domingo, 24 de novembro de 2013

Entrevista a propósito de A Casa de Bragança


[Imaculada de Castro Serpa e Vasconcelos (1978) fez o primeiro ano de Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que logo trocaria pela Sorbonne – Paris IV, onde se licenciou em Musicologia. Minha antiga aluna, tem um quatuor romanesco inédito ‒ Raízes da Alma, formado por Leda, Imaculada, L, Ilegal ‒ que prometi editar em Portugal. Veio de Paris para assistir ao lançamento, no dia 27, às 18,30h, na Livraria Ferin, do meu romance A Casa de Bragança. Lido, encontrámo-nos na Faculdade de Letras de Lisboa. Da longa entrevista (ignoro ainda para que fim) autoriza o que segue.]  

Ernesto Rodrigues (Torre de Dona Chama, 1956) é poeta, ficcionista, crítico, ensaísta e tradutor de húngaro, além de dramaturgo ainda inédito. Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, de cujo Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias é vice-director, presidiu à primeira direcção da Academia de Letras de Trás-os-Montes (2010-2013).
Principais obras: Várias Bulhas e Algumas Vítimas, novela, 1980; A Flor e a Morte, contos e novelas, 1983; Sobre o Danúbio, poesia, 1985; A Serpente de Bronze, romance, 1989; Torre de Dona Chama, romance, 1994; Histórias para Acordar, contos para a infância, 1996; Sobre o Danúbio / A Duna Partján, poesia e ficção, 1996; Pátria Breve, miscelânea, 2001; Antologia da Poesia Húngara, 2002; O Romance do Gramático, romance, 2011; Do Movimento Operário e Outras Viagens, poesia, 2013.  
Na crítica e ensaio, seleccionamos: Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal, 1998; Cultura Literária Oitocentista, 1999; Verso e Prosa de Novecentos, 2000; Visão dos Tempos. Os Óculos na Cultura Portuguesa, 2000; Crónica Jornalística. Século XIX, 2004; «O Século» de Lopes de Mendonça. O Primeiro Jornal Socialista, 2008; A Corte Luso-Brasileira no Jornalismo Português (1807-1821), 2008; Centenário da Morte de Trindade Coelho. […], 2008; 5 de Outubro ­– Uma Reconstituição, 2010.
Responsável pelos 3 volumes de Actualização (Literatura Portuguesa e Estilística Literária) do Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho (2002-2003), editou, entre outros, Tomé Pinheiro da Veiga, Padre António Vieira, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Ramalho Ortigão, Alves Correia, Augusto Moreno, José Marmelo e Silva, Raul Rêgo, António José Saraiva.

No seu quarto romance, Ernesto Rodrigues regressa à História e à geografia de origem. É uma boa parceria?
Sim. No meu caso, porém, não se trata de um regresso: A Serpente de Bronze e O Romance do Gramático ‒ históricos, cosmopolitas e letrados ‒ não assentavam no locus originário; Torre de Dona Chama apoiava-se neste, mas sem História em maiúsculas; A Casa de Bragança é, pois, essa fusão, com ramificações europeias e marroquinas.

Há outras semelhanças entre estes quatro títulos?
Não só entre estes, mas também em relação a alguns contos e novelas de A Flor e a Morte. Antes de mais, a variedade e adequação dos registos discursivos. A literatura é mundividência expressivamente formulada, não forçosamente comunicada, se quem nos recebe estiver desfasado.

Como não, face a tanta Idade Média?
E porquê? Entende-se melhor, hoje, o discurso repetitivo da política e dos media? Na ordem vocabular e sintáctica, há, de facto, medievismo, que envolve uma época, dos conceitos à gastronomia ou ao traje. Essa recomposição do tempo discursivo inspira cada um dos narradores e, daí, colar-se-lhes o ar gramatical e o tesouro lexical do seu século. Já é diferente se jogo com a acronia, como n’A Serpente de Bronze, onde centúrias distantes podem ser dadas na mesma frase, em vocábulos contíguos, mostrando, assim, sobreposição de olhares, ou o salto fácil e à-vontade de assuntos recorrentes nas nossas vidas.

Mas o lugar também decide.
Sobretudo, em região não padronizada, de hábitos, cultura e linguagem particulares, o que, mais do que neste romance, é visível em Torre de Dona Chama.

…Que transporta em si uma ambiência medieval…
Completamente. Apesar de argumento rodado no século XX.

…Enquanto A Casa de Bragança, maioritariamente trecentista e quatrocentista, é sentido como contemporâneo.
Exacto. Naquele romance, entreluz a teoria bakhtiana da festa popular, no modelo de Rabelais; agora, o manuscrito quatrocentista é um pretexto e espelho de consciência nossa vizinha, tantas são as referências imediatas.

Os argumentos retomam-se. Há sempre uma busca, questões de família em jogo…
Busca, sim, seja de uma razão, seja de uma família. Neste ponto, romances inéditos mostram claramente como filhos (filhas, sobretudo) demandam um pai. N’O Romance do Gramático, todavia, é um intelectual em busca do filho. N’A Casa de Bragança, dada a montagem especular, os dois narradores ignoram, até ao fim, um, quem é o pai (e mãe não conhece, morta no parto; conhecerá o pai?), outro, quem são os pais (e pai não conhece, há muito falecido).

Também a estratégia do manuscrito não é nova. Qual a pertinência?
O Romance do Gramático é, integralmente, manuscrito, cujas vicissitudes alicerçam o inédito Pro Patria. No presente romance, joga-se com parte manuscrita, parte impressa em Chaves, dado nascer, na segunda metade do século XV, a incunabilística ‒ saudando, a propósito, uma das raras tipografias nacionais em terra onde fora sepultado o primeiro duque de Bragança. Quando se desce a época longínqua, o recurso a copista facilita o colorido da prosa ‒ como se a responsabilidade do texto não fosse toda nossa… ‒ e reforça a veracidade do contado. Muitos leitores acreditam na verdade do mesmo, inclusive, na sua existência física, ou em partes. Quem me diz se o poema do capítulo 6 é ou não dos séculos XIII-XIV?

Entretanto, personagens históricas convivem com fictícias
Aquelas vêem-se acrescentadas de vida romanesca, deslizando, assim, para a ficcionalidade.

E notam-se diferenças quanto à empatia autoral.
Empatia do narrador, sendo certo que atenuo, por exemplo, a má imagem do primeiro duque, não a de Nuno Martins de Chacim, bisavô de Inês de Castro. Naquele caso, é difícil ao narrador culpá-lo, pois D. Afonso pode ser seu pai; no mínimo, deu-lhe o nome, e resguardou-o.

D. João de Portugal e Castro é o seu herói.
Também meu, sim, e do narrador, porquanto filho de Bragança, que só agora lhe é apresentado. Vemos, primeiro, uma relação de amizade profunda entre Lourenço, Inês (avós do narrador) e o infante que lhes caiu nos braços e brincadeiras, pela última vez à mesa em 1397, aos 45 anos, a caminho de Espanha e do túmulo salmantino. No seu corpo e alma, desavindos, debate-se o país em vésperas de Aljubarrota, que acabou com as suas pretensões ao trono. Retiro-lhe o estigma de assassino da talvez mulher, Maria Teles, culpando o homem dos óculos ‒ outra história de amizade, prosseguida na relação entre o filho deste e narrador.

Entre filhos?
(Silêncio.)
Importam as razões de Estado, que tudo abalroam: D. João de Castro, de extracção mais nobre e bem mais popular que o meio-irmão mestre de Avis, deveria ter sido rei; o infante D. Fernando não deveria ter morrido no cativeiro de Fez, refém de uma promessa de irmãos não cumprida: a devolução de Ceuta. Denuncio outras intolerâncias: cristãos contra o Mouro, e vice-versa.

Os tempos de agora acrescentam-nas.
Intolerâncias e preocupações, que também enumero. Entre as maiores mazelas, está o desemprego.

E, já que estamos numa Faculdade, o ensino superior não se porta bem.
Refiro isso. Um instante. Deixe-me citar o segundo narrador, ex-jornalista, também convidado ao desemprego: «Sabia de licenciaturas, sim, tiradas ao domingo, outras, de aviário, outras, ditas mais sérias, que davam milhares de emprego no desemprego, e de um instituto público que alimentava o desinfeliz por três anos, tempo que ia emagrecendo, ou leis sucessivas bloqueavam… Por fim, as indemnizações por despedimento ficaram ao preço da chuva.» E, à frente, para se ver o nosso fado: «Grande percentagem de vivos coleccionava estágios, reciclava-se (como se faz ao papel, ao lixo), andava de herodes para pilatos atrás da côdea, bocejava em reportagens dolorosas. Eu não precisara de nenhum curso, mas não é que isso fosse melhor. A má distribuição dos canudos (em parte, a mania destes) desequilibrava a cabeça da nação, que pensava cada vez menos por si. Importava ter; quanto a saber, saber para quê? Universidades privadas – sejamos concretos, e crus – trocavam títulos por uma alegada experiência profissional, que mais razoavelmente deveriam conceder a trolhas, serralheiros, electricistas; ofereciam licenciaturas em vinte dias; ordenavam doutores em menos de vinte e quatro horas, o que nem Deus se permitia. Disto se aproveitavam secretários de Estado, futuros ministros, deputados moralmente coxos, assessores de conveniência e sapatos italianos.»  

É a vida…
…Precária.


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