domingo, 28 de maio de 2023

A Bebé Digital

 

Ernesto Rodrigues

 

A BEBÉ DIGITAL

 

I

 

1

 

Quando nasci, fiz três coisas: dei um grito, tirei uma selfie, coloquei-a no Facebook.

É verdade. Estava tudo preparado.

A mamã, que seguiu as quatro operações – o nascimento não foi a menos importante –, carregou no Adoro, deu os «Parabéns!» em comentário, acrescentou um emoji, partilhou.

– É o nosso primeiro bebé digital – disse uma enfermeira.

 

2

 

No segundo acto, acordei, pois tremia o smartphone.

A mamã já transferira a agenda pessoal para um telemóvel colorido e algarismos enormes.

O número da chamada não trazia nome.

– Não fale com desconhecidos – disse uma visita.

Cumprindo, adormeci.

 

3

 

Essa senhora educada e distante chamava-se avó, que é um nome muito comum.

Vieram várias avós à nossa sala, vozeavam no corredor, e as mães, dirigindo-se aos bebés – ainda analógicos –, sussurravam:

– Vês? É a avó!

Eles não viam, mas faziam uns trejeitos que pareciam sorrisos.

– Lindo menino! – diziam as avós.

– Linda menina! – disse a minha, para ser original.

 

4

 

Vestiram-me um babygrow cor-de-rosa, que perfumava o universo.

Chegaram estranhos – com quem não falei –, e, na cauda de tanto espanto, um velho de má cara, que a mamã apresentou:

– É o avô.

Olhou para mim, como se eu estivesse a mais, e disse:

– É a cara do sujeito.

A mamã baixou os olhos. A avó agarrou nele e saíram.

 

5

 

Esse tom incomodou-me: não quis mamar.

Encostada ao seio direito, sentia que algo batia no lado oposto.

Mudou-me para a esquerda e serenou.

Fui bebendo docemente, quase sem lhe tocar.

A mamã estava triste, aguada; eu já sem fome, e talvez mais curiosa do que triste.

 

6

 

Saímos na manhã seguinte, e ainda bem, porque aqueles lindos meninos eram mais ruidosos que um rádio em ondas curtas – que eu só já conheci em filmes.

A vovó, duplicado que compensava a falta do avô, cobriu-me num sedoso lençol rosa e sentámo-nos, com a mamã, no banco de trás de automóvel conduzido por motorista.

A vovó mandou parar sobre o mar e apresentou-me ao oceano, que corria para mim, esbranquiçado. Estava uma brisa agradável, que me fez tossir.

A mamã, que não saíra, gritou interjeições, e seguimos para vivenda de flores, onde a custo desabrochei entre aplausos da criadagem.

 

7

 

Fui deitada numa cama com grades, cama invadida por botões que comecei logo a premir.

Eu crescera da noite para o dia.

Em frente, havia um ecrã panorâmico, que quase podia tocar com os dedos dos pés. Servia também de espelho. Via-me, assim, de corpo inteiro, nua ou já num pijama em veludo, elegante como a música do telemóvel que me acordava.

 

8

 

Era um desconhecido. Bastava tocar uma tecla e respondia.

– Sim? – ouvi. Não respondi. A música da voz prosseguiu: encantava-me.

Ao levantar a cabeça, vi no ecrã o que surgia no visor: um senhor, «Sim?», que me olhava, cabeça alta e limpa, ao lado da minha selfie.

«Eis o sujeito», pensei. A ligação caiu, subitamente.

 

9

 

Não fiquei muito tempo com o brinquedo: entrando veloz, a vovó arrancou-mo das mãos.

Pior: agarrou em mim e depositou-me num outro quarto, longe do futuro e seus desafios.

A mamã protestou, mas calou-se logo. Eu, não: chorei, como os actores.

Acorreram empregadas, tristes comigo; então, a mamã ergueu o indicador direito, não como ordem, mas sinal. Compreendi.

 

10

 

Vieram horas perdidas diante de uma televisão antiga, que recebia instruções de um leitor de videocassetes. Era muito complicado trocar de comandos.

Vi filmes antigos, não só impróprios para a idade, mas que logo me adormeciam. Eu não sabia que acabavam de vencer a Hiperactiva. Assim me chamavam.

Como não gosto de intervalos (e acabei de fazer um), a mamã avançou uma fita, para, logo, stopar – «Stop», disse – numa cena doméstica, em que um jovem elegantíssimo a beijava.

– É o papá – disse ela.

Ainda hoje me arrependo desta saída:

– Digitalizas?

Como ela sorrisse, acrescentei:

– Posso vê-lo?

– Um dia.

 

11

 

O castigo não durou muito. Quando regressei ao meu quarto, o mundo estava mudado. Em vez de velhos filmes ou histórias de «Era uma vez», agora, regulavam a temperatura da cama, de modo a entrar numa bolha de bem-estar, em que adormecia.

Na verdade, a mamã regulava as horas de sono, para, de três em três, ou de quatro em quatro horas, acordarmos, fosse para o biberão, fosse para outros banquetes. Uma pequena balança digital controlava o que eu comia; outra, na casa de banho, pesava a minha saúde. Mas fora do quarto tinha de ficar o smartphone, «por causa das radiações». Nunca vi nenhuma, mas Deus também não se vê: fará igualmente mal?

 

12

 

Indiferente às radiações e a Deus, custou-me não ter comigo, por vezes, um tablet de última geração, mais novo do que eu, que assobiava, bem-disposto, e foi a minha primeira universidade.

Numa noite em que o escondi, escrevi no Skype o número do telefone desconhecido (que memorizei no berçário) e saiu-me quem vira no filme, como se me esperasse.

– Olá! – ouvi, mas logo baixei o som.

– É o papá? – perguntei.

– Sou.

Não sabíamos como continuar.

 

13

 

Fiquei ali, a olhar, entre saudosa e ensonada, até que o despertador me acordou às três da madrugada. Veio a mamã com uma papa de maçã.

O papá continuava ali, sorrindo.

– Olá! – disse ela.

– Queres? – ofereci.

Estava cansado, mesmo de quem esteve quatro horas a olhar para mim. Respondeu:

– Obrigado. Dorme bem.

 

14

 

Mal comi; não conseguia.

Quis logo adormecer, esconder-me, esquecer, enquanto a mamã ajeitava o cobertor.

Chorei, pela primeira vez.

A história não podia acabar assim.

 


 

II

 

1

 

Passei três anos sozinha no quarto. À porta, colocavam mesinha de rodas e tabuleiro fumegante.

– Estou em greve – respondia.

 

2

 

Um dia, irrompeu o avô:

– Em minha casa, não há greves, nem meias greves!

– Eu disse greve, não greves. E meias greves não sei o que possam ser.

Tirou uma exclamação do nariz e retirou-se, furioso.

 

3

 

Enquanto não me decidia a regressar à mesa «paramentada em silêncio» (dirá a mamã) da sala de jantar, comecei a vasculhar a biblioteca, assente em três portas repletas de variedades. Este quarto era o meu novo castigo, como já fora da mamã, respondendo que os livros faziam mal à saúde.

– Eu sei: têm ácaros – sentenciou o avô. – Ao menos, ela tem companhia.

 

4

 

Entre companheiros invisíveis, remexi discos, cassetes, cds, disquetes. Era um mundo novo, há muito encerrado pela mamã.

Gira-discos não havia. As cassetes continham músicas roufenhas e uma ainda se desfiava no gravador. As videocassetes multiplicavam títulos de filmes, que dariam para uma velhice inteira. Outras, minúsculas, escoltavam câmara de vídeo, com uma dentro. O carregador ainda estava na máquina, pelo que bastou ir à tomada e aguardar.

Liguei-a e vi a mamã fotógrafa, em poses, recebendo indicações de uma voz algo distorcida.

 

5

 

Nas outras portas, além de diapositivos, microfilmes e negativos, havia centenas de fotografias, algumas em dois álbuns.

Num deles, o realizador, barbudo, diferente do que eu vira.

O segundo álbum era dedicado à gravidez, seja, ao meu desenvolvimento. O olhar descia sobre bola crescendo, como Virgem representada num quadro por cima da cama.

 

6

 

Os livros não eram muitos, e alguns repetiam-se. Semelhantes em cores e formatos, percebi, subitamente, que uma frase estava em todos. Era o nome do autor.

 

7

 

A mamã entrou no instante em que eu acariciava esse nome.

– Como se lê?

– Ensino-te a ler, se não fizeres greve.

Silabou o nome próprio; apelido. Na base dessas letras, e recurso às que completavam o alfabeto, aprendi a ler num abrir e fechar de olhos – mais num fechar de olhos, conduzido pelas sílabas do meu autor.

 

8

 

Espantei o universo ao regressar à mesa familiar.

A mamã também espantou, inesperadamente loquaz, na obrigação, dizia, de vencer a inacção. Trocava a música dos anos 80 (avô aplaudia) por computador de secretária, para valorizar-se.

Avô, desconfiado.

 

9

 

Como me mostrasse simpaticamente indiferente ao processador, hardware, software e outras ferramentas da mamã, fui brindada com uma playstation e jogos de guerra. A avó juntou um cd-rom sobre pintura flamenga, «para educar a sensibilidade».

– Não sou insensível – respondi, sem jeito.

 

10

 

As disquetes guardavam um mundo secreto, impossível de visitar. Preferi recuar ao preto e branco das fotos, prisão analógica de que não saíamos, pois também era impossível fugirmos dali.

Felizmente, ao contrário de nós, grevistas, os empregados tinham folgas.

 

11

 

Lembrei-me, por isso, de escrever uma carta, melhor, um cartão, que o motorista trouxesse consigo e entregasse às ordens da mamã. Tinha de ser uma letra de criança.

Ela informou que o mordomo vigiava saídas, mais por causa dos talheres de prata, e que, sim, o sobrescrito não podia ter o nome do destinatário.

– Aprendeste a escrever?

– Quase.

– E sabes o que dizer?

– Papá.

 

12

 

O mordomo deu carta branca ao novo motorista, durante semanas.

Enfim, no regresso do estrangeiro, o papá reuniu este insólito correio, fez uma espera ao portador, convidou-o a subir e perguntou:

– Tem filhos?

– Tenho um.

– Fazem revista?

– Só à saída.

– Peço-lhe que entregue este telemóvel.

 

13

 

Este diálogo estava a ser gravado no smartphone bem chegado. Nunca elogiei tanto a nanotecnologia. Navegávamos; conversávamos em surdina com uma cara lavada.

Onde escondê-lo?

Num livro em segunda fila.

 

14

 

Saía da mesa e refugiava-me no quarto. Vinha logo a mamã, fechando-nos à chave.

Faltava a última lança de liberdade, que exigiria outro calvário.

 


 

III

 

1

 

Sozinha, digitalizava músicas, filmes, fotografias. Os decibéis dos videojogos afastavam visitantes, não o silêncio em que ressuscitava aquele passado. A mamã assistia, às vezes – comovida ao ver a sua história de amor vertida em sistema binário. Nada de impressoras e portáteis, não fôssemos levantar suspeitas.

 

2

 

O ruído do quarto, a conversa à mesa sobre microprocessadores, a nossa simpática indiferença, tudo isso, porém, levantou suspeitas no avô.

Um dia, ao almoço, sujeito que nunca vimos invadiu o quarto e desviou o telemóvel.

 

3

 

A vida seguiu, como se nada fosse.

Despediu-se o motorista.

Estávamos sem saída.

 

4

 

Cometi uma maldade: estraguei a velha televisão.

A avó, transtornada, culpou as empregadas da limpeza, e, como o mordomo as desculpasse, ela refugiou-se no homem que ali estivera. Percebemos tudo.

 

5

 

A nova televisão chegou na manhã seguinte.

O avô não via; a avó, pouco. Dei-me ao luxo de, na sesta deles, correr canais.

Um deles deixou-me pasmada: via-me a correr no jardim, em dias diferentes.

Recordava-me de um drone a sobrevoar, e talvez fosse isso.

 

6

 

Fiz do jardim segunda morada, em actividades saudáveis, de que o avô desconfiava. Sobretudo, porque o drone se aproximava demasiado.

Quando quis explorar interconectividades da televisão, esta ficou reduzida ao canal preferido da avó.

Culpei o homem invisível.

 

7

 

Não sei quanto tempo amodorrei. A perfazer seis anos, vivera já imenso. Ia entrar na escola.

– Terá aulas em casa – cortou o avô.

– E quem escolhe? – silvou a mamã.

– A criança.

Ela perguntava que professor iria escolher o pai; ele entendeu ao contrário, e ainda bem.

 

8

 

Colocou um anúncio nos jornais.

Pré-seleccionou os mais velhos, restando sete, encerrados pelo mordomo na sala de estar.

Um a um, dirigiam-se à menina, sentada de costas, no meio do jardim, com avô, avó e mamã a uma distância inaudível.

 

9

 

O último esperou duas horas.

Ao sentar-se, sobressaltou-se a mamã.

 

10

 

– Os últimos serão os primeiros, lá diz a parábola – disse o avô. – Estudemos as condições.

Dirigiram-se ao gabinete.

 

11

 

O mordomo acompanhou-o à saída, voltava o avô.

– Muito cordial. Deu-me um forte aperto de mão e, em forma de agradecimento, demorou a mão direita no meu braço esquerdo.

– A menina merece – concluiu a avó.

 

12

 

Fechámo-nos no quarto. Abraçadas, em alegria.

– Como descobriste?

– Sorriu-me, entre lágrimas – respondi.

Foi um resto de tarde magnífico.

 

13

 

As aulas eram discretamente vigiadas, sem nos perturbarem. Como o fim do primeiro período chegava ao Natal, fiz questão que o professor viesse à ceia de Natal e ao almoço seguinte.

O final do segundo desembocava na Páscoa, e, como deixara crescer a barba, a avó via nele Jesus Cristo subindo ao Calvário.

Ao avô trazia más memórias aquela barba, mas, na harmonia geral, em si crescia perturbação. Espantou-nos, pois, em domingo de ressurreição:

– Senhor doutor, agradeço ter-me reconciliado com um passado de vingança.

 

14

 

Vieram doze anos serenos e entrada na universidade. Nesse Verão, casaram.

Ao discutirmos microchips sob a pele, ele sussurrou:

– Era o que trazia o avô no braço esquerdo desde a nossa primeira tarde. Tornei-o humano, mas a arte está no comando à distância.

Sorri baixo, passando as mãos pelos braços.

– O teu, filha, está no coração.

 

Sem comentários: