sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Arnaldo Saraiva lê O BOM GOVERNO

Arnaldo Saraiva, Professor Emérito da Universidade do Porto, sobre O BOM GOVERNO: 


Habituado à leitura dos seus sérios, sábios e eruditos ensaios sobre livros, autores e teorias das literaturas da Europa e das Américas,  foi com enorme surpresa mas também com intenso prazer que li este seu último romance. Do princípio ao fim não parei de rir com o cómico de nomes, ou nomeações, a começar pela de alguns ministros, números, ou enumerações (pelo menos até cem), hipérboles, trocadilhos ("mama caprina"!), formulações divertidas ("o governo levantou-se da cama"..., "esqueceu o carácter em casa"...), mundo às avessas ( governo à noite, pequeno almoço à hora de jantar...), personagens caricatos, episódios grotescos, cenas gagas. Mas em nenhum momento a narração ou o narrador parecem querer produzir artificias efeitos cómicos, porque parecem empenhados em mostrar com naturalidade e verosimilhança, que não é contrariada pelo hiperbólico e pelo alegórico, o mundo ou os mundos da política e da governação, com a sua propaganda, os seus rituais, as suas reuniões, as suas eleições, as suas traições, e com os seus presidentes, ministros, ex-ministros, sem-ministros, secretários, secretários adjuntos, subsecretários, assessores, mas também com os seus repórteres, belas acompanhantes, guarda-costas, porteiros, etc. Creio que desde o Eça não se produzia em Portugal  um romance em que de forma tão sugestiva e compacta se mostrasse  a teatralidade, a hipocrisia, a vaidade, a ignorância, a leviandade, a vacuidade, o deboche, o despautério de boa parte dos nossos governantes, pelo que se compreende a invocada e irónica  conclusão de Goethe.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Ernesto Rodrigues, O BOM GOVERNO


 

Ernesto Rodrigues, O BOM GOVERNO

(Lisboa, Guerra & Paz, 2024)

 

Um governo de cem ministros trabalha de noite e levanta-se às vinte horas, para ouvir o primeiro-ministro no telejornal, que os cidadãos não vêem. Cada gabinete tem cem funcionários, mas nenhum pode ser mais alto do que o seu ministro. São titulares dos Negócios Estranhos, da Propaganda, do Betão, da Apneia, dos Equídeos, das Boas Intenções… –, enquanto vendem a província ao estrangeiro.

Sobressai o da Alta Cultura ou do Verniz, octogésimo no elenco: compensa a humilhação do lugar com pentear-se e vestir vincadamente e, em cada inauguração, levar a tiracolo uma assistente, mais nova do que a anterior, até parecerem bisnetas.

Após 50 anos de sono e ignorância, ele será primeiro-ministro, ajudado pelo narrador, que, no incumprimento de promessas, se afasta, antes de chefiar um executivo sóbrio, visando o melhor governo, segundo Goethe: «O que nos ensina a governar-nos a nós próprios.»

Uma distopia? Sim. Tão séria, que se confunde com a realidade que nos calha tantas vezes em sorte.

…E, no quadro de uma literatura portuguesa educada e sem ‘graça’, o leitor perceberá como a ironia constrói uma obra inteligente.