Querida Teresa
Ando há uns dias para lhe enviar uma palavrinha, mas calculo como anda
super-ocupada… Talvez se lembre do dia em que nos vimos por acaso no
supermercado, já lá vão dois meses. Falou-me na altura de um livro do senhor
que a acompanhava (e que eu então não conhecia…). Fui dali para a Bulhosa onde
adquiri A Casa de Bragança e, para
acompanhar, o maravilhoso Do Movimento
Operário e Outras Viagens que devorei nas 24 h que antecederam a chegada da
minha gente de Sydney. Com meninos a encantarem-me e depois com a cirurgia a
preocupar-me um bocadinho, confesso que A
Casa foi ficando à espera. Mas levei-a para o hospital. Sem grande sucesso,
diga-se, pois foi desde logo evidente que o livro me ia exigir uma leitura
muito mais trabalhada do que estava habituada. Devo dizer-lhe que foi um
desafio fascinante pelas vastas e profundas referências históricas que fui
tentando interpretar ou decifrar – e não foi fácil, não, confesso. Mas foi uma
satisfação galopante à medida que avançava nas narrativas, tão magistralmente enredadas;
pasmei perante riqueza lexical e semântica de tal modo opulenta e desafiante;
deliciei-me com o recurso a excertos (penso eu) de Fernão Lopes e de outros que
me recordaram a beleza do Português arcaico; mantive durante muito tempo a
dúvida sobre a real existência de algumas figuras, como a de D. João de
Portugal e Castro. Um aprazível tormento… Em suma, a leitura foi longa e
trabalhosa, sim, mas foi uma labuta deleitosa, um repto constante que me deixou
presa, suspensa e enlevada até ao surpreendente final. Gostei tanto, tanto, que
não tenho palavras para lhe agradecer a sugestão que em boa hora me fez. Não
que Ernesto Rodrigues precise da opinião de tão modesta leitora, mas peço-lhe
que agradeça também ao autor pelo enorme prazer, pelo tempo tão bem passado que
a sua leitura me proporcionou. Bem hajam!
Ana Diogo, Oeiras
Caríssima
Ana Diogo
A sua apreciação (chegada por mão amiga) é de
uma leitora-modelo, que qualquer autor gostaria de ter: intui a dificuldade,
mas, vencendo-se a si mesma, conquista, a pouco e pouco, o Evereste de veredas
e sentidos.
O meu conceito de
literatura assenta num trabalhado filigranado da linguagem, cujo registo se
adequa aos tempos e personagens, e, nos fios do narrador medieval, é tão
irónico e distanciado como, no narrador de hoje, melancólico e desencantado. A
origem de ambos é enigmática.
Comecemos por esta
similitude: em 20 de Fevereiro de 1464, dia de alegria para a nova cidade,
Afonso Rodrigues (1398) ultima o seu manuscrito: já tem um filho, nascido em
Fez, mas ele mesmo não sabe se descende de D. João de Portugal e Castro, se de
D. Afonso, primeiro duque de Bragança. A horas de se encontrar, em 20 de
Fevereiro de 2014, com três mulheres junto à Domus Municipalis, confrontando casa onde aquele narrador reunira
as memórias da família às suas, o narrador actual tenta ler-se nesse manuscrito
levado, em 18 de Junho de 1974 (após amor intenso, de que nascerá filha), de
casa de dona Inês de Castro, que o aguarda, na altivez dos 95 anos.
Nas sombras destas
almas que ainda se não conhecem por inteiro, ronda uma tripla linhagem: da
cidade de Bragança, da família dos Bragançãos (primeiríssima nobreza do reino
nascente, ao lado de D. Afonso Henriques) e do apelido Roiz ou Rodrigues, desde
1014, até ao décimo segundo, nascido em 1344, quando também nasce Inês, avós daquele
narrador.
A data de 1344 remete
para a da Crónica Geral de Espanha,
onde comecei por beber inspiração para alguns títulos, que reforçam o efeito de
real. Servia-me, igualmente, para que, ainda crianças, esses extraordinários
avós tivessem oito anos em 1352, quando nasce, em Bragança, D. João de Portugal
e Castro, segundo filho de Pedro e Inês, em nome de quem seu meio-irmão D.
João, mestre de Avis, se apresentou como «regedor e defensor do reino».
Inês de Castro entra
na história por aquela tripla frente: casa em Bragança ‒ assim começa o
romance; é bisneta de um braganção sepultado no Mosteiro de Castro de Avelãs; e
tem como ama desse segundo filho a mãe da pequena Inês, mãe, por seu lado, de
outra Inês, que morre, aos 21 anos, quando dá à luz o nosso narrador, em 1398.
Quem é o pai: D. João de Portugal e Castro ou o sobrinho D. Afonso, futuro duque
de Bragança?
É essa a demanda do
nosso herói, já por Lisboa e Europa fora (com o infante D. Pedro), já em Fez (com
o infante D. Fernando) e Ceuta (com Afonso V e D. Fernando, segundo duque de
Bragança), sem resposta assertiva dos avós. O seu crescimento acompanha a
construção do castelo de Bragança, em cujo interior a casa de família confronta
a Domus Municipalis: a que casa se
refere o título, se, na equação, ainda considerarmos a casa ducal, donde
nasceria a nossa quarta dinastia? Por seu intermédio, D. Fernando, segundo
duque, pede a D. Afonso V faça da vila de Bragança cidade, o que acontece em
1464.
Quinhentos anos
depois, em 1964, uma criança de oito anos assiste, à entrada do castelo, à
inauguração da estátua desse duque D. Fernando. Menina da mesma idade tem salva
de prata nas mãos, com a tesoura de cortar fitas. Esse menino vive na rua de
judeu e filósofo famoso, Oróbio de Castro (que se disputou com Espinosa), o
qual hesita na religião e no nome próprio. É o drama do narrador moderno, como
se percebe no prólogo e na redacção final deste livro: até aos dez anos, ainda
visita os avós, na velha casa dentro da vila (como se designa o burgo no
interior do castelo), mas ignora quem sejam os pais; chamou-se João e agora
chama-se Afonso; já entrado no 20 de Fevereiro de 2014, quando está a completar
a história ‒ sua e do outro ‒, e se dirige à Domus Municipalis, para se encontrar com três mulheres, pouco sabe
do passado, além de que foi jornalista, deu guarida a uma estagiária dos correios
(que lhe transcreve o manuscrito medieval), teve um cão, envenenado, e recebe alguma
visita de mulher, sem desconfiar quem seja.
Como explicar o súbito
desaparecimento do senhor Engenheiro ‒ um rude salazarista ‒, mulher e filha,
em 1974, quando deparam com esta e um colega na piscina da vivenda? Essa noite
de amor, lembremos, deixou-a grávida: a menina nasce em 1975, e continua sem emprego
estável. Ora, se trocaram o país por Salamanca, onde o Engenheiro logo morre, é
para afastarem a filha de um inesperado visitante: será filho deles, logo,
irmão incestuoso?
Percebemos que Afonso
Rodrigues tira nome do senhor Engenheiro Afonso, também dito Afonso de
Bragança, um ilegítimo da real Casa nascido no ano de D. Manuel II (1889). O
Engenheiro tivera uma filha de certa dama do castelo, mãe morta no parto: essa
filha ficou a cargo de amiga, a qual amiga, Clotilde, teve filho de um sobrinho
do Engenheiro, chamado João de Castro, anti-salazarista. João de Castro se
chamou esse menino, até tirar o bilhete de identidade, onde, por exigência do
Engenheiro, passou a constar Afonso Rodrigues; D. Clotilde cedeu em afastar-se
do filho, entregue a estranhos, e até aceitou não ser tratada pelo verdadeiro
nome ‒ Inês de Castro ‒, mas nunca casou
com o Engenheiro. Donde, após 40 anos de renovadas dúvidas, o narrador encontra
a mãe, reencontrando o amor dos seus 18 anos e a filha.
São mil anos da
família Rodrigues; da história de Bragança, são, primeiro, 450 anos, até 1464, e
os últimos cinquenta, que o autor viveu plenamente. Celebramos, todavia, os 550
anos de cidade, desde o alvará de D. Afonso V, e, nesta circunstância, importa
oferecer-lhe a biografia de um filho que também ela ignorava ‒ D. João de
Portugal e Castro ‒ e reforçar argumentos de que aí casaram D. Pedro e D. Inês,
integrando-a, assim, num roteiro inesiano. Cada personagem é, como o
narrador-autor de si mesmo diz, o tal «castelo de enigmas, […] disposto a ser
conquistado». Donde, é um luxo, ainda que em «aprazível tormento» de generosos
leitores, sofrer tão desejada invasão.
Ernesto Rodrigues
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