sexta-feira, 17 de março de 2023

Liliputine

 

Vivemos tempos negros, como a capa deste romance: populares derrubam a estátua de Estaline, que decapitam. É o voto do meu livro, em relação a Putin.

A história passa por Budapeste, onde se guarda memória desses dias de 1956, em que o Ocidente não respondeu ao apelo do primeiro-ministro. Já acontecera sublevação operária em Berlim Oriental, em 16-17 de Junho de 1953, três meses após a morte do Pai dos Povos, como Estaline vinha glorificado, e vai acontecer na Checoslováquia de 1968. Não menos grave, há menos tempo, deu-se noutras zonas de influência russa, até ao silêncio de Obama, Merkel e companhia na tomada da Crimeia, em 2014.

Se a Gazprom vergou estados europeus ditos independentes, a Ucrânia é, e será, um negócio para muitos – salvo para as centenas de milhares de mortos e feridos, e milhões de refugiados. Penso nestes, que atravessam o romance, como já lhes dedicara Uma Bondade Perfeita. Dez por cento da Humanidade passa fome; um por cento dos oito mil milhões são refugiados, dos quais dez por cento ucranianos. Outra tragédia é a anunciada corrida aos armamentos, com os orçamentos da Defesa queimando contribuintes. Os actuais dispositivos bélicos são suficientes para acabar com a fome, com refugiados e connosco; pelo que, quanto mais o Ocidente subir a parada, mais a Federação Russa troca o pão pelo gatilho. E, como se viu na Guerra Fria, ninguém vive de slogãs. O cinismo do Ocidente fará vergar a nomenklatura, donde saia um sucessor desse que viaja em comboio privativo, tem medo da livre expressão, sobrepõe-se ao aparelho judiciário e alterou a Constituição para se manter vivo em 2036, certo de que ninguém o afrontará – salvo a lei da vida. Nem Marx, nem Lenine, mas puro Estaline, esta escolha diz tudo da sua política.

Era eu criança e já ouvia em casa «Rádio Moscovo não fala verdade». Não é só Rádio Moscovo. Na dúvida se a maldade era só salazarista, fui, com 16 anos, até França, para acompanhar o torneio de xadrez Fischer-Spassky e alguns intelectuais de pensamento crítico; convicto de que nenhum partido pós-abrilista merecia a minha quota, fui, aos 25 anos, viver um quinquénio na Hungria. Internacionalismos e fraternidades operárias eram uma ilusão. Desde 1982, eu escrevia sobre o ditador Ceausescu; sobre polacos assaltando bananas e papel higiénico em Budapeste. Face à vertigem armamentista, a carestia de bens e o sufoco moral fizeram explodir esses países, que, no meu romance de estreia, A Serpente de Bronze, escrito em 1984-85, editado no glorioso ano de 1989, eu já via na casa comum europeia – e assim foi, em 2004.

A Rússia libertou-se com Gorbatchov, mas foi sol político de pouca dura; a sociedade civil ocidentalizou-se, contudo. O problema é que foi só nas grandes cidades, quando se trata de um país tão desigual, a vários níveis. Mas não vai esquecer a marca dessas três décadas, sobrevivam embora chauvinismos, verdades alternativas, dirigentes fora do quadro institucional e um controlo policial absoluto. Desejamos um país decente, não pária, envergonhado nas votações da ONU.

Ora, com a Gazprom quase dispensável num Ocidente ainda unido, com o PIB em queda e preços subindo a par do descontentamento, a lei das cliques ou da vida virá para Putin antes de 2036. O seu lugar na História, e na minha, é mancha a escorrer na galeria dos seres abjectos.

Não devemos ter medo das palavras: Putin é um ressabiado. Acaba o curso de Direito na cidade natal, São Petersburgo, e entra no KGB, cujos herdeiros dominam, hoje, a Federação Russa. Os chefes não lhe reconhecem particulares qualidades, sendo destinado, pois, à tranquila Dresden, na República Democrática Alemã. Um espião de primeira viria para o Ocidente.

Antes dos seus 40 anos, dissolve-se a União Soviética (1991), e um sonho que o inspira a partir do mandato presidencial de 2004-2008: reprimir dentro, conquistar fora. A NATO não percebeu; tomada a Crimeia, o Ocidente nem buliu. Convinha à Alemanha de Merkel, essa locomotiva europeia alimentada pela energia russa. Agora, com gás em reserva para o próximo Inverno, e as necessidades de petróleo em queda, não só sai afectada a economia (a par de outras sanções, cujos efeitos ainda mal se sentem), como se conclui isto: Europa refém da energia e propaganda russas não é uma Europa independente. A partir daqui, Putin inventou-se historiador para justificar o que poucos viam. No pretexto de desnazificar quem lhe fazia frente (um país dirigido por um judeu), mal informado (vergonha de espião), quis pisar Kiev em três dias. O sonho de 1991 começava a concretizar-se – ou isso parecia.

Eis a inspiração, ou aviso, para compor o meu nono romance editado, que descreve momentos fortes da História europeia desde a morte de Estaline, em 1953 (Putin não fala às crianças do acordo germano-soviético de 1939, visando dividir por ambos a Polónia; nem do massacre de Katyn). Saliento duas invasões: em 1956, na Hungria; em 1968, já não só os tanques soviéticos, mas também outras forças do Pacto de Varsóvia, na Checoslováquia. O actual czar, liliputiano, tem outro modelo: Pedro, o Grande – que, todavia, media dois metros e três. Resumo a história.

José de Arimateia e Maria de Jesus têm um filho, João Baptista, nascido em 1956, e vivem as ilusões de uma Hungria livre. Arimateia participa no levantamento de Budapeste, conviva de Lukács Mária, que dera à luz um filho do embaixador soviético Yuri Andropov, e este rapta. Andropov será chefe do KGB, logo, de Putin, e futuro secretário-geral do PCUS, na morte de Brejnev, em 1982. Em 1956, milhares de vencidos são desterrados para várias regiões da União Soviética, como acontece hoje na Ucrânia. Arimateia vive em Kaliningrado até Agosto de 1968: intérprete no exército que invade a Checoslováquia e põe fim à Primavera de Praga, salva uma adolescente, Hana, em cuja casa se refugia até 1971. Recusando contactar os comunistas portugueses no exílio, entra na vida de Miroslav, editor do realismo socialista europeu e latino-americano, e da empregada Krista, trazendo esta família para Lisboa.

Hana e João Baptista alimentam uma relação vigiada por Krista (que substitui mãe seduzida por poeta de Moscovo, onde vivem), relação suspensa entre 1979 e 1985, quando Hana acompanha Miroslav e Krista para Berlim Oriental – onde Lukács Mária lhe apresenta um espião soviético vindo de Dresden – e João Baptista faz espionagem (ou isso julga) ao serviço de Berlim Ocidental. Há uma promessa de reencontro na Hungria, o que acontece no Verão de 1985. Em 1986, nasce Magda Baptista, hoje docente de Estudos Europeus, que organiza este romance-reportagem em 49 cenas cinematográficas.

O glorioso 1989 separa o casal: Hana entrega-se, de vez, ao espião de Dresden, nascendo Boris. Foge com os filhos Magda e Boris para Moscovo. Os bons ofícios de Lukács Mária são recompensados com a visita do filho István, que não voltará a ver. João Baptista busca a filha, enquanto cicatriza a dor pelas capitais do Ocidente e, na pele de jornalista, visita a Roménia – sem encontrar Miroslav e Krista, aí desde 1985 – do ditador Ceausescu em fim de ciclo.

Em dificuldades, Hana entrega Magda ao pai João Baptista, que sabe diplomata em Roma (1992). Dera-se, entretanto, a Revolução de Veludo, e Miroslav e Krista regressam a Praga, onde Hana os visita, sabendo, enfim, que o seu verdadeiro pai e mãe vivem em Moscovo. Cumprirá uma vingança, antes de, nas linhas finais, sofrer castigo. Não acompanha o crescimento do filho Boris, que encontra os avós, e se faz atirador de elite ao serviço do novo czar – Putin, seu pai –, cujo historial de vida é parcialmente referido, quando não imaginado.

Após Roma, João Baptista vira conselheiro em Moscovo; afastado deste cargo, regressa como administrador de empresas, fornecendo o palácio presidencial. Tarde percebemos que Lukács István, sósia de Putin, é o seu interlocutor: morto Putin (ver-se-á por quem), não se prossegue a mesma política? A invasão da Ucrânia, com que abre o romance, obriga à fuga e a medidas solidárias que se impõem às democracias. Além de se contar segundo o olhar de outrem, Magda assume os seus passos e cria uma rede de apoio aos refugiados na fronteira húngara.      

Liliputine funde As Viagens de Gulliver e sua ilha de Liliput com Putin(e), nome donde deriva ‘liliputinar’, cujos presente do conjuntivo e imperativo significam: «reduza Putin à sua pequenez ou insignificância». Olha-se ao complexo estalinista de quem, no seu metro e sessenta e oito, se sonha um novo Pedro, o Grande. No seu palácio de medos, do qual fogem os que podem (um milhão, um milhão e meio), anuncia-se o estertor de um genocida, quem dera o regresso de um novo Gorbatchov. É exigência das democracias morais que se queiram independentes em todos os domínios defender os direitos humanos.

Tenho mais de quatro décadas de reflexão sobre o Centro e Leste da Europa, para lá de cinco anos vividos em Budapeste na década de 80, de que trouxe um olhar distanciado (para não dizer irónico) em relação aos materialismos dialéctico e histórico. Há personagens reais ou na realidade inspiradas, mortas algumas (caso do jornalista do Expresso Carlos Santos Pereira), outras no noticiário do dia, caso de Orbán Viktor, despontando em 1989, quando acompanhei visita de Estado de Mário Soares, em cuja segurança estava Lukács Mária. A reportagem de Magda Baptista em 49 capítulos divididos por sete partes assenta em inquéritos pessoais, documentação, visita a alguns lugares e uma sensibilidade própria, que organiza os breves quadros narrativos, os diálogos, e debate ideologias. Magda é um nome comum à língua do pai, da mãe e do local de nascimento: cosmopolita, imparcial, contida, compreensiva (como deve ser uma universitária), circula entre países em momentos capitais da História europeia dos últimos 70 anos, iluminando o presente. Além do prazer em ouvir anedotas políticas e lembrar segmentos do passado, nenhum de nós fica indiferente às páginas fortes deste livro. Fecho como comecei: vivemos tempos negros.  

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