Luís Naves estreou-se na
ficção com O Silêncio do Vento
(1999), uma prosa impecável, vibrante, de rara qualidade estilística. Sentíamo-nos
à vontade, na pena do então jornalista do Diário
de Notícias, num espaço de
sobriedade que os livros inaugurais nem sempre conseguem, e recuperamos em Almas
Artificiais (2025) - recolha de 14 contos singulares -, com a diferença de
que, agora, os registos da fala são mais variados, abarcam as vicissitudes de
um quotidiano nada exaltante e soltam-se, mesmo, em variantes dialogais
violentas e epítetos baixos, sem descer à baixeza.
Prosa entre realista e
fantástica, científica quais os contos de Zoltán Fekete, prefiro olhar ao
efeito de estranheza com que a vida nos brinda e se faz a melhor literatura
desde Kafka. A partir de algo reconhecível, sentimo-nos deslocados, sem
controlo sobre os acontecimentos, qual desvio óptico ou erro de paralaxe,
quando a situação inicial podia ser monotonamente glosada. Ora, é a partir
deste estado zero que tudo se desequilibra, que prefixos de negação se impõem.
A insegurança mina estas
páginas, como tantas vidas. Consubstancia-se, por exemplo, em violência,
desemprego, resignação, desastre, ou em formas mais graves, como não reconhecer
outrem, nem sermos reconhecidos. É já o assunto do primeiro conto, “Máscaras”,
em que, retiradas estas após séria pandemia, se percebe um novo estado, e, na
invencível solidão de quem raramente escuta «os rumores da sua modesta
existência» (p. 7), questionamos quanto julgávamos acerca dos outros, causa
impressão ter desaparecido o hipalagético «bigode tímido» (p. 9) de vizinho.
Todas as vidas relatadas serão modestas, fantasmáticas, almas artificiais ou
reduzidas a substitutos, humilhadas quando se confrontarem com as novas
tecnologias, salvo no intitulado “Substituído” e em “A última greve”: naquele, Elon,
o andróide-sósia que ocupa o lugar de narrador agora mais leve, sente-se a
sufocar, na prisão. Voltando ao primeiro conto, há um «fora do lugar» (p. 19),
recusa de coabitação, fuga à realidade, com retorno à máscara que nos
individualiza.
Outro evento já familiar
é «o grande apagão». Na geral confusão, em que os «taxistas aproveitadores» (p.
27) integram a galeria de certos grupos sociais tornados pasto da má-língua
nacional (como os políticos, etc.), um casal entra em casa e depara com um
morto desconhecido, electrocutado, «silencioso e rígido. Mais morto do que
aquilo era impossível.» (p. 28) Quando se espera uma solução policial para este
humor seco (também derramado por outras páginas), e para demonstrar que «As
mulheres têm sempre mais juízo» (p. 36), ou lá se vai um tesouro escondido «livre
de impostos» (p. 29), dona Lúcia de Meneses desvela-se uma criminosa a sério,
tal o desfasamento do desenlace gótico com o título neutro do segundo conto,
“As flores do jardim”.
No terceiro, “Os
sem-abrigo”, um processo à maneira de Italo Calvino desloca-nos para o desencontro
de um jornalista em serviço com dois robôs que lhe obstruem o caminho. Um ainda
pede desculpa; mas não o intelectual insolente atrás dos óculos, maltratado com
vocábulos fora de qualquer livro de estilo, ao repórter lançando «um olhar
feroz de diplomado recente» (p. 42). O desemprego toca a todos, e, como há
tráfico de órgãos humanos, porque não «a máfia das peças» (p. 49)? O reiterado
«talvez» em que balançam os narradores, assim problematizando os casos, tem
aqui um desfecho que sobreavisa para relações inquietantes com a tecnologia.
Entre insolente e
insólito, veja-se um título tão acessível e hoje discutido como “O problema da
habitação”. O que fazer quando nos ocupam parte da casa? E seremos nós
proprietários? A contingência é outro rosto da insegurança.
A estranheza veste-se de
ironia narrativa a partir de “Encontros no Rato Cego”, nome de «tasca
mal-afamada» (p. 61) entre «luzes chupadas» e «moscas ensonadas» (p. 62)
frequentada por um Zoltán Fekete narrado em terceira pessoa, contista de ficção
científica. Luís Naves, autor atmosférico, robustece a psicologia do herói
através da descrição do sujeito e do lugar; como em títulos anteriores, Zoltán é
húngaro, enfrentando não só dois novos robôs, como um andrógino Gabriel, mulher
com nome de arcanjo e idade extraordinária. O divertimento assenta na distância
de anos (qual Orlando de Virginia Woolf, que eu experimentei n’A Serpente
de Bronze) e cria em personagem terra-a-terra este efeito: «A incerteza
tornou-se uma comichão nos seus pensamentos.» (p. 69)
Mais intensamente
acrónico, no aleatório dos séculos face ao rigor datado de um “Jantar de Natal”
com doze à mesa, lamenta-se a décima terceira cadeira vazia, de agente
desaparecido «em missão no Eufrates, algures em 2330 antes de Cristo» (p. 87).
Vai cada agente memorando feitos próprios em épocas e lugares díspares, tal
como se associa um telemóvel ao México de Cortez, até que – surpresa! – chega
um telegrama do quinto milénio, reforçando descabo num tempo do discurso já sem
telegramas.
A ausência do agente
Domingos não foi deceptiva; e o falhanço pode ser instrutivo. O projecto
espacial de quatro primos ainda crianças mimando a NASA deu em fracasso, no
conto “Baltasar e Joaninha, o primeiro casal no espaço”; mas a lição está em
que, singrando nas profissões, existiu um passado a reviver.
Já desastre sem desculpa
é a do casado e pícaro sem tusto no banco, que, ao socorrer-se de antiga
namorada, «com uma expressão de bovina leiteira» (p. 108), se engalfinha com o
homem desta e claque fomada «por cérebros de serradura» (p. 109). Agride um
polícia e lá vai ele para a esquadra. O que nos ensina esta anedota? Para lá do
cartão que o banco suspende sem avisar, da distribuição de senhas nos serviços
públicos, ou andar de metro sem bilhete, há uma reflexão sobre como redigir a
notícia do incidente e a necessidade de ouvir as partes. Esta
reivindicação, justa, em nada ajuda
narrador indigno de confiança, mas algo se ganha com “A pequena odisseia” de
Ulisses desventurado.
Alternando tu cá, tu lá,
seja, uma condição terreal entendível e um além perceptível, “Floresta cor de
sangue” salpica-nos com terrores planetários, pinta o pesadelo do biólogo
Rivaud que vê morrer o colega arqueólogo, e falhar a expedição astronáutica.
Rivaud aproxima-se do segredo perseguido, mas deixa-se já «flutuar para a
morte» (p. 124). Somos seres inacabados.
Alternância há também no
humor. Assim no conto seguinte: “Modelo barato” de engenhoca robótica e
publicidade enganosa estragam-nos a paciência, e nem um manual de instruções
nos salva. O Faísca, feito para descansar num parque, deixa-se enganar nos
trocos, empecilha a vida doméstica, o melhor é desligá-lo e fique a decorar a
sala. Tem a vantagem de ter sido barato, como não é “O meu pior amigo”, um
Sebastião Silva pedinchão e desempregado que bate na mulher, contado pelo lesado
Silva, que dele se afasta e o descobre enfim remexendo contentor.
Outro mendigo, Ákos, tem
um dom cassândrico, suficientemente ambíguo nos avisos. Mão estendida na sua
cadeira de rodas, «Era como um santinho com caixa registadora» (p. 177) e que
ao generoso narrador responde com um mero «“rezo por si” burocrático» (p. 178),
que nada significa, mas o deixa em suspenso, temendo o pior. Esta incerteza
reforça a insegurança que defini como principal unidade de sentido nesta
colectânea.
Se virmos bem, tudo vai
do meio de comunicação na Terra e no espaço: máscara, telegrama, carta, jornal
e revista, casa, taberna, floresta e, sobretudo, máquina: computador,
telemóvel, foguetão, robô. Este, mais presente, é obstáculo, engano, escravo
bem-vindo, até que, no derradeiro conto, “A última greve”, em base marciana, os
robonautas reivindicando «equidade no trabalho» (p. 185) se sotopõem ao
«espírito indomável dos seres humanos» (p. 179) e destes se separam, até, sem
energia, irem definhando.
“A última greve” traz,
com “Jantar de Natal” e “Substituído”, algum optimismo, mesmo esperança, à incompletude
da Humanidade. O assento desta trindade é um universo paralelo, em desejos de,
contra a máquina do tempo que nos macera, fundar uma ucronia. A aridez do real
é outra história: implicados nas miudezas diárias, queremos ser verdadeiros,
reconhecidos, sem problemas. Ora, vinga a prótese (que a máscara é), o
expedito, o sucedâneo, o clone, uma série de artifícios com que vamos
sobrevivendo. Esta literatura recoloca-nos no olho de furacões que diariamente
nos abalam. Sem falsos cometimentos ou truques literários, Luís Naves é um
excelente artífice.