A Terceira Margem
(Lisboa,
Guerra & Paz, 2021)
Pedro
Álvares Cabral (1956) nasceu no Rio de Janeiro, aonde regressa com a mãe
centenária, no significativo 7 de Setembro de 2022, e quando se perfazem 266
anos de uma linhagem luso-brasileira contada em A Terceira Margem.
Ainda
criança, trocou o Rio por Lisboa, levado pelo avô (1870-1966). Neste,
desembocam as memórias da dinastia familiar – àquele transmitidas –, desde um
juiz do crime (Lisboa, 1756-1852), cujo nome só tardiamente se revelará, e
Pedro Álvares (Torre de Dona Chama, 1756-1822), lavrador, que deu à filha Maria
Cabral (1782-1831) o apelido da esposa descendente do descobridor do Brasil.
O
discurso começa em 1876, quando, acompanhado pelo escravo Congo, o avô do
narrador, agora menino de seis anos, leva uma carta do pai, Francisco António
(Rio de Janeiro, 1822-1888), a figura enigmática protestando contra a
escravatura na redacção do Jornal do Commercio, na Rua do Ouvidor. Congo
é comprado no dia seguinte e, durante 90 anos, interroga-se o portador se a
carta não era anúncio de venda de escravo… Veremos como essa criança deu o
salto para a terceira margem, a da dignidade, assente nas epígrafes do padre
António Vieira – «Oh trato desumano, em que a mercancia são homens!» – e da Declaração Universal dos Direitos
Humanos.
A segunda geração assenta no casapiano Pedro
Álvares (Lisboa, 1782-Torre de Dona Chama, 1851), que deserta na Guerra das
Laranjas (1801) e encontra guarida nesta vila, casando com Maria Cabral. Nasce
Pedro Álvares Cabral (Torre de Dona Chama, 1802-Rio de Janeiro, 1876): com dez
anos, o abade da terra, das relações daquele juiz, emprega-o em tipografia de
Lisboa. Abade e juiz têm duas mancebas, mãe e filha, respectivamente: a
vingança daquela será a tragédia desta, em que arrasta esse padre cura, o pai,
um irmão desconhecido e sobrinho, entre outros, disseminando-se em intriga
camiliana…
Espíritos liberais, juiz e jovem tipógrafo
fogem do reino no dia dos mártires da Pátria (18-10-1817). Desembarcam no Rio na
hora da coroação de D. João VI (6-2-1818), para, esquivando os festejos, terem
o primeiro choque: um italiano vendia escravo acorrentado. O juiz não só o negoceia,
como lhe encontra companheira e adquire sobrado para os quatro.
Com a independência, faz-se capitalista: adquire
terras, liberta escravos e relaciona-se com o imperador D. Pedro II. Após
visita a Santos Marrocos, emprega o afilhado na tipografia oficial. O jovem
Pedro Álvares Cabral sofre na composição de anúncios que prolongam o
esclavagismo. Apaixona-se, entretanto, por Iara Maria de Santa Teresa (Rio de Janeiro, 1802-1831),
que lhe dá Maria Álvares Cabral (1822-1888), quando também nasce o amigo Congo,
filho do primeiro casal liberto.
Mal na pele de português que a independência do
país não fez brasileiro, enviuvando cedo, Pedro Álvares Cabral entrega a filha
ao ex-juiz do crime, para acompanhar o ex-imperador D. Pedro I até França, onde
conhece Garrett, Herculano, e integra os 7 500 bravos do Mindelo. Dos Açores ao Porto liberal sucedem-se
aventuras, logo descido a Lisboa, onde contacta outros intelectuais – A. P. Lopes de Mendonça, António Rodrigues Sampaio, etc. –, lutando pela abolição da pena de
morte, na peugada de Herculano contra Castilho. Angustiado por não receber
novas do Brasil, e mais pela notícia do crime que envolveu o pai e quem se
descobriu irmã deste (1851), despede-se de Torre de Dona Chama e de Lisboa.
Na chegada ao Rio, vê mal o casamento da filha,
Maria Álvares Cabral, com o filho daquele italiano, Francesco Schiavo, ou
Francisco António. Este, sempre ausente, representa a fina-flor esclavagista,
revertendo as decisões do ex-juiz abolicionista – em cujo palacete de Botafogo se
fez rei e senhor – e afastando o sogro para o centro do
Rio. Vê abolicionistas nos republicanos e alerta para golpes imaginados nas
viagens europeias de D. Pedro II.
Contra o terror doméstico, Maria Álvares Cabral
chama a si o filho e segura o primeiro casal de escravos, libertos desde 1818,
mas que não vêem o filho Congo e perderam uma neta. Convida-os, mesmo, para uma
récita teatral, onde debatem com um muito presente Machado de Assis, que já vem
das relações tipográficas do pai. O convite para a peça machadiana celebrando
Camões no 10 de Junho de 1880 desvela ao avô do narrador, com dez anos, quem
era aquela personagem no Jornal do Commercio…
O 13 de Maio de 1888 é libertação plena dos
escravos e, também, do jovem agora com 18 anos, que reencontra Congo vingando-se
do antigo patrão, sem oposição do filho; morre, entretanto, a mãe, e, seguindo
os passos imperiais, vem gastar a fortuna na Europa.
Entre um encontro londrino com Jaime Batalha
Reis, a Exposição Universal de Paris (1889), uns olhos que persegue até
Budapeste, virá gerar em suposta filha da imperatriz Sissi outro Pedro Álvares
Cabral (1890-1986), pai do narrador. Mas é o avô cronista que vive os
desacertos políticos de Portugal, enquanto a esposa, afastando-se, denuncia
atrocidades europeias. Segue-a o filho, com aventuras do coração que só
percebemos na última página.
Aos dez anos, por morte do avô (1966), tem o narrador
o essencial da história, que a mãe, Teresa Cristina (1922), enfim encontrada, vai
completar. Regressam ao Rio natal para celebrar os duzentos anos de uma independência
digna – de indivíduos não sujeitos, nem mercancia, e de país livre. É a
terceira margem do Atlântico.
Pedro Álvares Cabral, narrador, fora já
personagem no romance Torre de Dona Chama (1994). Cosmopolita, mas
apreendendo o cheiro do discurso nordestino, avança, recua e conjuga os tempos,
como vai das derivas da memória. Constrói-se uma diacronia na eleição de
momentos fortes desde finais de Setecentos, em que intervêm figuras conhecidas
com textos e falas próprias. O rigor da informação vai a par de sucessos inesperados.
Sentimo-nos em casa, como se as invasões
francesas ou o Ultimatum inglês tivessem sido ontem. O sonho de um autor
é tornar tudo próximo e reconhecível, para que o leitor faça parte da família.
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