Este
livro de poesia é composto por quarenta poemas, elaborados como resposta aos
estímulos das deambulações do poeta, como se infere da leitura do título “Outras
Viagens”. Os topónimos poetizados por Ernesto Rodrigues são as cidades míticas
que enformaram a sua cultura, nessa busca interminável do ser por ele próprio
e, através dele, pelo outro, lato sensu,
pelo homem em busca da sua felicidade, que o poeta só consegue descortinar pelo
amor à língua, cultura e civilização.
A
obra abre com a composição poética que dá título ao livro “Do movimento
operário”, onde, para além de se fazer uma sentida homenagem ao honesto
trabalho com o qual o Homem ganhará o pão,
metaforizada no pai do poeta, se compara o ofício da forja, isto é, do
ferreiro ao ofício cantante, ou seja,
à ars poetica. Assim, para o eu
lírico, o processo alquímico é análogo, pois, tal como o ferreiro domina e
molda o ferro em brasa para dar forma aos mais belos e proveitosos utensílios,
o poeta funde, molda e dá forma às palavras para escrever o verso mais perfeito
que consiga auxiliar o leitor na sua autognose permanente.
O
segundo poema é um soneto, embora a arquitetura estrófica não seja a canónica,
uma vez que é composto por um dístico e três quadras, dedicado à mãe do poeta,
onde se patenteia o carinho e a ininterrupta preocupação maternal. Parece-me
que o dístico resultaria melhor no final, visto tratar-se da súmula do poema,
funcionando, assim, como chave de ouro[1].
Os
poemas deste livro podem agrupar-se, segundo creio, em dois grupos: o primeiro
marcado pelo tom mais intimista, ou seja, mais lírico, presente nos sete
sonetos e nas composições mais curtas, onde se ouve a voz dolorida do poeta murmurando
com saudade as doces alegrias pretéritas; o segundo, e mais amplo, compreende o
grande número de poemas narrativos, que, na minha ótica, se organizam em torno
de duas realidades, significativas a todos os níveis para o poeta, a saber: Europa,
e Portugal/Nação/Pátria.
No
primeiro grupo, encontramos textos sobre topónimos da Hungria e de outras
cidades e países da Europa, que enformaram culturalmente o poeta. Nestes poemas
de grande fôlego o tom épico alterna com o lírico, facilitando a comunicação com
o leitor.
O
seguinte reúne poemas sobre o país, assunto de questionação constante pelo
poeta, onde o tom épico secundariza, de vez, a voz lírica, nos quais o eu
poemático assume, sem ambages, a atitude prometeica da poesia. Esta atitude leva-o
a declarar abertamente o seu intento, que passa por provocar a reflexão no
leitor e levá-lo à ação, para que, em conjunto, se possa construir um mundo
melhor. Nem outra função pode ser cometida à poesia, a não ser inventar novas
realidades a partir do real concreto.
Permitam-me
destacar o poema épico «Outra Pátria», em jeito de súmula do que afirmei. Esta
composição apresenta a estrutura interna da epopeia, pois encontra-se dividido
em quatro partes: proposição, invocação, dedicatória e narrações. Aqui, creio que
o modelo é Camões, uma vez que as epopeias clássicas não apresentam, na sua
estrutura interna, a dedicatória. Poema singular e fulcral na arquitetura do livro,
onde imitador e imitado se confundem num derradeiro esforço de refundação da
pátria, que, por incrível que pareça, continua numa austera, apagada e vil tristeza. Não falo nas aproximações
estilísticas, realço, tão-só, os motivos e propósitos enunciados no incipit do poema: “A luz, a cor, o dom
de minha terra / canto, no tempo mau em que navego.” [p. 50, sublinhado
meu]. Resulta, também, feliz a decomposição dos versos da “proposição” em
elementos, realçando, desta forma, o ritmo e a compreensão da leitura. A
primeira estrofe da composição 4 da narração corrobora a ideia de privação e do
abatimento que persiste em acompanhar o país, no presente, como se percebe pela
interrogação com que termina a estrofe: “Que bravia sombra vem, / ronronante,
levando-me por sobre / sonhos gastos de pátria tão pobre?” [p. 61]
É,
ainda, pertinente salientar que este carme é antecedido pelos poemas «Língua», em
que lemos: “Eu comovo-me, povo, com teu fado, / a coragem de ser além de nós, /
tão pequeno, já solo embarcado, / para longes contactos, uns após // outros –
em sintonia cor e língua.” [p. 44]; «História de Portugal», no qual se
revisitam os acontecimentos fundadores da nossa identidade como Nação; «Pátria»,
onde “Chão, Deus, água, valor, língua, / são quinas de Portugal” [p. 46];
«Rimas Pobres», em dois andamentos: no primeiro, o poeta apresenta um retrato mórbido
do país, como se pode constatar pela primeira quadra: “A maldade tomou conta de
nós. / Prometia baixar impostos; dar / emprego a milhares; ser correcto; /
ajudar quem precisa, e avós.” [p. 47] A segunda parte encerra com um aviso e a
convocação à não resignação dos leitores/eleitores, para que não embalem no
falar melífluo dos governantes. “Mas, se fores // na conversa, em ti chorarás quanto
/ buscou evitar-te este meu canto.” [p. 47, sublinhado meu] O vate acredita
na possibilidade de a poesia, “este meu canto”, ajudar a transformar o mundo e
a tornar o ser humano mais cônscio; “Governo”, onde se faz uma crítica
desvelada à emigração e se apela à pátria, adjetivada de amada, para que, tal
como uma mãe, continue a sustentar os seus filhos: “O exílio // não é vocação ‒
pesa ‒, ó amada pátria: sê grande, mas em ti; cria bens;” [p. 48]. A composição
«Outra Pátria» precede o poema «Democracia», um longo poema narrativo
organizado em seis partes, no qual o poeta, recorrendo a adágios populares e a
frases feitas, continua a pintar um quadro do país com cores esmaecidas, onde,
apenas, é nítida a falta dessa mesma liberdade que dá título ao carme. O sujeito
lírico chega ao ponto de a apostrofar: “Sê, democracia, igual aos que te
desejam recta, cultivada.” [p. 64] Ato contínuo, o poeta continua a enumerar as
desventuras da democracia, recorrendo, despojado das demais armas, à poesia
como a derradeira salvação: “A ti cabe, amigo verso, tal / dedicatória (…) Por
ti começa, verso, sermos outros.” [p. 65] Mas, e apesar destes desejos e
incentivos para que a democracia seja o sol do país, a composição culmina de
forma disfórica, como se pode constatar pela leitura destes versos: “Tens, ó
democracia, sangue vil em ti. / Não digas, pois, que és democracia. Oh, / mas
que de ilusões o homem se sacia…” [p. 68]
Parece-me
que este conjunto de poemas sob o signo da portugalidade apresenta três
momentos. O primário, formado pelo conjunto de carmes que precedem «Outra
Pátria», nos quais o poeta reflete sobre o país no passado, no presente e “sem
futuro”. Por essa razão, ele propõe uma alternativa, seguindo no encalço de
Camões, que passa por reedificar uma «Outra Pátria», acreditando que o canto/a
poesia, como aconteceu com o épico, pode cumprir esse desígnio. Penso ser essa
a inferência que se pode retirar da leitura da estrofe que encerra o referido poema:
“Honrar quem nos comove: língua, chão, / dignidade; ser grande na incerta /
lida de viver. Um poema não / faz muito ‒ mas é cais, casa, desperta / asas do
sim, que dão cor ao lugar. / Um poema faz-se para criar.” [p. 61,
sublinhado meu]
Os
antepenúltimos poemas do livro, «Civilização» e «Cultura», reacendem a proposta
de Pessoa na Mensagem. No entanto, o
que em Pessoa era sonho, crença e esperança nesse quinto império capaz de
redimir o país, é, no presente, para Ernesto Rodrigues, desalento, pois “A
civilização é um mal sem cura; / sobrevivemos?” É, ainda, miséria e sujeição
“dependência, necessidades falsas – sonho de verbo-acto, adjetivo, / quando a
vida é nome pobre.” [p. 71] É, por fim, hipocrisia: “Cresce sociedade / no
equilíbrio certo / entre o ser e o ter. (…) Morrem / povos famintos. Voam /
palavras, que encobrem / os ares; e não vende / arte fora de moda”. [p. 74] A
deceção é total, como se depreende da interrogação “Que mundo nos calhou, / tão
desequilibrado?”
O
livro de poesia Do Movimento Operário e
Outras Viagens abre com um tom épico cantando as capacidades do homem que,
transformando o mundo, pelo trabalho, se transforma. E finda com o registo
lírico em tom autobiográfico no poema «Dono de mim, não perco nada. Séneca», e com
a crença nas potencialidades da vida humana em «A vida não é uma linha; tem»,
onde as últimas palavras constituem um repto à não resignação do ser humano e à
crença nas suas capacidades para transformar o mundo: “Faz / da dor teus pés de
lã, rasgando lagos; / do riso, praia nua, que afago.”
Epilogando,
este livro pode ler-se como uma sonata em três movimentos e em forma circular:
o primeiro, onde se faz a apologia épica do trabalho; o segundo, onde ecoam
algumas vozes resultantes da fadiga e do ceticismo emanados da espuma dos dias,
para, no último andamento, reforçar, de novo, as capacidades individuais do ser
humano.
[Segue
Acordo Ortográfico]
Norberto
Francisco Machado da Veiga
[1] O poeta discorda. A ‘chave de ouro’
está no princípio, nas origens, abre
para a existência; os demais versos, ou passos de vida, justificam essa relação
luminosa.
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