Os 40 anos da minha actividade literária fecharam com
jornada na Biblioteca Municipal, promovida pela Câmara e Academia de Letras de
Trás-os-Montes. Guardo em mim a presença de muitos ‒ desde logo, de amigos muito chegados há 47, 38 anos, e
menos: José Mário Leite, Alcides Rodrigues, João Manuel Neto Jacob, Marcolino
Cepeda, Hirondino Fernandes, Teófilo Valdemar, Mara Cepeda. Alberto Fernandes não
quis falar ‒ e só ele poderia falar do editor que também fui. O Pai
aguentou todo o dia, e foi aplaudido num momento de intervenção da Teresa.
Presidente do município e quatro vereadores abrilhantarm o acto. Discretas, directoras
do Teatro e do Museu do Abade de Baçal: Helena Genésio, Ana Maria Afonso.
Vários escritores.
Após discursos de Hernâni Dias, Amadeu Ferreira, José
Manuel Mndes e José Eduardo Franco ‒
este, à volta de Fernão de Oliveira e O
Romance do Gramático ‒, veio discurso
meu. Segue:
Inaugurei a
celebração de 40 anos de vida literária, hoje culminando em jornada para mim
comovente, com o lançamento de colectânea de poemas ‒ Do Movimento Operário e Outras Viagens ‒ e do romance A Casa de Bragança. Ora, em final de
capítulo deste, a propósito da justeza e bondade do rei D. Pedro para com a
cidade, escrevi o seguinte: «Pão e vinho eram, nestas terras, meia mantença; a
gratidão, vida inteira de transmontano, que no príncipe se revia.»
É de alma
cheia, e reconhecido a esta terra, que me cumpre agradecer ao executivo
municipal, relevando a interlocução da vereadora da Cultura e de Fátima
Martins. Com esta trabalhara já no executivo do Eng. António Jorge Nunes, que
também saúdo (grato pelo seu depoimento fílmico), sob cujo impulso nasceu a
Academia, agora dirigida pelo querido Amadeu Ferreira, ausente por razões de
saúde, mas bem coadjuvado pelo vice-presidente, que não se furtou a esforços
para esta realização.
A ideia,
contudo, desta selecta reunião partiu do realizador Leonel Brito, caucionada
por Teresa Martins Marques. Esta sabe bem que sou avesso a tais comemorações.
Nessa cumplicidade, moveu aquele montanhas, e gizou um programa de que só
parcelarmente fui tomando conhecimento. Propus uma manhã, em que falassem duas
autoridades: José Manuel Mendes, com quem estive na sua primeira direcção da
Associação Portuguesa de Escritores, que ainda capitaneia, e, por razão de
agenda, se fez substituir com um notável texto de síntese, e José Eduardo
Franco, director de um centro de investigação (de que sou director-adjunto),
cujo feito mais recente é a conclusão de um António Vieira em 30 volumes, em
que aparece a nossa Academia de Letras como patrocinadora. Tendo ele escrito
sobre o nosso primeiro gramático, editado a Gramática
da Linguagem Portuguesa (1536) e recenseado O Romance do Gramático, que editei em 2011, estava calhado para um
convite. Mas, entretanto, estava almoço combinado, no Solar Bragançano aonde, no fecho de A Casa de Bragança, também se dirigem as personagens ‒ que, às
vezes, é bom imitar; e, para justificar esse pão e vinho, alargou-se a festa,
na esperança de que a hora pós-prandial não faça adormecer a mesa-redonda.
Nesta,
estão amigos chegados ‒ Pinelo Tiza, Alberto Fernandes, Teófilo Valdemar, Mara
Cepeda, Marcolino Cepeda ‒, enquanto outros se viram incapacitados de acorrer,
dada a brevidade na preparação do evento. Poderiam estar no documentário ‒ e nomes
há que se repetem: Teresa Martins Marques, José Mário Leite, Neto Jacob,
Hirondino Fernandes ‒, mas, no entretempo, o guião remeteu para o momento
genesíaco de 1973 ‒ melhor, entre 1971 e 1974 ‒, sem prejuízo de um balanço
factual e estético por Amadeu Ferreira e José Manuel Mendes. Como A Casa de Bragança fechava a cúpula de
quatro decénios, versaram-na José Mário Leite ‒ amigo há 47 anos ‒, o editor
António Baptista Lopes e quem, intelectual maior agora com 92 anos, me dá a
honra de fartas conversas no Jardim da Estrela: José-Augusto França. Carlos
Pires publicou os meus primeiros versos, aos 14 anos, no Mensageiro de Bragança; nesse 1971, troquei o Seminário de S. José
pelo Colégio de S. João de Brito, conhecendo, entre leituras heteróclitas,
Desidério Martins e a malta d’O Grupo, título de jornal, de que, hoje,
só encontro António Ramos Preto e Alcides Rodrigues.
Estes, por
quem me chegaram os dilectos Alberto Fernandes, Victor Rodrigues, António
Augusto Coelho Alves, José Nobre, apanhei-os no então 7.º ano do Liceu
Nacional, quando aqui ingressei, no 6.º ano, colega de José Mário Leite
(abandonara o seminário) e Neto Jacob, que evoca a nossa equipa de andebol. Eu
estava mais para xadrez, livros e jornais, nesse 1972 publicando, já, versos no
Diário Popular, tal como Desidério
Martins, com que nos vimos antologiados por Maria Alberta Meneres em O Poeta Faz-se aos Dez Anos (Assírio
& Alvim, 1973). Neste ano, já dirigindo a página literária do Mensageiro de Bragança, estreei-me em
livro, culpado do incómodo que vos dou.
Inconvencional teve apoios fundamentais: Domingos Neto, autor da capa, e
Alcides Rodrigues, a quem ofereci texto-base, que (surpresa!), me devolveu há
semanas. Meu Pai foi decisivo: 500 exemplares custavam sete mil escudos;
pedi-lhe cinco contos, pois, entretanto, recuperei dois mil escudos, nas
vendas, e assim paguei a quarto mosqueteiro, Frei Henrique Perdigão, chefe das
máquinas nos franciscanos de Montariol, Braga.
Em noite
diluviana do mês de Maria, acolheu ele o noviço das letras, banqueteou-me em
mesa austera, levou aos granéis de Inconvencional
e ofereceu generosa cela. Revimo-nos 33 anos depois. Eu estava na Feira do
Livro e contava a Vergílio Alberto Vieira essa primeira ida a Braga, quando a
Teresa impôs subida. Boleados, dirigi-me à portaria: «Frei Perdigão ainda é
vivo?» Eis uma frase camiliana. Camiliano é o início de A Casa de Bragança: «Eu tinha oito anos e nada sabia de mim.» Vejam
o início de Mistérios de Lisboa: «Era
eu um rapaz de catorze anos, e não sabia quem era.» Do frade eu guardava
memória de ser de muitos dias. E o recepcionista, espantado: «Sim. Está além a
conversar com umas pessoas.» A sala era obscura; eu estava em vésperas de um
descolamento de retina. Vislumbrei um ainda poderoso frade, aos 69 anos, que,
encerrada a gráfica, explorava o húmus do convento em ervas e medicinas do
corpo. «Frei Perdigão?» «Sim. Quem me procura?» «Sou Ernesto Rodrigues.» «Não é
de Bragança, pois não?» Ele não aceitava que aquele cinquentão substituísse
retrato antigo, ousado como o menino do poema oitavo d’O Guardador de Rebanhos.
«Sim, sou.» «Não me diga!» E desatou no elogio da obra e criança que, fora de
horas, batera à porta do silêncio… Vivi cinco anos dentro das paredes de dois
seminários, mas tive naquele frade o único abraço caloroso de um ministro do
Céu. Não é pouco, se isso deram uns versos mal-educados, com palavras feias
manchando os caracteres da tipografia divina.
Não se
imagina, com efeito, o impacto desse livro na placidez de cidade perfilada
atrás das autoridades civis, militares e religiosas, cuja moral defendiam
legionários e informadores da Pide. Abria com “Poemas em café democrata”,
referência ao Chave d’Ouro e às potencialidades, também estéticas, da
democracia. Pasmo, aqui e ali, da virulência de juventude, cínica e politizada
nos termos, mas, sobretudo, no desconcerto entre título e texto (v. g., “Poema a olhar uma cabra”). Como
podia suportar um regime atrás das fragas – «e afinal a política está de cama»,
resumi – esses “Poemas em café democrata”, tanta desobediência e subversão?
Passeavam-se Mário de Sá-Carneiro, Pascoaes e Régio, sugestões de José Gomes
Ferreira, Eugénio de Andrade... Notava-se a queda para ‘histórias’, para uma
narratividade que me persegue; tinha imagens fortes: a «espera destilada / e cinzenta
da concepção», ou, encostados à Sé, vendo «Velha virgulada [que] passa na
estrada». Os colegas abriam na p. 41, onde se fechava aventura de uma infeliz,
socialmente explorada, a quem a hipocrisia chamava «puta reles». Era um crime
de lesa-poesia, como descrever as dores de parto de um animal, abrindo
naturalmente por «Tudo lhe doía», e, quando primeiramente saído no Mensageiro de Bragança, ser o padre
Manuel Sampaio chamado à pedra pelo senhor bispo Manuel de Jesus Pereira… Eis
um retrato, pálido embora, do quadro mental bragançano, nos idos de 70, e como
a arte mexe com a opinião, altera comportamentos, derrui e reconstrói formas de
expressão ‒ a começar numa capa insólita, que até se atrevia a dar lugar a um
preto…
Sou um
homem que acredita ‒ ou não estaríamos aqui; em segundo lugar, e fecho de
discurso, faz-me bem provar gratidão ‒ à autarquia, à Academia, a Leonel Brito,
ao editor do também último romance, Passos
Perdidos, e da minha
Biobibliografia em volume, bem como ao pessoal da Biblioteca, expondo livros
que nela ficarão ‒, provar gratidão, dizia, pois, conclui personagem de romance
inédito, «A ingratidão cria musgo no coração dos homens». É limpo e inteiro que
agradeço tantas atenções.
Almoço no Solar Bragançano deixou-nos com água na boca:
se não deixássemos a festa a meio, não havia mesa-redonda, moderada por António
Tiza. O filme de uma hora ficará como documento mais importante sobre
publicações desde 1969, como prova Biobibliografia
ofertada aos presentes. Da Bibliografia expus parte, em cinco vitrinas. Sobre
as primícias discorreramm Alcides Rodrigues, Carlos Pires, José Mário Leite,
Frei Henrique Perdigão, Desidério Martins, Neto Jacob, Teresa Martins Marques,
e, já em visões de conjunto da obra, José Manuel Mendes, Hirondino Fernandes e
Amadeu Ferreira, enquanto José-Augusto França curou de A Casa de Bragança, o editor António Baptista Lopes descreveu
relação antiga, desde Torre de Dona Chama
(1994), e António Jorge Nunes falou da relação entre o autarca-presidente e o
primeiro presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes. Auto-apresentação
de Passos Perdidos encerrou tarde e
jornada muito concorrida pela Imprensa.
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