Retomando
prática em que terei sido pioneiro ‒ ser o autor a falar da sua obra, que deve
conhecer minimamente ‒, apresento, agora, o meu quinto romance, Passos Perdidos (na Âncora Editora, sob
comando de um prático experimentado, António Baptista Lopes), agradecendo a
generosidade de espaço mais do que centenário a que retorno, e rogando um olhar
sereno dos leitores e eleitores que me ouvem, ou lêem, sobre um ano decisivo
nas nossas vidas. A democracia definha; o Estado de direito é subvertido por
serviços secretos ‒ que reconhecem as ilegalidades em que incorrem. Serei
breve, para dar azo a debate que gostava seguisse estas palavras, dedicadas a
Amigo que o sofrimento retém em casa: Amadeu Ferreira.
Quando
três personagens sobem a escadaria da Assembleia da República, vencem o
detector de metais e caem no salão-corredor exibindo seis painéis a óleo sobre
tela de Columbano que retratam 22 heróis pátrios desde o século XIII, não
podemos deixar de pensar, também, que os designados Passos Perdidos são uma
imagem acusadora dos últimos dois séculos (desde 1821), em que o desleixo dos
eleitos está longe de rivalizar com «os visionários D. Henrique e filho Afonso»,
e com aquele pequeno milhão de Quatrocentos, que deu novos mundos ao mundo. Eis
o cerne do problema, qual chaga aberta no Portugal contemporâneo ‒ eleitos e
sistema eleitoral, sobre que tanto se fala, sem proveito, e que o voto soberano
não deveria caucionar.
Duzentos e
trinta deputados, ah!, se magníficos, seria música de esferas, senão puro maná;
mas nem um filme sobre 12 magníficos faríamos, o que leva a perguntar da
desrazão de alimentar sujeitos além dos 180, como prevê a Constituição. Já
agora, esta, que começou a ser redigida há 40 anos, pode ser facilmente
depurada.
Várias
soluções estão previstas no diálogo entre dois estagiários de 24 anos, que
representam a posição da juventude face à partidocracia. Desde a
epígrafe, tirada da Arte de Furtar,
alerta-se para amálgama entre Política e Razão de Estado, ambas reduzidas aos
interesses mesquinhos de sujeitos privilegiados, e sem elevação, que se
eternizam.
Conviria, diz a jornalista estagiária ‒
não somos todos estagiários da vida? ‒, «abrir os partidos à sociedade, a
candidaturas independentes, como nas autárquicas, antes que a sociedade os
encerre em si mesmos». Não desejo o fim dos
partidos; estes é que, sem a qualidade exigível, não podem ser senhores de um
destino colectivo. Mais: votando em partido, e em círculo nacional,
devemos poder votar num candidato da nossa preferência, e não forçados a eleger
os que são postos à boca do tacho, seja, nos primeiros lugares da lista.
Entendo que a eleição uninominal só aterroriza inseguros, autocratas, que não
merecem a confiança do eleitorado.
Argumenta-se que reduzir a Assembleia a
180 significa, além de demagogia (como, se está previsto na Constituição?),
ferir a proporcionalidade e reduzir a nada regiões do interior. Ora, a regra
histórica é a desproporcionalidade, que só muda no grau ‒ e já nem falo de troikas
e comissários europeus não-eleitos, que governam as nossas vidas. Entretanto,
acautelem presença digna das regiões, começando por abolir a disposição
constitucional que proíbe partidos regionais. Por que razão um partido do
Chiado, alegadamente nacional, há-de disputar percentagens vergonhosas, e não se
admitir uma força declaradamente regional?
Na Lírica
de João Mínimo, há um poema, datado de Coimbra, Dezembro de 1820 ‒ em
vésperas de entrarmos no regime demo-parlamentar que nos governa ‒, em que
Almeida Garrett, aludindo aos deputados, os avisa de que os olhos do mundo e
dos portugueses estão sobre eles e que devem tremer do julgamento que
prestaram: «tremei; que um Deus ouviu, que ouviu a patria, / Que os seculos
vindouros vos aguardam; / E no recto provir, ou gloria, ou mancha, / Com sêllo
eterno vos espera a fama.» O século XIX, todavia, vai rir-se de eleitos que não
eram melhores que os de hoje. Lembro um candidato madeirense à «dobadoura
parlamentar», que já projectava lei, cujo artigo primeiro permitia «a todo o
belleguim eleitural o poder mamar na vacca do estado, sem pagar direitos de
mercê, nem contribuição alguma».
O deputado dividia-se, então, em janota e pé-de-boi. Aquele, jovem e vestindo à parisiense, luneta, «tem
ordinariamente desde a edade legal até aos quarenta annos». Tenho um assim, sem
luneta, mas sexy. Prima por chegar
tarde, sentar-se, vaguear pela sala, cumprimentar repetidas vezes, complacente
para as galerias. O janota representa-se «ordinariamente a si e à sua toilette». No seu «borboletismo», vai de
partido em partido: «Os maldizentes chamam a isso falta de carácter,
elasticidade de consciência, frouxidão política, moléstia de S. Bento, etc.»
O segundo, respeitável, «verdadeiro pae da pátria», parece mais velho do que
esta, é um pé-de-boi, gebo
parlamentar, calva semicircular ou chinó. Move-se entre «dois colarinhos
monumentaes», usa «colete de rebuço descommunal», grave, sossegado, roncando,
se dorme, e, acordado, prefere ‘ordem’, enquanto a janotagem grita ‘apoiado’.
«O deputado pé de boi representa o
seu voto.» Mas essa de ‘pai de pátria’ intrigava um tal Silva Costa, que cito
da Gazeta Literária (1867): «Dizem
que o deputado é um pae da pátria… ora tendo a pátria tantos
paes, dá uma ideia pouco favorável da virtude de sua mãe. Isto é lógico. Que um
pae tenha muitas filhas, é natural, comprehende-se: mas que uma filha tenha
muitos paes… não há explicação possível… sem offender a moral.» Quanto a essa
imagem, dou outros exemplos de Latino Coelho a Ramalho, de Eça a Teixeira de
Queirós ‒ na minha edição de A Queda Dum
Anjo, que começou a sair em folhetim há 150 anos, e foi primeira
inspiração…
Há
outro aspecto, gravoso: a promiscuidade entre finança e política, que
desencadeia a acção do romance. Com efeito, um banco de investimento quer vender projecto de lei a deputado
democrata-cristão há 40 anos sem intervenção no plenário da Assembleia da República.
Nunca saberemos que projecto de lei é esse, porque o fundamental está alhures,
para não dizer além da lei. Como se
chega ao desplante de invadir a Casa da Democracia com intenções viscosas? E justificar
esse silêncio de túmulo, vivido, afinal, entre chantagem de colega deputada e
lembrança de amor único, talvez perdido?
Neste universo
de sambenitos, figuras secundárias tornam-se mais importantes do que
julgaríamos, e talvez esse deputado não seja tão estúpido como ressalta da
enunciação de um jovem narrador, perdido em custoso amadurecimento, fruto de
família desagregada. Mas é a vingança que tudo move, apoiada em razão antiga ou
recente, e confunde deputada da oposição, não sem vitimar esse eleito janota,
mais calhado para passerelles de moda.
Desvela-se a morte parlamentar de extrema-esquerda inconsequente (gostaria de
me enganar, e que a esquerda estivesse menos fragmentada), mas também sai
criticado um partido nem carne nem peixe... Certo é que os partidos não olham
para dentro de si mesmos, nem percebem que o povo não é parvo ‒ com a diferença
de que tem menos benesses e se revoltará, um dia. Perguntada se vota, responde
a jornalista:
«‒
Nestas múmias?
‒ Não me lembre o Museu Britânico...
‒ Deixem-me rir… Quem os conhece? Para os
anos que exercem, e matérias tão sensíveis, onde é que estudaram? Ou só eles é
que não precisam de estudar? Trocava lá a praia por indivíduos que não inspiram
confiança…
‒ …Que, se pudessem, comiam-na viva, qual
lagosta das águas territoriais portuguesas.
‒ Lá isso, acredito. Quando posso, vou aos
museus.
‒ Como eu. ‒ Enfim: também sou pouco de
museus. ‒ E se fosse obrigatório?
‒ Votar? Sem alterações de fundo, nas
atitudes e nas escolhas? Sem saber donde lhes vem o dinheiro, quando deviam ser
modelos de transparência? Porque seria melhor a ditadura dos partidos, que se
encostam ao próprio interesse?»
A
abstenção é já um aviso.
Discursos
inócuos ou repetitivos reflectem outros tantos passos perdidos que a Constituição e legislaturas fracas não
transformaram. Aproveito para inscrever em ficção uma das pérolas dos anais
parlamentares, lançada por senhora que conheci na juventude: «O meu medo
é o do inconseguimento… o inconseguimento de eu estar num centro de decisão
fundamental a que possa corresponder uma espécie de nível social frustracional
derivado da crise.»
Se
a glosa do camiliano A Queda Dum Anjo
é evidente, será menos o único e longo discurso de João Félix Filostrato,
adaptado de outro, do futuro chefe progressista José Luciano de Castro, em
1865. Ou seja: as boas intenções deslizando da tribuna parlamentar ficam sempre
em águas de bacalhau. E, claro, não podemos continuar nisto. Reflexão sobre a
democracia em semana pascal ‒ seja, entre os próximos dias 1 e 9 de Abril ‒,
esta fábula política é, todavia, salva, no final, por um bem enredado discurso
amoroso. O que São Bento tem de chorrilho e lábia inútil, tem a saudade amorosa
de recato e grata consequência. E, sendo estagiários da vida, resta-nos gozar a
felicidade…
Gostava
de assinalar outros pormenores da vida nacional que não ficam nas entrelinhas:
a acção deletéria dos meios de comunicação (em particular, da televisão),
quando podiam ser escola de virtude, de esclarecimento, de humilde busca da
verdade, sempre fugidia; a excessiva opinião que os inunda, encabeçada pelos
filósofos da bola em sua língua de trapos; a trivialidade de figurinos e
figurões, heróis do efémero (que substituirão, um dia, os painéis de
Columbano), face aos quais, além da democracia e do Estado de direito, também o
país-nação definha.
Num
misto de corrosivo social e relações oblíquas, entre logros e acentos
policiários, julgo que se lê com prazer este romance-divertimento, embora sério
nas questões elencadas e na lição moral que dele se evola. Desejo que as
frentes política, financeira e jornalística não distraiam das decisivas (para
bem e para mal) relações familiares em jogo, que tudo determinam, ora mostrando
a mesquinhez da inveja, ora pacificando insofridos corações, em final feliz;
enfim, quem me dera fosse degustado ‒ na ironia, na sugestão, em cada um dos vocábulos
longamente estudados ‒, fosse saboreado, dizia, o ritmo que imprimi a este, não
raro evanescente, não raro cru, monumento verbal. A par de ingredientes da
velha escola folhetinesca ‒ origens enigmáticas de filhos entregues à roda,
irmãs gémeas, formas de reconhecimento, amor
omnia vincit ‒, estas páginas querem-se interventivas, sim, na chaga aberta
do nosso sistema político; acima de tudo, porém, é meu sonho que elas
sobrevivam no voto que me orienta, seja, enquanto consciência da literatura.
Está aberto o debate.
[Apresentação, pelo autor, de Passos Perdidos, no dia 25 de Fevereiro, na Livraria Ferin, Lisboa.]
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