domingo, 1 de março de 2015

Política, Finança, Jornalismo

Retomando prática em que terei sido pioneiro ‒ ser o autor a falar da sua obra, que deve conhecer minimamente ‒, apresento, agora, o meu quinto romance, Passos Perdidos (na Âncora Editora, sob comando de um prático experimentado, António Baptista Lopes), agradecendo a generosidade de espaço mais do que centenário a que retorno, e rogando um olhar sereno dos leitores e eleitores que me ouvem, ou lêem, sobre um ano decisivo nas nossas vidas. A democracia definha; o Estado de direito é subvertido por serviços secretos ‒ que reconhecem as ilegalidades em que incorrem. Serei breve, para dar azo a debate que gostava seguisse estas palavras, dedicadas a Amigo que o sofrimento retém em casa: Amadeu Ferreira.
Quando três personagens sobem a escadaria da Assembleia da República, vencem o detector de metais e caem no salão-corredor exibindo seis painéis a óleo sobre tela de Columbano que retratam 22 heróis pátrios desde o século XIII, não podemos deixar de pensar, também, que os designados Passos Perdidos são uma imagem acusadora dos últimos dois séculos (desde 1821), em que o desleixo dos eleitos está longe de rivalizar com «os visionários D. Henrique e filho Afonso», e com aquele pequeno milhão de Quatrocentos, que deu novos mundos ao mundo. Eis o cerne do problema, qual chaga aberta no Portugal contemporâneo ‒ eleitos e sistema eleitoral, sobre que tanto se fala, sem proveito, e que o voto soberano não deveria caucionar.
Duzentos e trinta deputados, ah!, se magníficos, seria música de esferas, senão puro maná; mas nem um filme sobre 12 magníficos faríamos, o que leva a perguntar da desrazão de alimentar sujeitos além dos 180, como prevê a Constituição. Já agora, esta, que começou a ser redigida há 40 anos, pode ser facilmente depurada.
Várias soluções estão previstas no diálogo entre dois estagiários de 24 anos, que representam a posição da juventude face à partidocracia. Desde a epígrafe, tirada da Arte de Furtar, alerta-se para amálgama entre Política e Razão de Estado, ambas reduzidas aos interesses mesquinhos de sujeitos privilegiados, e sem elevação, que se eternizam.
Conviria, diz a jornalista estagiária ‒ não somos todos estagiários da vida? ‒, «abrir os partidos à sociedade, a candidaturas independentes, como nas autárquicas, antes que a sociedade os encerre em si mesmos». Não desejo o fim dos partidos; estes é que, sem a qualidade exigível, não podem ser senhores de um destino colectivo. Mais: votando em partido, e em círculo nacional, devemos poder votar num candidato da nossa preferência, e não forçados a eleger os que são postos à boca do tacho, seja, nos primeiros lugares da lista. Entendo que a eleição uninominal só aterroriza inseguros, autocratas, que não merecem a confiança do eleitorado.
Argumenta-se que reduzir a Assembleia a 180 significa, além de demagogia (como, se está previsto na Constituição?), ferir a proporcionalidade e reduzir a nada regiões do interior. Ora, a regra histórica é a desproporcionalidade, que só muda no grau ‒ e já nem falo de troikas e comissários europeus não-eleitos, que governam as nossas vidas. Entretanto, acautelem presença digna das regiões, começando por abolir a disposição constitucional que proíbe partidos regionais. Por que razão um partido do Chiado, alegadamente nacional, há-de disputar percentagens vergonhosas, e não se admitir uma força declaradamente regional?
Na Lírica de João Mínimo, há um poema, datado de Coimbra, Dezembro de 1820 ‒ em vésperas de entrarmos no regime demo-parlamentar que nos governa ‒, em que Almeida Garrett, aludindo aos deputados, os avisa de que os olhos do mundo e dos portugueses estão sobre eles e que devem tremer do julgamento que prestaram: «tremei; que um Deus ouviu, que ouviu a patria, / Que os seculos vindouros vos aguardam; / E no recto provir, ou gloria, ou mancha, / Com sêllo eterno vos espera a fama.» O século XIX, todavia, vai rir-se de eleitos que não eram melhores que os de hoje. Lembro um candidato madeirense à «dobadoura parlamentar», que já projectava lei, cujo artigo primeiro permitia «a todo o belleguim eleitural o poder mamar na vacca do estado, sem pagar direitos de mercê, nem contribuição alguma».
O deputado dividia-se, então, em janota e pé-de-boi. Aquele, jovem e vestindo à parisiense, luneta, «tem ordinariamente desde a edade legal até aos quarenta annos». Tenho um assim, sem luneta, mas sexy. Prima por chegar tarde, sentar-se, vaguear pela sala, cumprimentar repetidas vezes, complacente para as galerias. O janota representa-se «ordinariamente a si e à sua toilette». No seu «borboletismo», vai de partido em partido: «Os maldizentes chamam a isso falta de carácter, elasticidade de consciência, frouxidão política, moléstia de S. Bento, etc.»
O segundo, respeitável, «verdadeiro pae da pátria», parece mais velho do que esta, é um pé-de-boi, gebo parlamentar, calva semicircular ou chinó. Move-se entre «dois colarinhos monumentaes», usa «colete de rebuço descommunal», grave, sossegado, roncando, se dorme, e, acordado, prefere ‘ordem’, enquanto a janotagem grita ‘apoiado’. «O deputado pé de boi representa o seu voto.» Mas essa de ‘pai de pátria’ intrigava um tal Silva Costa, que cito da Gazeta Literária (1867): «Dizem que o deputado é um pae da pátria… ora tendo a pátria tantos paes, dá uma ideia pouco favorável da virtude de sua mãe. Isto é lógico. Que um pae tenha muitas filhas, é natural, comprehende-se: mas que uma filha tenha muitos paes… não há explicação possível… sem offender a moral.» Quanto a essa imagem, dou outros exemplos­ de Latino Coelho a Ramalho, de Eça a Teixeira de Queirós ‒ na minha edição de A Queda Dum Anjo, que começou a sair em folhetim há 150 anos, e foi primeira inspiração…
Há outro aspecto, gravoso: a promiscuidade entre finança e política, que desencadeia a acção do romance. Com efeito, um banco de investimento quer vender projecto de lei a deputado democrata-cristão há 40 anos sem intervenção no plenário da Assembleia da República. Nunca saberemos que projecto de lei é esse, porque o fundamental está alhures, para não dizer além da lei. Como se chega ao desplante de invadir a Casa da Democracia com intenções viscosas? E justificar esse silêncio de túmulo, vivido, afinal, entre chantagem de colega deputada e lembrança de amor único, talvez perdido?
Neste universo de sambenitos, figuras secundárias tornam-se mais importantes do que julgaríamos, e talvez esse deputado não seja tão estúpido como ressalta da enunciação de um jovem narrador, perdido em custoso amadurecimento, fruto de família desagregada. Mas é a vingança que tudo move, apoiada em razão antiga ou recente, e confunde deputada da oposição, não sem vitimar esse eleito janota, mais calhado para passerelles de moda. Desvela-se a morte parlamentar de extrema-esquerda inconsequente (gostaria de me enganar, e que a esquerda estivesse menos fragmentada), mas também sai criticado um partido nem carne nem peixe... Certo é que os partidos não olham para dentro de si mesmos, nem percebem que o povo não é parvo ‒ com a diferença de que tem menos benesses e se revoltará, um dia. Perguntada se vota, responde a jornalista:
«‒ Nestas múmias?
‒ Não me lembre o Museu Britânico...
‒ Deixem-me rir… Quem os conhece? Para os anos que exercem, e matérias tão sensíveis, onde é que estudaram? Ou só eles é que não precisam de estudar? Trocava lá a praia por indivíduos que não inspiram confiança…
‒ …Que, se pudessem, comiam-na viva, qual lagosta das águas territoriais portuguesas.
‒ Lá isso, acredito. Quando posso, vou aos museus.
‒ Como eu. ‒ Enfim: também sou pouco de museus. ‒ E se fosse obrigatório?
‒ Votar? Sem alterações de fundo, nas atitudes e nas escolhas? Sem saber donde lhes vem o dinheiro, quando deviam ser modelos de transparência? Porque seria melhor a ditadura dos partidos, que se encostam ao próprio interesse?»
A abstenção é já um aviso. 
Discursos inócuos ou repetitivos reflectem outros tantos passos perdidos que a Constituição e legislaturas fracas não transformaram. Aproveito para inscrever em ficção uma das pérolas dos anais parlamentares, lançada por senhora que conheci na juventude: «O meu medo é o do inconseguimento… o inconseguimento de eu estar num centro de decisão fundamental a que possa corresponder uma espécie de nível social frustracional derivado da crise.»
Se a glosa do camiliano A Queda Dum Anjo é evidente, será menos o único e longo discurso de João Félix Filostrato, adaptado de outro, do futuro chefe progressista José Luciano de Castro, em 1865. Ou seja: as boas intenções deslizando da tribuna parlamentar ficam sempre em águas de bacalhau. E, claro, não podemos continuar nisto. Reflexão sobre a democracia em semana pascal ‒ seja, entre os próximos dias 1 e 9 de Abril ‒, esta fábula política é, todavia, salva, no final, por um bem enredado discurso amoroso. O que São Bento tem de chorrilho e lábia inútil, tem a saudade amorosa de recato e grata consequência. E, sendo estagiários da vida, resta-nos gozar a felicidade…
Gostava de assinalar outros pormenores da vida nacional que não ficam nas entrelinhas: a acção deletéria dos meios de comunicação (em particular, da televisão), quando podiam ser escola de virtude, de esclarecimento, de humilde busca da verdade, sempre fugidia; a excessiva opinião que os inunda, encabeçada pelos filósofos da bola em sua língua de trapos; a trivialidade de figurinos e figurões, heróis do efémero (que substituirão, um dia, os painéis de Columbano), face aos quais, além da democracia e do Estado de direito, também o país-nação definha.

Num misto de corrosivo social e relações oblíquas, entre logros e acentos policiários, julgo que se lê com prazer este romance-divertimento, embora sério nas questões elencadas e na lição moral que dele se evola. Desejo que as frentes política, financeira e jornalística não distraiam das decisivas (para bem e para mal) relações familiares em jogo, que tudo determinam, ora mostrando a mesquinhez da inveja, ora pacificando insofridos corações, em final feliz; enfim, quem me dera fosse degustado ‒ na ironia, na sugestão, em cada um dos vocábulos longamente estudados ‒, fosse saboreado, dizia, o ritmo que imprimi a este, não raro evanescente, não raro cru, monumento verbal. A par de ingredientes da velha escola folhetinesca ‒ origens enigmáticas de filhos entregues à roda, irmãs gémeas, formas de reconhecimento, amor omnia vincit ‒, estas páginas querem-se interventivas, sim, na chaga aberta do nosso sistema político; acima de tudo, porém, é meu sonho que elas sobrevivam no voto que me orienta, seja, enquanto consciência da literatura. Está aberto o debate. 

[Apresentação, pelo autor, de Passos Perdidos, no dia 25 de Fevereiro, na Livraria Ferin, Lisboa.]  

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