Ernesto Rodrigues
Escritor
sábado, 28 de setembro de 2024
sexta-feira, 30 de agosto de 2024
Arnaldo Saraiva lê O BOM GOVERNO
Arnaldo Saraiva, Professor Emérito da Universidade do Porto, sobre O BOM GOVERNO:
Habituado à leitura dos seus sérios, sábios e eruditos ensaios sobre livros, autores e teorias das literaturas da Europa e das Américas, foi com enorme surpresa mas também com intenso prazer que li este seu último romance. Do princípio ao fim não parei de rir com o cómico de nomes, ou nomeações, a começar pela de alguns ministros, números, ou enumerações (pelo menos até cem), hipérboles, trocadilhos ("mama caprina"!), formulações divertidas ("o governo levantou-se da cama"..., "esqueceu o carácter em casa"...), mundo às avessas ( governo à noite, pequeno almoço à hora de jantar...), personagens caricatos, episódios grotescos, cenas gagas. Mas em nenhum momento a narração ou o narrador parecem querer produzir artificias efeitos cómicos, porque parecem empenhados em mostrar com naturalidade e verosimilhança, que não é contrariada pelo hiperbólico e pelo alegórico, o mundo ou os mundos da política e da governação, com a sua propaganda, os seus rituais, as suas reuniões, as suas eleições, as suas traições, e com os seus presidentes, ministros, ex-ministros, sem-ministros, secretários, secretários adjuntos, subsecretários, assessores, mas também com os seus repórteres, belas acompanhantes, guarda-costas, porteiros, etc. Creio que desde o Eça não se produzia em Portugal um romance em que de forma tão sugestiva e compacta se mostrasse a teatralidade, a hipocrisia, a vaidade, a ignorância, a leviandade, a vacuidade, o deboche, o despautério de boa parte dos nossos governantes, pelo que se compreende a invocada e irónica conclusão de Goethe.
quinta-feira, 29 de agosto de 2024
Ernesto Rodrigues, O BOM GOVERNO
Ernesto Rodrigues, O BOM GOVERNO
(Lisboa, Guerra & Paz, 2024)
Um governo de cem ministros trabalha de noite e levanta-se
às vinte horas, para ouvir o primeiro-ministro no telejornal, que os cidadãos
não vêem. Cada gabinete tem cem funcionários, mas nenhum pode ser mais alto do
que o seu ministro. São titulares dos Negócios Estranhos, da Propaganda, do Betão,
da Apneia, dos Equídeos, das Boas Intenções… –, enquanto vendem a província ao
estrangeiro.
Sobressai o da Alta Cultura ou do Verniz, octogésimo no
elenco: compensa a humilhação do lugar com pentear-se e vestir vincadamente e,
em cada inauguração, levar a tiracolo uma assistente, mais nova do que a
anterior, até parecerem bisnetas.
Após 50 anos de sono e ignorância, ele será
primeiro-ministro, ajudado pelo narrador, que, no incumprimento de promessas, se
afasta, antes de chefiar um executivo sóbrio, visando o melhor governo, segundo
Goethe: «O que nos ensina a governar-nos a nós próprios.»
Uma distopia? Sim. Tão séria, que se confunde com a
realidade que nos calha tantas vezes em sorte.
…E, no quadro de uma literatura portuguesa educada e sem
‘graça’, o leitor perceberá como a ironia constrói uma obra inteligente.
sexta-feira, 16 de agosto de 2024
sábado, 8 de junho de 2024
Cruzeiro Literário: apresentação
Feira do Livro de Lisboa, 7 de Junho de 2024
Resumo
da apresentação
Após
colectâneas de poesia nos anos 70, estreei-me na ficção com Várias Bulhas e
Algumas Vítimas (1980), novela reproduzida no volume de contos e novelas A
Flor e a Morte (1983). Descontando Histórias para Acordar (1996), microcontos
dirigidos à infância, Cruzeiro Literário significa o regresso às
espécies narrativas que pratico desde os dez anos. Enquadram uma vida em cinco
espaços: na tipografia, no jornal, no meio literário, na vida editorial, na
universidade.
Tipógrafos
são a classe profissional com quem mais convivi, e neles assenta a galáxia de
Gutenberg. Dedico-lhes o conto “Os Lusíadas”, ou as diligências de
Camões para imprimir o Poema. Chegado a Lisboa na Primavera de 1570, com
miasmas da Grande Peste ainda pelos cantos da cidade, Luís Vaz visita a censura
dominicana e desloca-se ao desembargo do paço para atribuição de um preço às
oitavas. Estranhamente, esse preço não vai constar da edição; encontra aí
Duarte Nunes de Leão, que recomenda António Gonçalves, já impressor de obras do
jurista e gramático.
Em
“Natal de 1887”, celebro Guerra Junqueiro com a família em Viana do Castelo.
Convidado um abade para a ceia de Natal, este modela o discurso ultramontano da
época, seja contra o Eça d’A Relíquia, e não só, seja contra
Ramalho Ortigão e, naturalmente, contra A Velhice do Padre Eterno. As
referências pedem um leitor informado sobre estes três vencidos da vida.
No
conto “Vida nova”, mostro como as relações familiares podem ser salvas pela
literatura. Pai e filho rivalizam, e só uma terceira via os congrega, em final
emotivo.
Para
descansar, vejo muito cinema, de todo o género, mesmo de “Série B”, título de
conto que é reencontro com um passado imprevisível, como já intitulei
romance, ainda na ordem da filiação, assunto recorrente noutros textos. Aqui,
entretanto, há vontade em esclarecer o conúbio entre história narrada e forma
de expressão. Por que razão um autor vê claro onde o leitor nada vê ou se perde
numa alegada obscuridade? O moralista Chamfort tentou explicar: o autor vai do
pensamento à expressão; o leitor vai da expressão ao pensamento. Se, no deserto
do ser, eu definir alguém como «nuvem ociosa», e se deste adjectivo o leitor
nada extrair, ele não perceberá o estado anímico da personagem (não precisa de
saber que bebi essa nuvem em Proust). A expressão interessa menos ao leitor do
que ao autor (que nela tem o seu sangue criador); mas ler é um desafio que o
leitor se deveria impor enquanto tendendo, também, para uma espécie de autoria
a dois.
Vim
do quinto conto ao segundo, enquadrados por duas novelas. Abre “A Morte do
autor”, que é o que acontece quando separamos ser e estar, ou como as ideias
borbulham em palavras. O título participa de um conceito narratológico avesso à
presença de uma figura civil biografável. Ora, qualquer texto, mesmo anónimo,
institui um sujeito ou sua figuração colectiva. Numa escrita entre irónica e
sarcástica, mostro a febre universitária não enquanto ensino, investigação e
serviço cívico, mas máquina de produção: multiplica licenciaturas com nomes
incríveis; louva-se na organização de milhentes congressos nacionais e
internacionais (nestes, basta um convidado estrangeiro), cujas comunicações
são, não raro, risíveis; e, gravíssimo, instaura-se uma lamentável dependência,
até à promiscuidade, entre mestres e discípulos desejos de ascender. Alguns fizeram-se
catedráticos arrastando no braço valoroso a pasta do professor ou passeando-lhe
o caõzinho, enquanto a alma se humilhava. O argumento é, porém, diverso, e avalia
um conjunto de ensaios sobre obra erradamente atribuída a outrem, durante
décadas, em que cada texto da proeminente criatura (bisturizada, devidamente
retratada) repete, inocuamente, os ensaios anteriores. Devera ser a morte
intelectual de uma indigente, e não do alegado autor. Ora, a autocitação
inflaciona a bibliometria, com que se sobe na carreira; criando perfis falsos e
exigindo aos súbditos citações do mestre, mesmo que não respeitem ao assunto em
estudo, chega-se longe - a reitor da Universidade de Salamanca, por exemplo - e
ganham-se projectos assentes num cartel de citações. Com esta nova indústria, a
investigação está moribunda.
O
jornalismo televisivo, dominado pelo exército de comentadores de nada dizer, e
a polícia entram em acção, com desenvolvimentos que não vou descrever. Dei 41
anos ao ensino superior; este é o meu lamento, requiem talvez, pela
Universidade.
A
novela que titula o volume reúne os meios editorial, literário, jornalístico e
universitário, além do recurso final à Judiciária. Entre o comandante do navio
e o polícia de lacinho, actuam 33 vaidades, algumas com sede de glória: além da
trindade editorial, há 13 jornalistas e cinco professores universitários muito característicos,
reunidos para louvaminhar e vender 12 autores da casa. Alguns da trintena são
reconhecíveis, mas eu negarei sempre.
O
enredo policial, após assassínio do quase Nobel, suscita várias interpretações,
que também são erros de paralaxe, enquanto não se desvela a autoria do crime.
Creio
ter dado a atmosfera política, social, literária e tipográfica da Lisboa do
século XVI, além da sua topografia entre 1570 e 1580. O mesmo direi sobre uma
vaporosa consoada no século XIX, convocando autores que estudei a fundo e
editei. Se o diálogo, além e aqui, sai verosímil, mais solto e actual se lê nos
outros textos.
Honro-me
de entrar nesta editora e colecção, que me oferecem, pela primeira vez, uma
sobrecapa. Vêm saudades da adolescência e do tipógrafo em embrião que também
fui, cujos rudimentos da arte negra descrevi no romance A Terceira Margem (2021).
Prático nos caracteres móveis, o meu jovem herói «mal chegava ao cavalete; e só
em bicos de pés enxergava a caixa, em cujas divisões, ou caixotins, escolhia a
letra, segurando, na mão esquerda, o componedor. Num relance, fixava as frases
do manuscrito seguro no divisório (este, por seu turno, fixo na caixa), e,
quase instintivamente, levantava a letra, com a fenda ao alto, formando
palavras, frases, linhas, páginas, cadernos, volume. // Este acto de criação
inebriava-o: mais do que de Deus ou do autor, dependia de si o resultado final,
mesmo após cuidada revisão alheia […].»
A
revisão, que eu mesmo fiz, está perfeita. A vossa atenção mais agradável ainda.
Obrigado.
sábado, 25 de maio de 2024
Ernesto
Rodrigues convida para o lançamento de Cruzeiro Literário na Feira do
Livro de Lisboa, Praça Vermelha, no dia 7 de Junho, às 19,45h.
Reunião
de contos e novelas, vêm dissecados, com rara ironia nas nossas Letras, os
meios universitário, literário e jornalístico.
Saído
em Ponta Delgada pela Letras Lavadas, estarão presentes o respectivo editor,
Ernesto Rezendes, e o director da colecção, Vamberto Freitas, o crítico mais
regular e atento da nossa imprensa escrita.
O
stand Cultura Açores está nos pavilhões G26 e G 27, onde a obra também
pode ser adquirida.
sexta-feira, 5 de abril de 2024
Conversa com Ernesto Rodrigues no Açoriano Oriental
sexta-feira, 5 de abril de 2024
Conversa com Ernesto Rodrigues
Em última instância, e numa primeira leitura desavisada, todos os clássicos são aborrecidos: por isso, à medida que nós melhoramos, melhora a compreensão das técnicas, do dito e talvez do interdito.
Por certo que é o profundo conhecedor da literatura que nos fala aqui. A própria obra do Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Diretor do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, entre outros cargos de cariz intelectual que exerce noutras instituições, é de todo abrangente quanto a temática e formas, e que vai desde o jornalismo e crítica literária, história da nossa imprensa em determinados períodos, à poesia e ficção. A sua bio-bibliografia é longa demais para que eu a sintetize nestas páginas. Tenho-me focado nos últimos anos na sua também extensa ficção, que inclui alguns dos títulos por ele aqui mencionados. Ler ou falar em direto com Ernesto Rodrigues é fazer um seminário sobre todas estas questões da arte literária e trabalho académico. A sua experiência de Leitor na Universidade de Budapeste torná-lo-ia ainda o grande tradutor da literatura desse país entre nós. É sobre tudo isto e algo mais que falamos nas palavras seguintes.
*
Já escrevi sobre alguns dos seus livros. Só que as notas biográficas sobre uma obra tão grandiosa “intimidam-me”. Ensaio literário, história da imprensa portuguesa, ficção e outros géneros. A escrita de um Professor da Universidade de Lisboa. Tudo isto me inquieta de modo desafiante. Pode comentar essa minha admiração e medo?
Sonhei-me escritor desde os oito anos e, ligado a jornais desde os 14, quis viver do jornalismo profissional, razão pela qual escolhi Lisboa. No quinto ano de Filologia Românica, na Faculdade de Letras, dificuldades financeiras obrigaram-me a trocar o jornalismo pelo ensino, primeiro no Liceu de Passos Manuel e logo no leitorado de Português na Universidade de Budapeste (1981-1986). Continuei ligado à imprensa escrita, donde saiu o essencial de Verso e Prosa de Novecentos (2000) e Literatura Europeia e das Américas (2019).
No regresso da Hungria, a carreira naquela faculdade exigia provas, e, além do mestrado – sobre Fastigínia (1605), de Tomé Pinheiro da Veiga, de que daria edição crítica na agregação (2011) –, pude, já no doutoramento, conciliar aquelas paixões em Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal (1998; em 2022, acrescido de Crónica Jornalística. Século XIX, de 2004). Coordenar os verbetes de literatura portuguesa e teoria literária nos volumes de Actualização do Dicionário de Literatura (2002-2003) de Jacinto do Prado Coelho mostrou outra faceta, pois eu ensinei sempre na área da cultura portuguesa, da história e linguagem dos media, de que resultaram Cultura Literária Oitocentista (1999, 2022), 28 Ensaios de Cultura (2023) e quatro títulos de 2008-2012, a reunir em Da Corte Luso-Brasileira à República. Dei edições críticas ou rigorosas de Gil Vicente, João de Barros, padre António Vieira, Alexandre Herculano, Júlio Dinis, Guilherme de Azevedo, As Farpas Completas de Ramalho Ortigão, além de novecentistas, com maior atenção a José Marmelo e Silva e António José Saraiva. Os 40 anos de Camilo estão em A Queda Dum Anjo e Novas Páginas Camilianas (2023).
Recolhido o ensaísmo universitário, desde 1976, em dez densos volumes (os séculos XVI a XVIII virão em Estudos de Literatura Portuguesa), o primeiro sonho é que importa, com a estreia em 1973 e novas colectâneas de poemas até 2020. O dramaturgo deu Teatro (2021). Fundamental é o novelista e contista (1980, 1983, 1996, 2024), embora sejam mais significativos os nove romances editados (1989-2023). Lá virão o cronista e memorialista, cumprindo enfim o sonho de criança.
Assim, a crítica, o ensaio, a edição e a tradução sei-os úteis a alguém: vivi-os como um serviço, enquanto me alimentavam. Podem causar admiração, mas nenhum receio. A criação literária é outro tipo de diálogo, uma espécie de culto a que não acede qualquer profano. Não é grave; como não é grave, aproximando-se, ficar à porta de muitos segredos. Faça seu templo-leitura com os elementos que recolher.
Foi professor numa faculdade da Hungria em Budapeste durante alguns anos, e tornou-se entre nós um dos grandes tradutores da literatura desse país, ainda para nós misterioso. Pode falar-me dessa experiência e dessa, digamos, devoção?
Cheguei a Budapeste sem conhecer uma palavra de húngaro. Tornei-me o principal tradutor no universo da língua portuguesa. Após artigos de jornal, dossiê na revista da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, edição bilingue do poeta nacional Petőfi Sándor (1999, 2023), Antologia da Poesia Húngara desde o século XV (2002) e, em particular, grandes ficionistas do século XX (o Prémio Nobel Kertéz Imre, Márai Sándor, Szabó Magda, Kosztolanyi Dezső, Füst Milan, Őrkény István, Krasznahorkai László, Pál Dániel Levente), fiz um balanço de 40 anos em Hungarica (2022).
A devoção foi premiada com os mais altos galardões; a relação entre os dois países, que historiei desde a Idade Média, deu azo a trabalhos de investigadores, alunos meus que viraram docentes e mantêm viva essa interlocução. Língua fino-úgrica longe da comunidade indo-europeia, o húngaro é falado por 15 milhões e, pela sua dificuldade, sofre de uma certa guetização, que a política de hoje não ajuda a vencer.
A minha experiência, todavia, antes da queda do Muro, foi exaltante, e perpassa em contos e romances como A Serpente de Bronze (1989), Um Passado Imprevisível (2018), A Terceira Margem (2022), Liliputine (2023). A Europa Central e a memória austro-húngara mostram-se, ainda, enigmáticas, além de – após a I Guerra Mundial e má definição de fronteiras – perigosas, na emergência dos nacionalismos.
A sua ficção é para mim um misto de dificuldade e prazer. Como diria um grande mestre meu anglo-americano na Califórnia: vai a todas as tuas referências com sofrimento, mas na última página sentirás o prazer da grande arte…
Cito Sperone Sporoni no conto “Série B” (em Cruzeiro Literário, Letras Lavadas, 2024), segundo o qual um autor vê claro, «quando, por vezes, o leitor nada vê ou tudo lhe parece obscuro». Explico com Chamfort: «C’est, dit-il, que l’auteur va de la pensée à l’expression et que le lecteur va de l’expression à la pensée.» No como dizer distinguimos literatura, jornalismo, etc. É um primeiro passo, em que se admira o luxo da escrita ou a arte da ironia.
Mais: é já a nossa vida, como quando, ao olhar o céu, vejo ou imagino uma nuvem ociosa – «nuage oisif», diz Proust – que flana no céu, homologando os meus passos. Vejo expressão e pensamento; reconheço lanços desta existência. Mas quero ir além, à arte de uma composição mais intensa e designá-la romance, entre digressão e incidentes, talvez um nó, um desenlace. Pode a dificuldade de certas arquitecturas conduzir à experiência estética? Sim. Convém uma leitura seguida, demorada, atenta a índices, a comportamentos e relações intra, inter e extratextuais. Cada novo exercício problematiza a tradição conhecida do autor. E só há possíveis a atingir.
Aquando da revolução húngara de 1956, as personagens de A Serpente de Bronze dialogam, frente ao parlamento, com circunstantes: estes respondem com falas de um contista húngaro, também nessa ocasião junto ao Danúbio, e que eu traduzo. Segundo exemplo: em noite de Consoada, seis personagens de Torre de Dona Chama (1994) falam em lugares diferentes. Como ordenar estes discursos? Elas entram em cena segundo a lógica das rimas de uma sextina. Vou aqui dizer o que aprendi com uns tantos autores, alguns ignorados entre nós?
O leitor penetra numa floresta coerente, e nunca se perde: está sempre a tempo de recuar, buscar outra prosa-clareira. Feliz será, se subir um cheiro a renovo (na terra ou no seu horizonte de leitura), se haurir algum perfume, ganhar um canto de aves. Sou um crítico com escritor dentro, mas também um escritor conhecedor de várias literaturas seculares.
Entre a expressão e a composição, há processos a estudar. Recobrindo estas entidades, um céu histórico-cultural, dentro do qual funcionam as galáxias de sentido. Não atingimos todos os seus elementos astrais, ou significados; se só conquistamos alguns, não raro a bom sofrer, acredite-se, ao menos, que o romancista nos propõe um trabalho honesto. Em última instância, e numa primeira leitura desavisada, todos os clássicos são aborrecidos: por isso, à medida que nós melhoramos, melhora a compreensão das técnicas, do dito e talvez do interdito.
A vida é um denso labirinto: especialista do folhetim, sei isso, e como este a simplifica, a lineariza, sem escapar aos impossíveis e anacronismos, até (na maior parte dos casos) cair no esquecimento; qual Teseu animado por Ariadne e seu novelo, o leitor deve armar-se para combater o texto-minotauro. Ninguém tem o exclusivo da vitória, vitória que é à medida de cada um.
No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 5 de abril de 2024