terça-feira, 15 de setembro de 2015

O presente, “futuro do passado”, no aliciante romance A Serpente de Bronze, de Ernesto Rodrigues


Só nos resta acomodarmo-nos ao mundo tal como ele é, ou, então, lutarmos
individualmente pela própria salvação[1].
Marguerite Yourcenar

A sanção do crítico não é o sentido da obra, mas o sentido do que dela diz[2].
Roland Barthes


Começo este apontamento sobre o inquietante romance de Ernesto Rodrigues, A Serpente de Bronze, asseverando que se trata de uma obra fortemente organizada a nível da sua estrutura externa. Desde logo, pela divisão em quatro partes, que, segundo creio, se podem subdividir em dois andamentos, uma vez que na primeira e na segunda partes se narra uma ação, localizada, temporalmente, no século XX; e na terceira o narrador oferece-nos, pela voz de uma personagem da primeira história, uma intriga, deslocada do tempo da escrita, localizada no século XVI e seguintes. Na quarta parte, com apenas dois capítulos, apresenta-se o desenlace das duas ações: o capítulo 15 da ação presente e o 16 da pretérita.
A I parte decorre de junho a outubro (relato da viagem até à Hungria), a segunda em outubro (onde se relatam os acontecimentos político mais relevantes deste país.) A terceira parte começa em 4 de maio de 1578, dia da batalha de Alcácer Quibir, e, percorrendo os séculos vindouros, termina com a evocação da revolução dos cravos de 1974.
Em primeiro lugar, farei uma breve descrição dos conteúdos de cada parte para, num segundo momento, abordar as temáticas e os motivos presentes no romance.
Na primeira parte, subordinada ao título “Relação breve da aventurosa viagem até Budapeste”, que lembra os títulos da Peregrinação e dos seus congéneres dos séculos XVI e XVII, o narrador/autor afirma, sem ambages: “Como leio num cronista”, indicando, ab initio, o seu modus faciendi, que se apresenta como a sombra de outro texto; como lembra Barthes, “o texto tem necessidade da sua sombra: essa sombra é um pouco de ideologia, um pouco de representação, um pouco de sujeito: fantasmas, bolsos, rastos, nuvens necessárias: a subversão tem de produzir o seu próprio claro-escuro”.[3] Esta relação entre texto e sombra é tão intensa que, por vezes, o leitor tem dificuldade de a descontinuar, de tal forma o autor/narrador intrinca as duas.
De seguida, o narrador foca-se na primeira pessoa, ao afirmar: “Indo agora por terras de Espanha montanhosas” (13), para, logo de seguida, se equiparar a Vasco da Gama numa primeira referência a Os Lusíadas, sombra principal deste romance de Ernesto Rodrigues, ao afirmar: “Cometendo a Europa num trem leve, por vias nunca ousadas”. (16) O narrador, continuando na esteira de Camões, narra um consílio dos deuses na gare de l’Este de Paris (16), onde um velho toma o lugar de Júpiter. Baco e Marte são nomeados pela expressão “um deles” e Vénus por “uma mulher”. É, ainda, em Paris que ocorre o hipotético crime que atormentará as personagens até Budapeste. O que é mais espantoso é que, depois, a narrativa vai apresentando motivos que legitimam esta hipótese, uma vez que todas as personagens tinham os seus motivos para praticar o crime.
Significativo, também, é o nome das personagens e, ainda, o facto de só aparecerem no segundo capítulo, qua passo a elencar: Deus, também nomeado por capitão; Perna de Aço, que deve o apelido a uma perna artificial; Longa Vida, mulher que vendia receitas para durar até aos duzentos anos; Pé de Flor, mulher que vendia flores na rua; e o Outro, que, em certas passagens, pode ser identificado com o autor.
            No terceiro capítulo, a sombra dominante é a da Peregrinação, detetando-se, ainda, uma referência histórica à Nau Santiago e ao ano de 1585. As personagens, no capítulo quatro, saem de Paris, passam pela Alemanha e chegam a Viena, onde Perna de Aço é apontado como o principal suspeito pelo crime de Paris. O capítulo cinco é dominado pelo interrogatório de Perna de Aço, narrado a posteriori pelo próprio aos demais companheiros, na manhã do dia seguinte. Esta parte termina com mais um mistério, um cadáver feminino encontrado no Danúbio, sendo os suspeitos, de novo, as personagens do romance.
Na segunda parte, intitulada “Os acontecimentos de Outubro”, os protagonistas encontram-se na Hungria. O narrador aproveita para refletir sobre os trágicos acontecimentos que enformaram a revolução húngara de 1956. As personagens, num passe de mágica, regressam ao passado e perdem-se na confusão dos acontecimentos e manifestações. Ato contínuo, narra-se o que sucedeu no dia 15 de março de 1848, elencando o narrador todas as atrocidades cometidas neste momento em nome da revolução. Alude-se, de seguida, à segunda grande guerra nestas palavras: “Viena bombardeada pelos americanos e Budapeste libertada pelos soviéticos.” (104)
A terceira parte, que responde pelo título “Um príncipe das sombras”, é, como já referi, composta por uma ação independente localizada no passado histórico de Portugal, visto que se centra no tratamento da figura do rei D. Sebastião e do que sucedeu após Alcácer Quibir. O príncipe/Sebastião é acompanhado por duas personagens: Diogo Bernardes, “escrivão” do Príncipe, e Alonso, que pode representar os mercenários, vindos de toda a Europa para auxiliar o Rei na empresa africana. A intriga prossegue com a narração dos trabalhos e privações no cativeiro. Convém, desde logo, referir que Camões, “o velho poeta”, é, à semelhança do que acontecia na outra intriga, uma sombra contínua, chegando mesmo a dialogar com o Príncipe. A peregrinação do príncipe e de Diogo, uma vez que Alonso fenece, é-nos relatada de forma elíptica: chegam de barco a Cádis, ficando aí muito tempo, depois a Lagos, e, a 25 de junho, a Oeiras, e, por fim, a 14 de julho, ao Terreiro do Paço, onde se falava castelhano, numa alusão ao domínio filipino. A fusão da ficção com a realidade é, como se constata, uma constante nesta parte, saindo reforçada no capítulo dez com a narração do relato, em analepse, do que aconteceu pelo norte de África, em vinte anos de cativeiro. Esta referência temporal convoca à memória do leitor a obra de Garrett Frei Luís de Sousa e a figura do Romeiro. A ficção, ou melhor, a sombra, é corroborada pelo autor/narrador, ao asseverar que o diálogo, apresentado na p. 128, é cópia de um documento encontrado no arquivo de Simancas. Ato contínuo, o narrador passa a fazer crítica literária ao refletir, com propriedade, sobre a dedicatória d’Os Lusíadas. No capítulo 11, o Príncipe assiste a um auto-de-fé em Beja no ano de 1619, a que se seguiu depois, em Lisboa, uma representação de uma companhia de teatro espanhola, onde se fazia um apanhado, muito crítico, da história de Portugal e dos seus reis (146). No capítulo 14, a ação continua em Lisboa, onde se narram as diversas reuniões secretas para acabar com o domínio filipino. Nesta empresa, sobressaem os conspiradores (Príncipe, Diogo Bernardes e Manuel dos Santos) (134). O episódio narrativo da sucessão do duque de Bragança ao domínio filipino, inspirado, segundo creio, no capítulo XI da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes (159), que decorreu sem derrame de sangue, facilmente reenvia a memória do leitor para o que aconteceu na revolução dos cravos, em 25 de abril de 1974, interligando os dois momentos históricos.
Só na p. 185 é que o leitor toma conhecimento do narrador insuspeito desta ação, que é uma das personagens da primeira história, Pé de Flor. O narrador sente a necessidade de voltar ao tempo da escrita para contextualizar melhor o tempo da história, uma vez que, ato contínuo, Pé de Flor prossegue a narração.
Na quarta parte, “Epílogo e melodia”, composta pelos dois capítulos finais, o leitor toma conhecimento de que tudo aquilo se resumiu a uma operação policial de espionagem de larga escala. No capítulo 16, o Príncipe é associado a Camões, quando salva o livro a nado num ribeiro. (208) Refere-se, ainda, o terramoto de 1755, que é posto em paralelo, uma vez mais, com 1974, realçando-se, no presente, a satisfação da liberdade. No final do romance, dá-se a simbiose das ações do livro, ao afirmar-se que Alonso era um agente espanhol e Camões um agente português em Goa. Este facto, entre outros, torna A Serpente de Bronze um misto de romance histórico e policial. Constato, também, que, para o autor, os escritores funcionam como agentes ao serviço do país servindo de embaixadores do mesmo, como “o senhor De Queiroz, outro agente” (217), utilizando e divulgando a língua, o maior tesouro das nações.
No epílogo, Camões desce do pedestal, e serve de cicerone ao casal formado por Vénus e o Outro, guiando-os por Lisboa, nos primeiros dias de liberdade, após a revolução dos cravos.
Passo, ato contínuo, a descortinar os motivos pelos quais vale a pena ler este aliciante romance, começando pelas citações e relações intertextuais, isto é, pelas sombras, que enformam o texto de Ernesto Rodrigues.
1. Em termos de ressonâncias literárias, como já referi, a figura de proa é, como não é de estranhar num autor clássico, Camões. Aliás, várias são as ocorrências em que o texto do épico é apropriado pelo narrador, uma vez que não é identificado. Assim, este romance, se outro valor não tivesse, só pelo facto de nos “obrigar” a reler a epopeia nacional seria, como o leitor concordará, mais que suficiente para atestar a sua importância. O próximo diálogo é travado com Mendes Pinto e a sua Peregrinação, cujo incipit aparece na p. 61. Esta interlocução permite ao narrador levar o leitor a interrogar-se sobre o roteiro exterior ou físico e à questionação interior que todo o ser humano, quer queira quer não, acaba sempre por fazer com maior ou menor consciência disso.
A interseção do autor/narrador é desvelada na p. 31, onde se nomeiam os intertextos do romance: “Desfiz-me da pasta e entreguei Jornada d’El-Rei D. Sebastião à África a Perna d’Aço; Itinerário, do Padre Jerónimo Lobo, a Longa Vida; História Trágico-Marítima a Pé de Flor; Os Lusíadas, em edição escolar, ao capitão, quedando-me eu com passos selectos da Peregrinação”. Para além destes, aparece, ainda, a referência a João de Barros das Décadas e várias alusões a Gil Vicente.
A voz de Saramago, em Que Farei com Este Livro, ressoa na p. 184 traduzindo as tristezas e dores de alma da mãe de Camões quando o viu regressar da Índia, velho, abatido e sorumbático. A referência a vários pintores, na p. 99, reforça o diálogo entre a literatura e as outras artes, em especial, a pintura. A citação de Ovídio “Nubila tempora!” (100) confirma o clima conturbado que se vivia em Budapeste aquando da revolução.
A apologia do saber e o carinho pelos livros são uma constante no romance. Dou como exemplo o facto de Frei Manuel dos Santos chegar ao cativeiro com livros para o Príncipe e Diogo Bernardes (cf. 136). E mais adiante pode ler-se que “Isto dizia Bernardes, que trazia ensebada a Compilaçam. Sebastião esquecera Os Lusíadas e o outro livro em Tânger.” (147) Registe-se que este apreço pelos livros, ou melhor, pela literatura, estava, também, patente na primeira intriga, como se referiu acima.
2. Outro manancial inesgotável do romance são as máximas e sentenças que, associadas a uma fina ironia, enformam a Paideia do autor. Comecemos, então, pela ironia presente em “que bem escreve certa gente!” (13), referindo-se à descrição de um cronista, mas que não pode deixar de ser lida como uma alfinetada à atualidade. Encontramos, de seguida, o trivial “- Quem te avisa teu amigo é.” (69). E numa alusão ao empós 25 de abril censura: “Nasciam partidos e jornais como moscas.” (101) O valor do estudo e do trabalho é-nos relembrado tendo como modelo a seguir Camões, “Engenho e honesto estudo era, pelos vistos, o que faltava aos poetas de aviário. Luís Vaz sabe isso.” (131) Aos céticos aconselha-se a leitura destes versos do épico: “Não me falta na vida honesto estudo, / Com longa experiência misturado, / Nem engenho, que aqui vereis presente, / Cousas que juntas se acham raramente.” (Lusíadas, X, 154) A próxima sentença parece ser talhada para os tempos hodiernos, confirmando, assim, a verdade e a atualidade da literatura: “Ilusórios que são os discursos, quando não conhecemos a quem nos dirigimos!” (133)
O próximo incentivo é para aqueles que nunca desistem perante as dificuldades e conseguem fazer das fraquezas forças: “Vence-se uma vez, perde-se na seguinte. Só fica humilhado quem não reflete. E quem, aparelhando-se a batalha, o poeta critica são os traidores e os fracos.” (149) Este encorajamento à persistência e à labuta intelectual encontra-se cristalizado em “Mas não se é velho enquanto se não morre” (180). Depois, numa alusão materialista da vida, que ninguém pode derrogar, escreve: “quem perde quer recuperar. E parece ser esta a única diligência enquanto cá andamos.” (187) Todavia, o narrador termina com a constatação de que, “Afinal, nunca saímos do mesmo lugar. Isso é que é trágico.” (217) É esta insatisfação, inerente ao ser humano, que nos leva em demanda de uma nova Índia sempre por achar associada à loucura sebástica de que falava Pessoa, para no fim concluir, com algum desalento, que afinal não saímos do mesmo lugar. Mas a única atitude possível é, sem dúvida, seguir o conselho de Torga no poema «Viagem», “Em qualquer aventura, / O que importa é partir, não é chegar.”
3. Passemos, agora, a dilucidar as questões estilísticas que enformam a ars do escritor Ernesto Rodrigues, começando por realçar a técnica narrativa que foi, ouso afirmar, o precursor do romance moderno, ao narrar mais do que uma intriga no mesmo romance e, sobretudo, na utilização de uma espécie de enjambement de uns capítulos para os outros, prendendo, desta forma, o interesse e a atenção do leitor. Veja-se, a título de exemplo, “Já desarvoravam, quando veio tropeçar neles um acontecimento extraordinário” (71). Este segmento textual, com que termina a primeira parte da obra, tenta o leitor a continuar a leitura e a seguir, qual investigador, as pistas que o narrador de forma latente lhe vai fornecendo.
Associado com este encontramos, logo no início do romance, o recurso à captatio benevolentiae presente em “Como a história continuava não o poderia imaginar. E o leitor também não. Mas já vamos ver.” (15) Este recurso é recorrente em outros momentos da obra, do qual damos, apenas, mais um exemplo: “Sigamos o frade, deixando ambos entregues aos cuidados de um grupo singular, não sabemos se religiosos se conspiradores.” (139, sublinhado meu)
Estritamente relacionado com este procedimento encontramos a interpelação ao leitor, que nos lembra o Garrett das Viagens, presente em “no que eu e o benigno leitor estaremos por certo de acordo.” (36) E, ainda, “Descansado o leitor quanto ao estilo do nosso protagonista, que em Tânger melhorara, vamos então até ao Terreiro do Paço ainda sem cavalos, para onde as autoridades convocaram as manifestações oficiais de homenagem ao Poeta” (147).
Outro traço distintivo do estilo do autor é a simbiose entre o narrador e o autor, tornando-se ao leitor difícil, em certas passagens, identificar qual a voz que lhe fala, como confirmamos neste segmento textual: “Pensávamos nós, autor, que o mesmo se desse com Perna d’Aço, quando nos metemos a narrar a continuação desta História.” (103) Convém realçar o facto de o vocábulo História estar grafado com maiúscula, apresentado, em meu juízo, um duplo significado, ou seja, a intriga que está a ser narrada ou a história real que ensombra todo o romance, sendo este o objetivo do autor/narrador.
A nível da linguagem usa e abusa de alguns registos de língua, como é o caso do calão e da gíria, acompanhando, deste modo, o pulsar da sociedade e a plasticidade da língua. Vejamos, como exemplo, alguns segmentos textuais: “um gajo atira-se para a frente” (14), “a puta não era menos transparente” (16). Encontramos, de novo, estes vocábulos na p. 19, “puta” e “gajas”. E, por fim, para não enfadar o leitor, apresento mais um: “- Foda-se lá a gaja!” (51). Penso que estas emancipações literárias entroncam no deslumbramento que o país vivia nos anos subsequentes à implementação da democracia, em que todos os exageros eram permitidos e a literatura, espelho/sombra da sociedade, não ficava de fora, como o atesta um grande número de obras desse período. Convém, no entanto, realçar que Ernesto Rodrigues, nas obras supervenientes, não ficou refém destes hábitos, optando, isso sim, por um estilo mais sóbrio sempre associado a uma atitude inconformada e reflexiva, como defende Marcel Cressot: “Cada época tem os seus hábitos e gostos: o escritor pode submeter-se a eles, total ou parcialmente, ou retomar uma tradição abandonada, ou ainda manifestar uma atitude de inconformismo.”[4]
São, ainda, de distinguir o recurso à adjetivação dupla e tripla, “o seu gesto, alto, severo e soberano” (15), às inúmeras interrogações retóricas: “Para quê correr atrás da mulher e suas razões?”, ou “Porque somos feitos assim?” (18), que continuamente interpelam o leitor e o levam à introspeção. Nem outro propósito, segundo creio, tem toda a escritura de Ernesto Rodrigues, que, na senda de Umberto Eco, defende: “O escritor pretende revelar ao próprio público aquilo que ele deverá querer, mesmo que não o saiba. Ele pretende revelar o leitor a si mesmo.”[5]  Outra inovação do escritor, em termos estilísticos, é o facto de, à semelhança de Eça, criar novos vocábulos: “connosco esplanadou” (27).
A técnica do autor atinge o auge nos esplendorosos diálogos, onde experimenta algumas inovações, recentemente introduzidas no idioma português por Saramago: “O individuo babuja Hum hum como quem diz A esta dava-lhe eu o chá e eu aprovo de beiço…” (14) A utilização do discurso direto sem as suas marcas formais, dois pontos e travessão, parece-me, como já referi, ser influência de José Saramago. Os diálogos são tão empolgantes que o leitor, num primeiro momento, não se dá conta de que quem está a dialogar são duas personagens do século XVI, como acontece na p. 62, onde os intervenientes são Fernão Mendes Pinto e Vittoria Farnese.
O derradeiro apesto sobre esta questão prende-se com o facto de o autor associar a literatura ao cinema tanto no ritmo como nos planos, como corroboramos em “Deixemos, pois, desenrolar-se o espetáculo a certos títulos degradante; aceleremos a fita para mostrar como, terminado, os seis se reuniram e brindaram a uma boa chegada, que os astros apontavam para Maio” (171). Esta associação é uma constante no romance, obrando, também, para prender o leitor ao texto.
4. O quarto apartado deste texto aborda a interseção temporal verificada na obra A Serpente de Bronze, visto que há um cruzamento entre o presente da escrita (século XX) e o presente da narração (século XVI). Aliás, o século áureo, a todos os níveis, da nação portuguesa continuará a figurar na obra narrativa do escritor - veja-se, a título de exemplo, O Romance do Gramático, de 2011[6]. Esta distanciação histórica permite ao narrador inscrever um outro tempo no tempo da escrita, por um lado, e demonstrar que, afinal, a sociedade atual enferma dos mesmos defeitos do passado, e, por outro, sendo que, da constatação, resulta o facto do abatimento e ressentimento presente por não termos tido a capacidade de aprender com os erros do passado. Esta ligação é acentuada na p. 77, onde se lê, “Mais: às duas da manhã desse 24 de Outubro, assistindo à queda definitiva da estátua de Estaline, soube-se que carros soviéticos tinham entrado em Alcácer Quibir, perdão, em Budapeste.” (77) Relembro que este processo é em tudo semelhante ao utilizado por Manuel Alegre no livro Atlântico (1981)
5. Passo, agora, a pronunciar-me, de forma sucinta, sobre o sugestivo título do romance que se escora no ambivalente mito da serpente, corroborado na epígrafe da obra retirada do livro dos Números. Aliás, no fragmento bíblico está bem patente a dupla função/significação da serpente, ou seja, o bem, a redenção e a salvação; e o mal, a dor e o sofrimento configurados na morte do povo provocada pelas mordeduras das serpentes.
É do senso comum que a serpente está associada à fecundidade, representada pela serpente Ouroboros, que devora a própria cauda e renasce, qual fénix das próprias cinzas, para uma vida melhor. Ora, com esta conotação positiva encontramos, desde logo, na imagem da capa uma alusão às serpentes na fotografia que representa uma estação de caminhos de ferro. Esta associação é clarificada pelo narrador ao afirmar: “as serpentes metálicas descansando ali no cais” (18). Como facilmente se intui, as serpentes/comboios simplificam as ligações e a comunicação entre os povos, realçando o seu lado positivo.
Por outro lado, a serpente pode representar o mal, ou melhor, o perigo, sendo facilmente associada à Medusa, quando lemos: “Ao lado, bastando-lhe tirar fora a mão, anelava uma donzela de serpes tranças dormindo, que lhe apetecia afagar.” (188) Esta outra face da serpente encontra-se, também, na imagem da capa, representada pelas duas figuras femininas desnudadas, com ressonâncias bíblicas. No mesmo sentido podem ser interpretadas as seguintes passagens: “Longa Vida viu, num breve sonho, cabeças de serpentes bem pesadas tomando posições nos altos e em cruzamentos vitais.” (85) E, na continuação, “os pobres humanos, só de nelas porem os olhos, viam-se de membros presos.” (86) Aqui, numa explícita alusão aos atiradores a quem é dado o mesmo poder de Medusa, paralisar quem os olha/afronta.
Por último, penso que esta serpente de bronze poderá ser uma alusão sarcástica ao muro de Berlim, que acabaria por cair no mesmo ano do lançamento deste romance, em 9 de novembro de 1989, que, tal como os cabelos de Medusa, era fatal para quem dele se aproximava.
6. Por último, compilo as reflexões sobre o país, o mundo e o homem, que atravessam todo o romance. Começando pelo país, é curioso verificar que Portugal é associado, de forma sarcástica, à “Ilha da boa vida”, onde Veloso e Leonardo (personagens d’Os Lusíadas) gozam umas merecidas férias. (cf. 175) Esta visão disfórica do país expressa por Ernesto Rodrigues aproxima-o, em minha opinião, do sentir de Alexandre O’Neil, quando declarou: “Portugal uma questão que eu tenho comigo mesmo.” Não restam dúvidas aos leitores da obra de Ernesto Rodrigues que uma das suas preocupações essenciais é com o país e seu devir. Logo, só congregando esforços e vontades se conseguem alcançar os grandes desígnios, pois “Pátria dividida não oferece novidade” (13). O entusiasmo do narrador/autor é tanto que se mostra preocupado com a comunicação entre os representantes e os representados, como se lê: “a ele capitão desafiava mandasse alguém, ou fosse ele de corpo inteiro, verificar o que as centrais de propaganda e desinformação espalhavam nas pobres almas, tão carecidas de verdade e sã doutrina quanto do bife e batatas fritas”. (37, sublinhado meu)
            A hipocrisia religiosa é-nos apresentada na p. 40, numa enumeração das relíquias sagradas que lembra a Relíquia de Eça e o procedimento de Teodorico, com toda a crítica que lhe está subjacente. Vejamos, agora, a opinião do autor/narrador sobre a atualidade: “- Mas qual domina: a cultura ou a política? Deus aspirou para longos voos: - Na Idade Média não havia dúvidas: a religião católica unificava-nos. A cultura substitui-a depois, mas hoje também esta perdeu impacto frente a algo de caótico que, grosseiramente, se reduz à política.” (54, sublinhado meu) Ato contínuo, critica-se a barbaridade que é, em pleno século XX, o ataque à cultura configurado na queima dos livros, que recupera os procedimentos obsoletos da Inquisição, “Por mim, não via que houvesse aí revolução: Puchkine, Tolstoi, Techekov, Dostoievski e Gogol ardiam: estas manchas brilham sempre mais em qualquer cataclismo da História, diga-se ele puro ou anti-burguês. O prazer a que, escrevendo na sua língua, eles se tinham entregado, estava a ser queimado, entre abraços e pálinka, iluminando a noite de memórias arrepiantes.” (78)  
            Como se comprova, o leitor está constantemente a ser convidado à reflexão, pois o intuito do autor é levá-lo a questionar/repensar o presente a partir do passado, quando ao confrontá-lo com estas palavras: “- A Europa dorme. Esqueceram-se dos húngaros…” (95) Hoje, diríamos dos sírios, dos afegãos… Noutro passo, oferece a oportunidade de se refletir sobre a escravatura, “montanhas negras de homens, que também podiam ser colocados no Brasil, florescente mercado de trabalho” (177). O último aviso que nos deixa, em jeito de futurismo, prende-se com o facto de o país importar tudo, destruindo, desta forma, o seu aparelho produtivo: “Tornara-se já um hábito mandar vir de fora alimentos e não seremos nós a praticar contra isso.” (207)
Creio que se compreenderá melhor, agora, a citação de Marguerite Yourcenar que serve de epígrafe a este trabalho, uma vez que o mesmo é revelador de que o escritor Ernesto Rodrigues não só não se conforma com o mundo em que vive fazendo da vida uma luta permanente pela sua salvação, mas também labora através da sua escrita (tanto em prosa como em verso) para a salvação do outro/leitor.

Bragança, 15 de setembro de 2015
Norberto Veiga



[1] YOURCENAR, Marguerite, A Obra ao Negro, Lisboa, Dom Quixote, 9.ª ed., 2009, p. 211.
[2] BARTHES, Roland, Crítica e Verdade, Lisboa, Edições 70, 1997, p. 64 (1.ª ed., 1966).
[3] BARTHES, Roland, O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70, 1997, p. 72 (1.ª ed., 1973).

[4] CRESSOT, Marcel, O Estilo e as Suas Técnicas, Edições 70, Lisboa, 1980, pág. 305.
[5] ECO, Umberto, Porquê «O Nome da Rosa», Difel, Lisboa, 1984, pág. 42.
[6] Sobre esta obra, veja-se, VEIGA, Norberto, “Ficção, história, pedagogia e atualidade no enciclopédico “O Romance do Gramático” de Ernesto Rodrigues, in http://ernestorodrigues.blogspot.pt/, em 13/09/2015 ou http://norbertoveiga.blogspot.pt/, em 14/09/2015

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