quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Literatura, sociedade e ironia em Passos Perdidos de Ernesto Rodrigues


Este confirmado romancista teve a coragem e a sageza de satirizar com grande mestria, acutilância e sentido de opalinidade histórica os tempos hodiernos, no geral, e os conluios que sempre se estabeleceram entre política e economia, em particular. Enresto Rodrigues revela ousadia ao abordar este tema premente na nossa sociedade e ao pôr a descoberto as teias que são urdidas no santuário da democracia e que têm enredado o país, desde as sementes de Abril até ao presente.
O título Passos Perdidos só é identificável pela fotografia do espaço homónimo do edifício da Assembleia da República que serve de capa ao romance. No entanto, este título é polissémico, uma vez que perdidos, ou melhor, gorados foram, também, os intentos dos corruptores.   
A obra abre com uma epígrafe retirada da Arte de Furtar, capítulo LX, “Dos que furtam com unhas políticas”, que dá, ab initio, o mote para a trama do romance e permite, segundo cremos, ao leitor inferir o tema a escalpelizar na obra.
Passos Perdidos erguer-se como uma obra fortemente estruturada, visto que é composto por dezasseis capítulos, agrupados em duas partes (cada uma com oito capítulos) ‒ note-se a simetria ‒, seguidos de um sucinto, mas elucidativo epílogo. Quanto à estrutura, o romance apresenta duas partes: a primeira subordinada ao título “A queda de um Anjo”, que, sem dúvida, faz ressoar na memória literária do leitor a obra homónima de Camilo. Outra ilação que o leitor facilmente estabelecerá prende-se com a associação de ambos os protagonistas. João Félix Filostrato é, de imediato, associado à imagem de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda. Contudo, esta associação perde nitidez com o título da segunda parte do romance, “Redenção”, indicando, desde logo, uma inflexão de conduta em relação ao modelo literário adotado por Ernesto Rodrigues. Temos, então, uma queda mais metafórica do que real, uma vez que a mesma não passa de um subterfúgio para desvendar o ardil, por um lado, e assumir as responsabilidades pretéritas, por outro.
Que Camilo e Eça, nomeado na obra pelo título do romance O Primo Basílio (p. 101), são vultos a quem Ernesto Rodrigues presta contínua e apurada homenagem corrobora-o, para além do que já foi dito, o facto de a intriga do romance ser narrada, nos onze primeiros capítulos, em analepse pela personagem João Felix Exposto. Este narrador/personagem é fruto de uma relação da juventude do deputado João Félix Filostrato, que, também, ignorava este facto. O ritmo cadenciado e preciso da narrativa, mais uma vez a fazer lembrar os dois romancistas do século dezanove, e o desenrolar programado da história prendem o leitor ao texto.
O tempo da ação, à semelhança do que acontece na tragédia, é bastante concentrado em, apenas, nove dias. O narrador desfila diante dos nossos olhos, como se de uma representação teatral se tratasse, os acontecimentos que, efetivamente, vão sendo apreendidos pelo leitor.
Porquê literatura? Porque o romance está pejado de referências literárias tanto explícitas como implícitas. Permito-me, apenas, recordar, não querendo ser exaustivo: Camões, Bocage e Garrett. Termino com a alusão à “Lacailândia”, isto é, Portugal, onde ressoam ecos da obra A Montanha da Água Lilás de Pepetela. 
Todo o romance é um retrato irónico da sociedade atual, lembrando a arma mais eficaz de Eça. É patente a intenção do autor em desvelar a realidade portuguesa atual, recorrendo a truísmos e a provérbios, por vezes alterados, na senda de Saramago, para provocar no leitor a reflexão, durante o ato de ler, e levá-lo, como é apanágio do teatro épico, à ação, no final da leitura.
Concluímos, asseverando que Ernesto Rodrigues não ficou aquém dos dois modelos literários, que se propôs preitear neste seu livro, uma vez que as personagens de Passos Perdidos não destoam das que Camilo perpetuou, nos seus romances. Por outro lado, qualquer leitor mais atento desta obra não hesitará em apelidá-la de queirosiana, devido à forma como a realidade portuguesa atual, filtrada pela ironia, se encontra plasmada nele.

Norberto Francisco Machado da Veiga
Doutor em Literatura Portuguesa,
Universidade de Salamanca

Sem comentários: