domingo, 4 de janeiro de 2015

Do Movimento Operário e Outras Viagens, de Ernesto Rodrigues


Este livro de poesia é composto por quarenta poemas, elaborados como resposta aos estímulos das deambulações do poeta, como se infere da leitura do título “Outras Viagens”. Os topónimos poetizados por Ernesto Rodrigues são as cidades míticas que enformaram a sua cultura, nessa busca interminável do ser por ele próprio e, através dele, pelo outro, lato sensu, pelo homem em busca da sua felicidade, que o poeta só consegue descortinar pelo amor à língua, cultura e civilização.
A obra abre com a composição poética que dá título ao livro “Do movimento operário”, onde, para além de se fazer uma sentida homenagem ao honesto trabalho com o qual o Homem ganhará o pão, metaforizada no pai do poeta, se compara o ofício da forja, isto é, do ferreiro ao ofício cantante, ou seja, à ars poetica. Assim, para o eu lírico, o processo alquímico é análogo, pois, tal como o ferreiro domina e molda o ferro em brasa para dar forma aos mais belos e proveitosos utensílios, o poeta funde, molda e dá forma às palavras para escrever o verso mais perfeito que consiga auxiliar o leitor na sua autognose permanente.
O segundo poema é um soneto, embora a arquitetura estrófica não seja a canónica, uma vez que é composto por um dístico e três quadras, dedicado à mãe do poeta, onde se patenteia o carinho e a ininterrupta preocupação maternal. Parece-me que o dístico resultaria melhor no final, visto tratar-se da súmula do poema, funcionando, assim, como chave de ouro[1].
Os poemas deste livro podem agrupar-se, segundo creio, em dois grupos: o primeiro marcado pelo tom mais intimista, ou seja, mais lírico, presente nos sete sonetos e nas composições mais curtas, onde se ouve a voz dolorida do poeta murmurando com saudade as doces alegrias pretéritas; o segundo, e mais amplo, compreende o grande número de poemas narrativos, que, na minha ótica, se organizam em torno de duas realidades, significativas a todos os níveis para o poeta, a saber: Europa, e Portugal/Nação/Pátria.
No primeiro grupo, encontramos textos sobre topónimos da Hungria e de outras cidades e países da Europa, que enformaram culturalmente o poeta. Nestes poemas de grande fôlego o tom épico alterna com o lírico, facilitando a comunicação com o leitor.
O seguinte reúne poemas sobre o país, assunto de questionação constante pelo poeta, onde o tom épico secundariza, de vez, a voz lírica, nos quais o eu poemático assume, sem ambages, a atitude prometeica da poesia. Esta atitude leva-o a declarar abertamente o seu intento, que passa por provocar a reflexão no leitor e levá-lo à ação, para que, em conjunto, se possa construir um mundo melhor. Nem outra função pode ser cometida à poesia, a não ser inventar novas realidades a partir do real concreto.  
Permitam-me destacar o poema épico «Outra Pátria», em jeito de súmula do que afirmei. Esta composição apresenta a estrutura interna da epopeia, pois encontra-se dividido em quatro partes: proposição, invocação, dedicatória e narrações. Aqui, creio que o modelo é Camões, uma vez que as epopeias clássicas não apresentam, na sua estrutura interna, a dedicatória. Poema singular e fulcral na arquitetura do livro, onde imitador e imitado se confundem num derradeiro esforço de refundação da pátria, que, por incrível que pareça, continua numa austera, apagada e vil tristeza. Não falo nas aproximações estilísticas, realço, tão-só, os motivos e propósitos enunciados no incipit do poema: “A luz, a cor, o dom de minha terra / canto, no tempo mau em que navego.” [p. 50, sublinhado meu]. Resulta, também, feliz a decomposição dos versos da “proposição” em elementos, realçando, desta forma, o ritmo e a compreensão da leitura. A primeira estrofe da composição 4 da narração corrobora a ideia de privação e do abatimento que persiste em acompanhar o país, no presente, como se percebe pela interrogação com que termina a estrofe: “Que bravia sombra vem, / ronronante, levando-me por sobre / sonhos gastos de pátria tão pobre?” [p. 61]       
É, ainda, pertinente salientar que este carme é antecedido pelos poemas «Língua», em que lemos: “Eu comovo-me, povo, com teu fado, / a coragem de ser além de nós, / tão pequeno, já solo embarcado, / para longes contactos, uns após // outros – em sintonia cor e língua.” [p. 44]; «História de Portugal», no qual se revisitam os acontecimentos fundadores da nossa identidade como Nação; «Pátria», onde “Chão, Deus, água, valor, língua, / são quinas de Portugal” [p. 46]; «Rimas Pobres», em dois andamentos: no primeiro, o poeta apresenta um retrato mórbido do país, como se pode constatar pela primeira quadra: “A maldade tomou conta de nós. / Prometia baixar impostos; dar / emprego a milhares; ser correcto; / ajudar quem precisa, e avós.” [p. 47] A segunda parte encerra com um aviso e a convocação à não resignação dos leitores/eleitores, para que não embalem no falar melífluo dos governantes. “Mas, se fores // na conversa, em ti chorarás quanto / buscou evitar-te este meu canto.” [p. 47, sublinhado meu] O vate acredita na possibilidade de a poesia, “este meu canto”, ajudar a transformar o mundo e a tornar o ser humano mais cônscio; “Governo”, onde se faz uma crítica desvelada à emigração e se apela à pátria, adjetivada de amada, para que, tal como uma mãe, continue a sustentar os seus filhos: “O exílio // não é vocação ‒ pesa ‒, ó amada pátria: sê grande, mas em ti; cria bens;” [p. 48]. A composição «Outra Pátria» precede o poema «Democracia», um longo poema narrativo organizado em seis partes, no qual o poeta, recorrendo a adágios populares e a frases feitas, continua a pintar um quadro do país com cores esmaecidas, onde, apenas, é nítida a falta dessa mesma liberdade que dá título ao carme. O sujeito lírico chega ao ponto de a apostrofar: “Sê, democracia, igual aos que te desejam recta, cultivada.” [p. 64] Ato contínuo, o poeta continua a enumerar as desventuras da democracia, recorrendo, despojado das demais armas, à poesia como a derradeira salvação: “A ti cabe, amigo verso, tal / dedicatória (…) Por ti começa, verso, sermos outros.” [p. 65] Mas, e apesar destes desejos e incentivos para que a democracia seja o sol do país, a composição culmina de forma disfórica, como se pode constatar pela leitura destes versos: “Tens, ó democracia, sangue vil em ti. / Não digas, pois, que és democracia. Oh, / mas que de ilusões o homem se sacia…” [p. 68] 
Parece-me que este conjunto de poemas sob o signo da portugalidade apresenta três momentos. O primário, formado pelo conjunto de carmes que precedem «Outra Pátria», nos quais o poeta reflete sobre o país no passado, no presente e “sem futuro”. Por essa razão, ele propõe uma alternativa, seguindo no encalço de Camões, que passa por reedificar uma «Outra Pátria», acreditando que o canto/a poesia, como aconteceu com o épico, pode cumprir esse desígnio. Penso ser essa a inferência que se pode retirar da leitura da estrofe que encerra o referido poema: “Honrar quem nos comove: língua, chão, / dignidade; ser grande na incerta / lida de viver. Um poema não / faz muito ‒ mas é cais, casa, desperta / asas do sim, que dão cor ao lugar. / Um poema faz-se para criar.” [p. 61, sublinhado meu]
Os antepenúltimos poemas do livro, «Civilização» e «Cultura», reacendem a proposta de Pessoa na Mensagem. No entanto, o que em Pessoa era sonho, crença e esperança nesse quinto império capaz de redimir o país, é, no presente, para Ernesto Rodrigues, desalento, pois “A civilização é um mal sem cura; / sobrevivemos?” É, ainda, miséria e sujeição “dependência, necessidades falsas – sonho de verbo-acto, adjetivo, / quando a vida é nome pobre.” [p. 71] É, por fim, hipocrisia: “Cresce sociedade / no equilíbrio certo / entre o ser e o ter. (…) Morrem / povos famintos. Voam / palavras, que encobrem / os ares; e não vende / arte fora de moda”. [p. 74] A deceção é total, como se depreende da interrogação “Que mundo nos calhou, / tão desequilibrado?”
O livro de poesia Do Movimento Operário e Outras Viagens abre com um tom épico cantando as capacidades do homem que, transformando o mundo, pelo trabalho, se transforma. E finda com o registo lírico em tom autobiográfico no poema «Dono de mim, não perco nada. Séneca», e com a crença nas potencialidades da vida humana em «A vida não é uma linha; tem», onde as últimas palavras constituem um repto à não resignação do ser humano e à crença nas suas capacidades para transformar o mundo: “Faz / da dor teus pés de lã, rasgando lagos; / do riso, praia nua, que afago.”
Epilogando, este livro pode ler-se como uma sonata em três movimentos e em forma circular: o primeiro, onde se faz a apologia épica do trabalho; o segundo, onde ecoam algumas vozes resultantes da fadiga e do ceticismo emanados da espuma dos dias, para, no último andamento, reforçar, de novo, as capacidades individuais do ser humano.
[Segue Acordo Ortográfico]

 Norberto Francisco Machado da Veiga








[1] O poeta discorda. A ‘chave de ouro’ está no princípio, nas origens, abre para a existência; os demais versos, ou passos de vida, justificam essa relação luminosa.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Literatura, sociedade e ironia em Passos Perdidos de Ernesto Rodrigues


Este confirmado romancista teve a coragem e a sageza de satirizar com grande mestria, acutilância e sentido de opalinidade histórica os tempos hodiernos, no geral, e os conluios que sempre se estabeleceram entre política e economia, em particular. Enresto Rodrigues revela ousadia ao abordar este tema premente na nossa sociedade e ao pôr a descoberto as teias que são urdidas no santuário da democracia e que têm enredado o país, desde as sementes de Abril até ao presente.
O título Passos Perdidos só é identificável pela fotografia do espaço homónimo do edifício da Assembleia da República que serve de capa ao romance. No entanto, este título é polissémico, uma vez que perdidos, ou melhor, gorados foram, também, os intentos dos corruptores.   
A obra abre com uma epígrafe retirada da Arte de Furtar, capítulo LX, “Dos que furtam com unhas políticas”, que dá, ab initio, o mote para a trama do romance e permite, segundo cremos, ao leitor inferir o tema a escalpelizar na obra.
Passos Perdidos erguer-se como uma obra fortemente estruturada, visto que é composto por dezasseis capítulos, agrupados em duas partes (cada uma com oito capítulos) ‒ note-se a simetria ‒, seguidos de um sucinto, mas elucidativo epílogo. Quanto à estrutura, o romance apresenta duas partes: a primeira subordinada ao título “A queda de um Anjo”, que, sem dúvida, faz ressoar na memória literária do leitor a obra homónima de Camilo. Outra ilação que o leitor facilmente estabelecerá prende-se com a associação de ambos os protagonistas. João Félix Filostrato é, de imediato, associado à imagem de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda. Contudo, esta associação perde nitidez com o título da segunda parte do romance, “Redenção”, indicando, desde logo, uma inflexão de conduta em relação ao modelo literário adotado por Ernesto Rodrigues. Temos, então, uma queda mais metafórica do que real, uma vez que a mesma não passa de um subterfúgio para desvendar o ardil, por um lado, e assumir as responsabilidades pretéritas, por outro.
Que Camilo e Eça, nomeado na obra pelo título do romance O Primo Basílio (p. 101), são vultos a quem Ernesto Rodrigues presta contínua e apurada homenagem corrobora-o, para além do que já foi dito, o facto de a intriga do romance ser narrada, nos onze primeiros capítulos, em analepse pela personagem João Felix Exposto. Este narrador/personagem é fruto de uma relação da juventude do deputado João Félix Filostrato, que, também, ignorava este facto. O ritmo cadenciado e preciso da narrativa, mais uma vez a fazer lembrar os dois romancistas do século dezanove, e o desenrolar programado da história prendem o leitor ao texto.
O tempo da ação, à semelhança do que acontece na tragédia, é bastante concentrado em, apenas, nove dias. O narrador desfila diante dos nossos olhos, como se de uma representação teatral se tratasse, os acontecimentos que, efetivamente, vão sendo apreendidos pelo leitor.
Porquê literatura? Porque o romance está pejado de referências literárias tanto explícitas como implícitas. Permito-me, apenas, recordar, não querendo ser exaustivo: Camões, Bocage e Garrett. Termino com a alusão à “Lacailândia”, isto é, Portugal, onde ressoam ecos da obra A Montanha da Água Lilás de Pepetela. 
Todo o romance é um retrato irónico da sociedade atual, lembrando a arma mais eficaz de Eça. É patente a intenção do autor em desvelar a realidade portuguesa atual, recorrendo a truísmos e a provérbios, por vezes alterados, na senda de Saramago, para provocar no leitor a reflexão, durante o ato de ler, e levá-lo, como é apanágio do teatro épico, à ação, no final da leitura.
Concluímos, asseverando que Ernesto Rodrigues não ficou aquém dos dois modelos literários, que se propôs preitear neste seu livro, uma vez que as personagens de Passos Perdidos não destoam das que Camilo perpetuou, nos seus romances. Por outro lado, qualquer leitor mais atento desta obra não hesitará em apelidá-la de queirosiana, devido à forma como a realidade portuguesa atual, filtrada pela ironia, se encontra plasmada nele.

Norberto Francisco Machado da Veiga
Doutor em Literatura Portuguesa,
Universidade de Salamanca

domingo, 14 de dezembro de 2014

40 Anos de Vida Literária

Os 40 anos da minha actividade literária fecharam com jornada na Biblioteca Municipal, promovida pela Câmara e Academia de Letras de Trás-os-Montes. Guardo em mim a presença de muitos desde logo, de amigos muito chegados há 47, 38 anos, e menos: José Mário Leite, Alcides Rodrigues, João Manuel Neto Jacob, Marcolino Cepeda, Hirondino Fernandes, Teófilo Valdemar, Mara Cepeda. Alberto Fernandes não quis falar e só ele poderia falar do editor que também fui. O Pai aguentou todo o dia, e foi aplaudido num momento de intervenção da Teresa. Presidente do município e quatro vereadores abrilhantarm o acto. Discretas, directoras do Teatro e do Museu do Abade de Baçal: Helena Genésio, Ana Maria Afonso. Vários escritores.
Após discursos de Hernâni Dias, Amadeu Ferreira, José Manuel Mndes e José Eduardo Franco este, à volta de Fernão de Oliveira e O Romance do Gramático , veio discurso meu. Segue:

Inaugurei a celebração de 40 anos de vida literária, hoje culminando em jornada para mim comovente, com o lançamento de colectânea de poemas ‒ Do Movimento Operário e Outras Viagens ‒ e do romance A Casa de Bragança. Ora, em final de capítulo deste, a propósito da justeza e bondade do rei D. Pedro para com a cidade, escrevi o seguinte: «Pão e vinho eram, nestas terras, meia mantença; a gratidão, vida inteira de transmontano, que no príncipe se revia.»
É de alma cheia, e reconhecido a esta terra, que me cumpre agradecer ao executivo municipal, relevando a interlocução da vereadora da Cultura e de Fátima Martins. Com esta trabalhara já no executivo do Eng. António Jorge Nunes, que também saúdo (grato pelo seu depoimento fílmico), sob cujo impulso nasceu a Academia, agora dirigida pelo querido Amadeu Ferreira, ausente por razões de saúde, mas bem coadjuvado pelo vice-presidente, que não se furtou a esforços para esta realização.
A ideia, contudo, desta selecta reunião partiu do realizador Leonel Brito, caucionada por Teresa Martins Marques. Esta sabe bem que sou avesso a tais comemorações. Nessa cumplicidade, moveu aquele montanhas, e gizou um programa de que só parcelarmente fui tomando conhecimento. Propus uma manhã, em que falassem duas autoridades: José Manuel Mendes, com quem estive na sua primeira direcção da Associação Portuguesa de Escritores, que ainda capitaneia, e, por razão de agenda, se fez substituir com um notável texto de síntese, e José Eduardo Franco, director de um centro de investigação (de que sou director-adjunto), cujo feito mais recente é a conclusão de um António Vieira em 30 volumes, em que aparece a nossa Academia de Letras como patrocinadora. Tendo ele escrito sobre o nosso primeiro gramático, editado a Gramática da Linguagem Portuguesa (1536) e recenseado O Romance do Gramático, que editei em 2011, estava calhado para um convite. Mas, entretanto, estava almoço combinado, no Solar Bragançano aonde, no fecho de A Casa de Bragança, também se dirigem as personagens ‒ que, às vezes, é bom imitar; e, para justificar esse pão e vinho, alargou-se a festa, na esperança de que a hora pós-prandial não faça adormecer a mesa-redonda.
Nesta, estão amigos chegados ‒ Pinelo Tiza, Alberto Fernandes, Teófilo Valdemar, Mara Cepeda, Marcolino Cepeda ‒, enquanto outros se viram incapacitados de acorrer, dada a brevidade na preparação do evento. Poderiam estar no documentário ‒ e nomes há que se repetem: Teresa Martins Marques, José Mário Leite, Neto Jacob, Hirondino Fernandes ‒, mas, no entretempo, o guião remeteu para o momento genesíaco de 1973 ‒ melhor, entre 1971 e 1974 ‒, sem prejuízo de um balanço factual e estético por Amadeu Ferreira e José Manuel Mendes. Como A Casa de Bragança fechava a cúpula de quatro decénios, versaram-na José Mário Leite ‒ amigo há 47 anos ‒, o editor António Baptista Lopes e quem, intelectual maior agora com 92 anos, me dá a honra de fartas conversas no Jardim da Estrela: José-Augusto França. Carlos Pires publicou os meus primeiros versos, aos 14 anos, no Mensageiro de Bragança; nesse 1971, troquei o Seminário de S. José pelo Colégio de S. João de Brito, conhecendo, entre leituras heteróclitas, Desidério Martins e a malta d’O Grupo, título de jornal, de que, hoje, só encontro António Ramos Preto e Alcides Rodrigues.
Estes, por quem me chegaram os dilectos Alberto Fernandes, Victor Rodrigues, António Augusto Coelho Alves, José Nobre, apanhei-os no então 7.º ano do Liceu Nacional, quando aqui ingressei, no 6.º ano, colega de José Mário Leite (abandonara o seminário) e Neto Jacob, que evoca a nossa equipa de andebol. Eu estava mais para xadrez, livros e jornais, nesse 1972 publicando, já, versos no Diário Popular, tal como Desidério Martins, com que nos vimos antologiados por Maria Alberta Meneres em O Poeta Faz-se aos Dez Anos (Assírio & Alvim, 1973). Neste ano, já dirigindo a página literária do Mensageiro de Bragança, estreei-me em livro, culpado do incómodo que vos dou.
Inconvencional teve apoios fundamentais: Domingos Neto, autor da capa, e Alcides Rodrigues, a quem ofereci texto-base, que (surpresa!), me devolveu há semanas. Meu Pai foi decisivo: 500 exemplares custavam sete mil escudos; pedi-lhe cinco contos, pois, entretanto, recuperei dois mil escudos, nas vendas, e assim paguei a quarto mosqueteiro, Frei Henrique Perdigão, chefe das máquinas nos franciscanos de Montariol, Braga.
Em noite diluviana do mês de Maria, acolheu ele o noviço das letras, banqueteou-me em mesa austera, levou aos granéis de Inconvencional e ofereceu generosa cela. Revimo-nos 33 anos depois. Eu estava na Feira do Livro e contava a Vergílio Alberto Vieira essa primeira ida a Braga, quando a Teresa impôs subida. Boleados, dirigi-me à portaria: «Frei Perdigão ainda é vivo?» Eis uma frase camiliana. Camiliano é o início de A Casa de Bragança: «Eu tinha oito anos e nada sabia de mim.» Vejam o início de Mistérios de Lisboa: «Era eu um rapaz de catorze anos, e não sabia quem era.» Do frade eu guardava memória de ser de muitos dias. E o recepcionista, espantado: «Sim. Está além a conversar com umas pessoas.» A sala era obscura; eu estava em vésperas de um descolamento de retina. Vislumbrei um ainda poderoso frade, aos 69 anos, que, encerrada a gráfica, explorava o húmus do convento em ervas e medicinas do corpo. «Frei Perdigão?» «Sim. Quem me procura?» «Sou Ernesto Rodrigues.» «Não é de Bragança, pois não?» Ele não aceitava que aquele cinquentão substituísse retrato antigo, ousado como o menino do poema oitavo d’O Guardador de Rebanhos. «Sim, sou.» «Não me diga!» E desatou no elogio da obra e criança que, fora de horas, batera à porta do silêncio… Vivi cinco anos dentro das paredes de dois seminários, mas tive naquele frade o único abraço caloroso de um ministro do Céu. Não é pouco, se isso deram uns versos mal-educados, com palavras feias manchando os caracteres da tipografia divina.
Não se imagina, com efeito, o impacto desse livro na placidez de cidade perfilada atrás das autoridades civis, militares e religiosas, cuja moral defendiam legionários e informadores da Pide. Abria com “Poemas em café democrata”, referência ao Chave d’Ouro e às potencialidades, também estéticas, da democracia. Pasmo, aqui e ali, da virulência de juventude, cínica e politizada nos termos, mas, sobretudo, no desconcerto entre título e texto (v. g., “Poema a olhar uma cabra”). Como podia suportar um regime atrás das fragas – «e afinal a política está de cama», resumi – esses “Poemas em café democrata”, tanta desobediência e subversão? Passeavam-se Mário de Sá-Carneiro, Pascoaes e Régio, sugestões de José Gomes Ferreira, Eugénio de Andrade... Notava-se a queda para ‘histórias’, para uma narratividade que me persegue; tinha imagens fortes: a «espera destilada / e cinzenta da concepção», ou, encostados à Sé, vendo «Velha virgulada [que] passa na estrada». Os colegas abriam na p. 41, onde se fechava aventura de uma infeliz, socialmente explorada, a quem a hipocrisia chamava «puta reles». Era um crime de lesa-poesia, como descrever as dores de parto de um animal, abrindo naturalmente por «Tudo lhe doía», e, quando primeiramente saído no Mensageiro de Bragança, ser o padre Manuel Sampaio chamado à pedra pelo senhor bispo Manuel de Jesus Pereira… Eis um retrato, pálido embora, do quadro mental bragançano, nos idos de 70, e como a arte mexe com a opinião, altera comportamentos, derrui e reconstrói formas de expressão ‒ a começar numa capa insólita, que até se atrevia a dar lugar a um preto…
Sou um homem que acredita ‒ ou não estaríamos aqui; em segundo lugar, e fecho de discurso, faz-me bem provar gratidão ‒ à autarquia, à Academia, a Leonel Brito, ao editor do também último romance, Passos Perdidos, e da minha Biobibliografia em volume, bem como ao pessoal da Biblioteca, expondo livros que nela ficarão ‒, provar gratidão, dizia, pois, conclui personagem de romance inédito, «A ingratidão cria musgo no coração dos homens». É limpo e inteiro que agradeço tantas atenções.


Almoço no Solar Bragançano deixou-nos com água na boca: se não deixássemos a festa a meio, não havia mesa-redonda, moderada por António Tiza. O filme de uma hora ficará como documento mais importante sobre publicações desde 1969, como prova Biobibliografia ofertada aos presentes. Da Bibliografia expus parte, em cinco vitrinas. Sobre as primícias discorreramm Alcides Rodrigues, Carlos Pires, José Mário Leite, Frei Henrique Perdigão, Desidério Martins, Neto Jacob, Teresa Martins Marques, e, já em visões de conjunto da obra, José Manuel Mendes, Hirondino Fernandes e Amadeu Ferreira, enquanto José-Augusto França curou de A Casa de Bragança, o editor António Baptista Lopes descreveu relação antiga, desde Torre de Dona Chama (1994), e António Jorge Nunes falou da relação entre o autarca-presidente e o primeiro presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes. Auto-apresentação de Passos Perdidos encerrou tarde e jornada muito concorrida pela Imprensa.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Ernesto Rodrigues: 40 anos de vida literária

Culminam em 13 de Dezembro, no Centro Cultural Adriano Moreira, em Bragança, os 40 anos de vida literária de Ernesto Rodrigues (1956), cujo primeiro evento foi o lançamento simultâneo de A Casa de Bragança, romance, e Do Movimento Operário e Outras Viagens, poesia (2013).
Iniciativa do município de Bragança e da Academia de Letras de Trás-os-Montes, intervirão os respectivos presidentes, Hernâni Dias e Amadeu Ferreira, bem como José Manuel Mendes, presidente da Associação Portuguesa de Escritores, e José Eduardo Franco, director do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa, versando obra já vasta.
Mesa-redonda ‒ participada por Teresa Martins Marques, José Mário Leite, Neto Jacob, Hirondino Fernandes, António Pinelo Tiza, Alberto Fernandes, Teófilo Valdemar, Mara Cepeda, Marcolino Cepeda ‒ precede o lançamento do seu quinto romance, Passos Perdidos (Âncora Editora), sobre o discurso e jogos parlamentares.
Segue-se apresentação de documentário do realizador Leonel Brito, com depoimentos de Alcides Rodrigues, Amadeu Ferreira, António Jorge Nunes, Carlos Pires, Desidério Martins, Frei Henrique Perdigão, Hirondino Fernandes, José-Augusto França, José Manuel Mendes, José Mário Leite, Neto Jacob, Teresa Martins Marques, sobre o poeta estreado em 1973, ficcionista, cronista, crítico, ensaísta, editor literário, tradutor e docente na Faculdade de Letras de Lisboa, cuja bibliografia ficará exposta na Biblioteca Municipal, a par de fotografias confrontando a cidade dos anos 60-70 e 2014.

Passos Perdidos: sinopse

Um banco de investimento quer vender projecto de lei a deputado democrata-cristão há 40 anos sem intervenção no plenário da Assembleia da República. Quem é João Félix Filostrato? a que se deve esse silêncio?
No quadro de iniciativa mediada pela assessora do grupo parlamentar, Salomé, que promove encontro com o economista-chefe João Félix Exposto, Nádia e o estagiário João Félix, também narrador, sobressai a jornalista Joana, por quem passa a história do eleito e a solução de alguns enigmas. Na sombra, emerge deputada da oposição, cuja biografia se cruza com a deste. Como se organiza a queda de um anjo? Entre comportamentos oblíquos e identidades sempre esquivas, um deputado-borboleta da extrema-esquerda torna-se vítima de predadoras­ e perdedoras, que visam vingança em várias frentes.
Quase dois séculos de regime parlamentar e discursos inócuos ou repetitivos reflectem outros tantos passos perdidos que a Constituição de 1975 e legislaturas fracas não transformaram. Reflexão sobre a democracia em semana pascal, esta fábula política é salva, no final, por um bem enredado discurso amoroso.   

sábado, 12 de abril de 2014

Gente do Norte


Gente do Norte ou A História de Vila Rica (1977), de Leonel Brito, é uma docuficção em renovada sintaxe, que faz deste filme pequena obra-prima em menos de uma hora.
Na linha de experiências de Manoel de Oliveira ou João César Monteiro, o pós-Abril trouxe um interesse crescente pelas manifestações populares (cultura intersomática ou social) maioritariamente centradas no Alentejo e em Trás-os-Montes, bem como por casos de cooperativa, de pequena e grande empresa ou fábrica, em que pulsava o voto de uma democracia alargada.
No exemplo transmontano, tínhamos Oliveira e co-realizadores em O Acto da Primavera (1962), seguindo-se Alfredo Tropa, Pedro Só (1971), Festa, Trabalho e Pão em Grijó de Parada (1973), de Manuel Costa e Silva, e Falamos de Rio de Onor (1974), de António Campos. Sucederam Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro, Máscaras (1976), de Noémia Delgado, e Argozelo ‒ À Procura dos Restos das Comunidades Judaicas (1977), de Fernando Matos Silva.
Ora, neste ano, uma nova cinematografia emerge com Leonel Brito: não é só o trabalho de campo, de décadas, que vultos eminentes da filologia e das ciências sociais já tinham operado na região, acrescidos de musicólogos ‒ que o mesmo realizador segue em Encomendação das Almas (1979), onde também não falta o inquérito; nem tão-só um esboço de ficção, a caucionar o folclore, embora pequenas histórias, geralmente dramáticas, se encaixem na diegese. É, a par disso, um lento olhar picado do alto da serra, único a abarcar a grandeza de uma paisagem, rude e tirânica («Entra nos olhos e não sai mais», dizia Torga, no Diário XIII, que só essa tirania aceitava), da qual se desce ao indivíduo comum, para, lenta, a focalização abrir à comunidade – e, nessa alternância, contar-se a história económica, social, religiosa e política de Torre de Moncorvo, ‘vila rica’ de minério e regra legionária à sombra do templo, agora afrontada por anseios legítimos do retornado, emigrante, camponês, asilado, estudante.
Se o sociológico reforça uma etnologia que, a mais das vezes, se quedava na descrição, a novidade está em que, nesse alternar de paisagem física e humana (e, dentro daquela, entre uma grandiosidade e a típica casa decadente; e, dentro desta, entre sujeito e grupo), se abisma uma narrativa, circulando entre carpires na igreja e passagem do féretro na praça, com cena final do comboio ironicamente partido para segunda morte ou fim da linha, enquanto não chega terceira (prenunciada no casario da barragem do Pocinho), quando a beleza da Vilariça, decisiva no alardo de D. João I, ficar submersa por outra barragem. A praça, entre indiferente e expectante, pode ser a última esperança de sobrevida; percebe-se uma estratificação social; a menina ceguinha, suas rezas e vinho fino, são de um tempo revoluto; quem tem unhas toca guitarra, mas a desertificação é inelutável, mau grado a iniciativa de retornados ou emigrantes. O risco do jogo em feira ou taberna é improdutivo; as minas são, regularmente, notícia de futuro. Este filme ‒ no que estuda, documenta, deixa de nostalgia ‒ torna-se, sobretudo, um desafio…
…Também narrativo, cuja sintaxe ou montagem importa relevar. Há um texto (excelente, de Rogério Rodrigues; neutramente lido, para melhor sobressair a melopeia da frase, assente em discretas repetições) que vai a par ‒ como a vida vai a par do baptismo e do casamento, da festa e do baile, da igreja e da feira, do rio e da linha do Sabor, acontecendo, em cada momento desses, um sobressalto. Este dá-se, ainda, na mudança de planos (e, nestes, quem percebe logo vir aí um açude vertendo-se em catarata?) ‒ numa sequência de quem conhece o seu chão ‒, na batida musical de José Mário Branco, nos depoimentos bem gravados, quando o som era um bico d’obra no filme português… O cenário sai cumulado na fotografia de Elso Roque, cujo esplendor é via real para uma obra-prima. 


[Nota: Vimos este filme, ontem, 11 de Abril, na Cinemateca, ao lado de Leonel Brito.]           

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

À conversa, no programa AGORA, da RTP 2, em 12 de Janeiro:

http://www.rtp.pt/play/p1235/e140447/agora

José do Carmo Francisco (transportesentimental.blogs.sapo.pt) sobre A Casa de Bragança

Podia ter como título «A cidade suspensa» este misto de Natureza e Cultura, Geografia e Memórias, Pedras e Gerações, mistura viva a cruzar uma narrativa de 282 páginas. Seu autor, Ernesto Rodrigues (n.1956), parte de uma memória («catorze gerações desde 1014») e de uma concepção de literatura («murmurado afecto») para se declarar: «Para ti, leitor posto em assédio, construo bairro de letras, onde seja agradável passear; instalo outra casa de água viva, borbulhante, que refresque e alimente; ergo um castelo de enigmas, como na infância dos homens, disposto a ser conquistado». A narrativa é organizada por Afonso Roiz, homem que, entre outras aventuras, trouxe do arraial de Ceuta a carta de foral dirigida à nova cidade de Bragança em 20-2-1464. Aqui casaram D. Pedro e D. Inês no ano de 1353 mas já em 1351 o Infante tinha caído na simpatia do Povo: «Era muito amado dos povos e mais dos pobres, aos quais em 12 de Janeiro de 1351, garantia que, à sua saída do concelho, o pão fosse vendido ao preço de um mês antes da sua chegada.» Seu filho, D. João de Portugal e Castro, fica assim descrito: «Estar bem consigo mesmo, com os próximos e maiores, enfim, com Deus, é a primeira e sólida pedra no castelo a edificar que D. João de Portugal e Castro não soube esculpir. Em troca ganhou dor no coração, fundiu-se em lágrimas, fez-se deveras contrito, levou longe o verdadeiro arrependimento, que se perdeu em Espanha e, com ele, perdeu o reino.» Organizada em 3 grupos de 14 capítulos mais 4 textos (Prólogo, Desenlace, Enlace e Epílogo), esta aventura oscila entre o passado e o presente, entre Europa e África: «deslocaram-nos para Fez em 25 de Maio de 1438, um domingo luminoso, carregados de bagagens e alimentos. As bestas de carga eram magras, sem arreios decentes e chamar àquilo cilhas era favor, imundas como a inteligência dos nosso carrascos.» Em 5-6-1443 morre D. Fernando, o Infante Santo: «O próprio Lazeraque, depois de tanto o insultar como perro e cão, de lhe atirar à cara com restos de cuscuz, ao saber disto, falou, por uma vez verdade, dizendo que D. Fernando nunca mentiu e que pecado mortal estava em quem o abandonara.» No lance seguinte da aventura, em Alfama lembrando Fez, a mulher que vem com o narrador escolhe um vocabulário simples: «trégua, guarda, espora, bandeira, estribo, elmo, toalha, fato, banco, roca, bordar, frasco». O narrador fala de si («Estou velho e acabado. Há trinta e três anos perdi o último avô. Tenho sessenta e seis») lembrando uma frase que é uma divisa: «Quem teme a morte perde o prazer da vida». Aventura fascinante que não se explica em poucas linhas, este livro oscila entre Literatura e Jornalismo, entre dois tempos sociais (Quatrocentos / Século XXI) e também pessoais : «Este país que eu também sou, esteve à beira do abismo de ser grande, ao fechar Quatrocentos laborioso. Porque feneceu?» (Edição: Âncora Editora, Capa: Sofia Ferreira de Lima, Foto: Nuno Calvet)