O Romance do Gramático (Lisboa, Gradiva,
2011)
Na abertura deste romance, Ernesto Rodrigues recorre a um dos
mais antigos estratagemas ficcionais: a descoberta de um manuscrito perdido que
lança nova luz sobre uma determinada figura histórica. Neste caso, o foco recai
sobre Fernando de Oliveira, autor da primeira Grammatica da Lingoagem
Portuguesa (1536). Em jeito de preâmbulo, assistimos ao encontro entre um
professor de português da Universidade de Budapeste e uma aluna húngara que
prepara dissertação sobre João de Barros. Nas suas investigações, a jovem
recupera um documento, dobrado em 16 partes, escrito por diferentes mãos, tanto
na frente como no verso. Os dois textos, autónomos, causam no professor
«admiração, inveja limpa, euforia», na medida em que revelam uma inesperada
qualidade romanesca, antecipando «algumas propostas da ficção seiscentista e
ulterior».
O primeiro «livro» consiste numa estranha narrativa, passada na
ilha de Bled (actual Eslovénia), em Setembro de 1532, quando os turcos voltam a
ameaçar a Europa. Enviado pelo papa, Fernando de Oliveira chega a um mosteiro
de frades desconfiadíssimos, numa missão pouco clara até para ele próprio.
Apresentando-se como censor de livros, tenciona vigiar aquela comunidade
fechada e hostil, mas é ele que acaba vigiado.
A ilha surge como um espaço opressivo, longe do mundo, onde se infiltra, por entre as neblinas, uma espécie de irrealidade. Oliveira assiste a crimes horrendos, fugas, conspirações, diatribes teológicas e até a um bizarro «concurso europeu Cristo do Ano», com qualquer coisa de reality show. Há ainda uma biblioteca gótica vazia (gémea siamesa de uma igreja) e um labirinto vegetal onde Oliveira intui princípios de uma «gramática da natureza». Sendo um «homem de sentidos», ele tem muitas dúvidas quanto à sua capacidade de resistência ao pecado, acabando por cair em tentação. Ao envolver-se num festim carnal com uma Judite de contornos míticos, o «discurso em romance», barroco e picaresco, torna-se ainda mais difuso e inverosímil — pelo que não espanta o parecer final do frade que proíbe a obra, alegando que ela contém «muita coisa desonesta, e mal soante, alguma escandalosa e contrária à fé e bons costumes».
O segundo «livro», escrito no verso do primeiro, é supostamente obra deste último dominicano censor, inimigo que acompanhou como uma sombra todo o percurso de Fernando, uma vida agora narrada em fragmentos (sete passos e uma «queda»). Mais do que a trajectória de uma «figura indecisa» e fugidia, «mudando conforme o olhar» que sobre ela incide, importa aqui o cenário em que Oliveira se move: esse século «de ouro sombrio», atravessado por «sismos e pestes, pirataria, perdas do rei e da nação, império ao deus-dará», mais o Santo Ofício e seus julgamentos sumários.
A ilha surge como um espaço opressivo, longe do mundo, onde se infiltra, por entre as neblinas, uma espécie de irrealidade. Oliveira assiste a crimes horrendos, fugas, conspirações, diatribes teológicas e até a um bizarro «concurso europeu Cristo do Ano», com qualquer coisa de reality show. Há ainda uma biblioteca gótica vazia (gémea siamesa de uma igreja) e um labirinto vegetal onde Oliveira intui princípios de uma «gramática da natureza». Sendo um «homem de sentidos», ele tem muitas dúvidas quanto à sua capacidade de resistência ao pecado, acabando por cair em tentação. Ao envolver-se num festim carnal com uma Judite de contornos míticos, o «discurso em romance», barroco e picaresco, torna-se ainda mais difuso e inverosímil — pelo que não espanta o parecer final do frade que proíbe a obra, alegando que ela contém «muita coisa desonesta, e mal soante, alguma escandalosa e contrária à fé e bons costumes».
O segundo «livro», escrito no verso do primeiro, é supostamente obra deste último dominicano censor, inimigo que acompanhou como uma sombra todo o percurso de Fernando, uma vida agora narrada em fragmentos (sete passos e uma «queda»). Mais do que a trajectória de uma «figura indecisa» e fugidia, «mudando conforme o olhar» que sobre ela incide, importa aqui o cenário em que Oliveira se move: esse século «de ouro sombrio», atravessado por «sismos e pestes, pirataria, perdas do rei e da nação, império ao deus-dará», mais o Santo Ofício e seus julgamentos sumários.
Ernesto Rodrigues constrói O Romance do Gramático como um
labirinto em que a autoria dos textos é incerta, bem como a verdade do que
neles se conta. Mas o que lhe interessa, para lá das contingências ficcionais,
é o retrato de um país à beira do declínio, triste sina que se prolongou até
hoje. Isso e o elogio do amor (em jogo de espelhos que atravessa os séculos).
Isso e o prazer da escrita, dando corpo ao «luxo de falarmos esta língua».
José Mário Silva, Expresso
‒ Actual, 20 de Agosto de 2011
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