domingo, 3 de novembro de 2013

Troca de Leituras

Querida Teresa

Ando há uns dias para lhe enviar uma palavrinha, mas calculo como anda super-ocupada… Talvez se lembre do dia em que nos vimos por acaso no supermercado, já lá vão dois meses. Falou-me na altura de um livro do senhor que a acompanhava (e que eu então não conhecia…). Fui dali para a Bulhosa onde adquiri A Casa de Bragança e, para acompanhar, o maravilhoso Do Movimento Operário e Outras Viagens que devorei nas 24 h que antecederam a chegada da minha gente de Sydney. Com meninos a encantarem-me e depois com a cirurgia a preocupar-me um bocadinho, confesso que A Casa foi ficando à espera. Mas levei-a para o hospital. Sem grande sucesso, diga-se, pois foi desde logo evidente que o livro me ia exigir uma leitura muito mais trabalhada do que estava habituada. Devo dizer-lhe que foi um desafio fascinante pelas vastas e profundas referências históricas que fui tentando interpretar ou decifrar – e não foi fácil, não, confesso. Mas foi uma satisfação galopante à medida que avançava nas narrativas, tão magistralmente enredadas; pasmei perante riqueza lexical e semântica de tal modo opulenta e desafiante; deliciei-me com o recurso a excertos (penso eu) de Fernão Lopes e de outros que me recordaram a beleza do Português arcaico; mantive durante muito tempo a dúvida sobre a real existência de algumas figuras, como a de D. João de Portugal e Castro. Um aprazível tormento… Em suma, a leitura foi longa e trabalhosa, sim, mas foi uma labuta deleitosa, um repto constante que me deixou presa, suspensa e enlevada até ao surpreendente final. Gostei tanto, tanto, que não tenho palavras para lhe agradecer a sugestão que em boa hora me fez. Não que Ernesto Rodrigues precise da opinião de tão modesta leitora, mas peço-lhe que agradeça também ao autor pelo enorme prazer, pelo tempo tão bem passado que a sua leitura me proporcionou. Bem hajam!

Ana Diogo, Oeiras


Caríssima Ana Diogo

A sua apreciação (chegada por mão amiga) é de uma leitora-modelo, que qualquer autor gostaria de ter: intui a dificuldade, mas, vencendo-se a si mesma, conquista, a pouco e pouco, o Evereste de veredas e sentidos. 
O meu conceito de literatura assenta num trabalhado filigranado da linguagem, cujo registo se adequa aos tempos e personagens, e, nos fios do narrador medieval, é tão irónico e distanciado como, no narrador de hoje, melancólico e desencantado. A origem de ambos é enigmática.
Comecemos por esta similitude: em 20 de Fevereiro de 1464, dia de alegria para a nova cidade, Afonso Rodrigues (1398) ultima o seu manuscrito: já tem um filho, nascido em Fez, mas ele mesmo não sabe se descende de D. João de Portugal e Castro, se de D. Afonso, primeiro duque de Bragança. A horas de se encontrar, em 20 de Fevereiro de 2014, com três mulheres junto à Domus Municipalis, confrontando casa onde aquele narrador reunira as memórias da família às suas, o narrador actual tenta ler-se nesse manuscrito levado, em 18 de Junho de 1974 (após amor intenso, de que nascerá filha), de casa de dona Inês de Castro, que o aguarda, na altivez dos 95 anos. 
Nas sombras destas almas que ainda se não conhecem por inteiro, ronda uma tripla linhagem: da cidade de Bragança, da família dos Bragançãos (primeiríssima nobreza do reino nascente, ao lado de D. Afonso Henriques) e do apelido Roiz ou Rodrigues, desde 1014, até ao décimo segundo, nascido em 1344, quando também nasce Inês, avós daquele narrador.
A data de 1344 remete para a da Crónica Geral de Espanha, onde comecei por beber inspiração para alguns títulos, que reforçam o efeito de real. Servia-me, igualmente, para que, ainda crianças, esses extraordinários avós tivessem oito anos em 1352, quando nasce, em Bragança, D. João de Portugal e Castro, segundo filho de Pedro e Inês, em nome de quem seu meio-irmão D. João, mestre de Avis, se apresentou como «regedor e defensor do reino».
Inês de Castro entra na história por aquela tripla frente: casa em Bragança ‒ assim começa o romance; é bisneta de um braganção sepultado no Mosteiro de Castro de Avelãs; e tem como ama desse segundo filho a mãe da pequena Inês, mãe, por seu lado, de outra Inês, que morre, aos 21 anos, quando dá à luz o nosso narrador, em 1398. Quem é o pai: D. João de Portugal e Castro ou o sobrinho D. Afonso, futuro duque de Bragança?
É essa a demanda do nosso herói, já por Lisboa e Europa fora (com o infante D. Pedro), já em Fez (com o infante D. Fernando) e Ceuta (com Afonso V e D. Fernando, segundo duque de Bragança), sem resposta assertiva dos avós. O seu crescimento acompanha a construção do castelo de Bragança, em cujo interior a casa de família confronta a Domus Municipalis: a que casa se refere o título, se, na equação, ainda considerarmos a casa ducal, donde nasceria a nossa quarta dinastia? Por seu intermédio, D. Fernando, segundo duque, pede a D. Afonso V faça da vila de Bragança cidade, o que acontece em 1464.
Quinhentos anos depois, em 1964, uma criança de oito anos assiste, à entrada do castelo, à inauguração da estátua desse duque D. Fernando. Menina da mesma idade tem salva de prata nas mãos, com a tesoura de cortar fitas. Esse menino vive na rua de judeu e filósofo famoso, Oróbio de Castro (que se disputou com Espinosa), o qual hesita na religião e no nome próprio. É o drama do narrador moderno, como se percebe no prólogo e na redacção final deste livro: até aos dez anos, ainda visita os avós, na velha casa dentro da vila (como se designa o burgo no interior do castelo), mas ignora quem sejam os pais; chamou-se João e agora chama-se Afonso; já entrado no 20 de Fevereiro de 2014, quando está a completar a história ‒ sua e do outro ‒, e se dirige à Domus Municipalis, para se encontrar com três mulheres, pouco sabe do passado, além de que foi jornalista, deu guarida a uma estagiária dos correios (que lhe transcreve o manuscrito medieval), teve um cão, envenenado, e recebe alguma visita de mulher, sem desconfiar quem seja.
Como explicar o súbito desaparecimento do senhor Engenheiro ‒ um rude salazarista ‒, mulher e filha, em 1974, quando deparam com esta e um colega na piscina da vivenda? Essa noite de amor, lembremos, deixou-a grávida: a menina nasce em 1975, e continua sem emprego estável. Ora, se trocaram o país por Salamanca, onde o Engenheiro logo morre, é para afastarem a filha de um inesperado visitante: será filho deles, logo, irmão incestuoso?
Percebemos que Afonso Rodrigues tira nome do senhor Engenheiro Afonso, também dito Afonso de Bragança, um ilegítimo da real Casa nascido no ano de D. Manuel II (1889). O Engenheiro tivera uma filha de certa dama do castelo, mãe morta no parto: essa filha ficou a cargo de amiga, a qual amiga, Clotilde, teve filho de um sobrinho do Engenheiro, chamado João de Castro, anti-salazarista. João de Castro se chamou esse menino, até tirar o bilhete de identidade, onde, por exigência do Engenheiro, passou a constar Afonso Rodrigues; D. Clotilde cedeu em afastar-se do filho, entregue a estranhos, e até aceitou não ser tratada pelo verdadeiro nome ‒ Inês de Castro  ‒, mas nunca casou com o Engenheiro. Donde, após 40 anos de renovadas dúvidas, o narrador encontra a mãe, reencontrando o amor dos seus 18 anos e a filha.

São mil anos da família Rodrigues; da história de Bragança, são, primeiro, 450 anos, até 1464, e os últimos cinquenta, que o autor viveu plenamente. Celebramos, todavia, os 550 anos de cidade, desde o alvará de D. Afonso V, e, nesta circunstância, importa oferecer-lhe a biografia de um filho que também ela ignorava ‒ D. João de Portugal e Castro ‒ e reforçar argumentos de que aí casaram D. Pedro e D. Inês, integrando-a, assim, num roteiro inesiano. Cada personagem é, como o narrador-autor de si mesmo diz, o tal «castelo de enigmas, […] disposto a ser conquistado». Donde, é um luxo, ainda que em «aprazível tormento» de generosos leitores, sofrer tão desejada invasão. 

Ernesto Rodrigues

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