades escondem do Turco a cultura ocidental, saída de sob 14 altares da falsa biblioteca gótica. São outros 14 passos de uma civilização cristã em seu calvário agora vitorioso. Vingativo, o frade retira-lhe o filho; pior: nesse 1547, no dia em que Fernão devia celebrar 40 anos, esse dominicano faz correr que o filho do ex-irmão em Cristo morreu; é quando o herói sai, desaustinado, da tasca da Machadinha, acompanhando pelo fiel Bartolomeu Fernandes, e se refugia no mar de Carcavelos, onde, 22 anos depois, nos dias da Grande Peste de 1569, que leva António Ferreira, encontrará o memorialista Pero Roiz Soares.
A alegada morte do filho funda «uma história mal contada», título do segundo ‘livro’. Contada por quem não gosta de nós, mas que, por interposto conterrâneo eborense, amigo igualmente de Fernão, o gramático Duarte Nunes de Leão, se vai amaciando, e penitenciando, até gostar de quem, afinal, o conta quase integralmente. Ou seja: Fernão vê-se pelos olhos de um inimigo, até o conquistar. A escrita cura quem julgava matar com o verbo, bastando-lhe um parecer proibitivo. De aventureiro irrequieto, Fernão passou a inquieto socrático; agora, sofrida duas vezes a Inquisição, com ideias próprias sobre a conduta dos padres ou futurando a posteridade de Henrique VIII, é um ser exemplar, sem amarras no pensamento, temperado pela dor. Eis outro segmento da história: o exemplo de um homem bom vence-nos, salva-nos.
Outras aventuras se desenrolam, entre 1510 e 1581, quando a nação já baqueia, e morre, também, Fernão; os costumes e personagens do século acompanham; os sentidos tornam-se indecisos, nas horas brumosas de ilha na Europa Central ou em país na margem atlântica, nesses anos de Contra-Reforma.
Posta uma autobiografia na primeira e terceira pessoas, só há encómio se o texto for retomado por outrem – cria-se, assim, indefinição autoral, como proponho. Participes do encómio são Duarte Nunes, que reúne as duas partes; o copista do verso do fólio – o filho Fernão de Oliveira, que redige a sua mesma ausência, e já impulsionara a história; a proprietária do manuscrito, que o transcrevera; o editor literário, professor desta, que actualiza o texto, o torna verosímil e a tudo superintende, sendo ainda responsável pelo título apócrifo O Romance do Gramático; eu próprio, enquanto autor civil e crítico do que nos trouxe aqui. Outros críticos, compradores e leitores da obra participam do encómio. Eis como se alarga uma autoria. Pensei em todos, ao convidá-los a entrar na biografia desse extraordinário aveirense, historiador, mestre de marinharia e da arte da guerra, que foi o nosso primeiro gramático, Fernão (ou Fernando) de Oliveira.

Ernesto Rodrigues

2 comentários:

Anónimo disse...

Boa tarde,

Gostava de perguntar-lhe, caso possa responder, se existiu realmente uma filha bastarda do rei D. Manuel I.

Obrigado,
Manuel M.

Ernesto Rodrigues disse...

Invenção minha.
Peço desculpa pelo atraso na resposta, que só hoje vi, tão afastado ando desta página.