Ficção,
história, pedagogia e atualidade
no
enciclopédico O Romance do Gramático
de
Ernesto Rodrigues
Norberto
Veiga
Nada consola mais o autor de um romance do que a
descoberta de leituras
em que não havia pensado, e que os leitores lhe
sugerem.
Umberto Eco, Porquê
«O Nome da Rosa», Difel, Lisboa, 1984, pág. 11.
Começo
este breve apontamento sobre o enciclopédico romance de Ernesto Rodrigues, O Romance do Gramático (Gradiva, 2011), tecendo alguns
comentários sobre os elementos paratextuais que o compõem e que estão
intimamente relacionado entre si, laborando para formar um todo harmonioso em que acabou por se traduzir o livro.
Assim,
segundo creio, encontramos na obra seis paratextos, a saber: O título, a
“Notícia” (5-10), a epígrafe (11), o “Parecer” (141-144), estes na primeira
parte da obra; as “Advertências” (149-150) e, por fim, o “Argumento” (151-156).
Todos
estes elementos concorrem para a estrutura, fortemente programada, da obra, mas
são também significativos, segundo Genette[1],
cumprindo capitais funções para a descodificação da mensagem que o autor quer
transmitir ao leitor. O título do romance cumpre a missão de apresentar, desse
logo, o assunto [Genette, 1997: 76]. Contudo a identificação não é completa,
mesmo tendo em conta a capa do livro, na qual aparece a página de rosto da obra
de Fernão de Oliveira. Desta feita, só com a leitura da epígrafe, retirada da Gramática da Linguagem Portuguesa, é que
o leitor pode, sem margem para dúvidas, descodificar o título [cf. Genette, 1997: 144-160]
Ato
contínuo, encontramos o que para mim é o principal paratexto, “Notícia” (5-10).
Começo por referir que, na minha ótica, o romance O Nome da Rosa[2] de
Umberto Eco é o hipertexto, segundo Gérard Genette, Palimpsestes, desta obra de Ernesto Rodrigues. Desde logo, pelo
recurso ao manuscrito e à efabulação que o mesmo permite estabelecer entre
realidade e ficção, tornando, assim, a narrativa verosímil [cf. Eco, 1980: 11-21]. É, pois, neste
elemento paratextual que o autor/narrador explica e introduz o leitor no texto.
Aqui são audíveis ecos autobiográficos do escritor: “Eu tinha, como Fernando,
vinte e cinco anos” (p. 10). Este texto informa o leitor do tempo histórico do
romance, que é o século XVI, e, ainda, do protagonista do mesmo (o gramático
Fernão de Oliveira). Saliento, de novo, o valor matricial deste paratexto para
todo o romance, pois cria a ilusão de que, em pleno século XX (tempo da escrita),
o autor/narrador recebe um documento entregue pela personagem feminina na Hungria,
que vai ser, apenas, atualizado. Ora, esse manuscrito vai materializar-se na
parte consubstancial do romance, intitulada Recto
/ Index.
A
primeira parte do livro termina com o paratexto “Parecer”, que, segundo creio,
serve dois desígnios: o primeiro, certificar a historicidade da ação narrada,
uma vez que, na época, todos os livros tinham de ter o parecer prévio do censor[3]; o
segundo facilita a construção ficcional da obra, a nível da legitimação do
pergaminho, pedra-angular da primeira parte do texto. Termino com a referência à
desconstrução textual do manuscrito, servindo-me das próprias palavras do
autor: “Pareceu-me ser necessário advertir que o Autor usa de uma ficção
que não é poesia e fingimento.” (141, sublinhado meu)
Passando
aos dois paratextos da segunda parte, encontramos, a seguir ao subtítulo «Uma
História Mal Contada» e da referência espácio-temporal «1510-1581, Lisboa,
Portugal», o paratexto “Advertências”, que inicia com a citação de Filippo di
Strata: “É virgem esta pena, a imprensa, meretriz.” (149) É um parecer
favorável à publicação do livro; note-se posição contrária do censor no “Parecer”
da primeira parte da obra. Destaco, ainda, a cristalizada forma, usada pelos
censores do século XVI: “Este livro é digno de se imprimir, e o autor mostra
nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas.” (149) [cf. Os Lusíadas] Abro um pequeno parênteses
para realçar a posição do autor sobre a obra, que vai na senda da que defendo,
“tela e figura desfazem-se, ao tocá-las visão única.” (150) Assim, a “tela”,
segundo creio, corresponde à primeira parte da obra e a “figura” à segunda, que
apenas associadas fazem sentido, formando uma acabada obra, ou, nas palavras do
autor, “visão única”. (150) Julgo, também, interessante registar que essa
unidade é fortalecida pela existência destes dois “pareceres”, pois, se a
primeira parte termina com um não que parece definitivo, a segunda inicia com
um sim que tudo promete, restabelecendo, assim, a unidade do fio narrativo.
Por
último, encontramos o elemento paratextual “Argumento” (151-156), que legitima,
contextualiza, esclarece e encerra as questões escalpelizadas nos textos anteriores,
que tenho vindo a dilucidar.
Arrumadas
as questões paratextuais, passo a apresentar a minha proposta de “leitura”
deste romance tão enciclopédico e “culto”[4].
Para o efeito, decidi estabelecer oito tópicos, que enumero: 1. romance
fortemente estruturado, 2. romance histórico, 3. unidade na diversidade, 4.
ficção versus realidade, 5. pendor
pedagógico, 6. presente da escrita, 7. louvor e defesa da Língua Portuguesa, 8.
jornada humana.
1. Como já tive ensejo de referir, O Romance do Gramático de Ernesto Rodrigues é uma obra fortemente organizada
tanto a nível da estrutura externa como interna. Assim, externamente, a
primeira parte ‒ que responde pelo título de “Recto/ Index”, situando-se a intriga, em termos de espaço e tempo,
em 1532, em Bled, na Eslovénia ‒ é composta por quinze capítulos, mais os
paratextos mencionados acima. A segunda por sete passos que reenviam a memória
cristã do leitor para as estações da via-sacra de Jesus identificando a existência
terrena, neste caso, a vida de Fernão de Oliveira, como um rol de trabalhos e
canseiras, onde a única certeza possível é a da morte, ou, como assevera o
autor, a “Queda”, último capítulo do livro. Esta queda, com ressonâncias de
Camus, que representa metaforicamente a derrota do homem na luta contra as
forças visíveis e invisíveis do planeta, é personificada, no romance, pelo
gramático Fernão de Oliveira, que por sinédoque representa todo o ser humano.
Corroboram esta leitura as seguintes passagens do texto: “Porque o justo cairá
sete vezes, verdade é que ele não era tal, se mais vezes não caiu.” (159); “Porque
o justo cairá sete vezes [cf. Provérbios
24:16] verdade é que nenhum deles era tal, se mais vezes não caíram.”
(227, sublinhado meu) Constata-se, assim, que há uma evolução do primeiro passo
para o último, isto é, passa-se do individual para o coletivo, ou melhor, do
“eu” para o “nós”. Daí que se entenda, agora, que Oliveira representa, no final
da obra, todos os mortais.
Quanto à estrutura
interna, ela é assegurada pelos vários paratextos, escalpelizados atrás. A
primeira parte inicia com os conselhos ao leitor no apartado “Notícia” e a
segunda em “Advertências”, seguida de “Argumento”, que funciona como leitmotiv da última parte.
2. O leitor mais distraído não terá dificuldades em nomear este romance de “histórico”, mesmo tendo em conta toda a carga subjetiva que o adjetivo transporta. Creio que o objetivo do autor passa por criar um esboço o mais nítido possível do primeiro gramático português e, desta forma, reabilitar a imagem, por vezes, tão maltratada pela investigação histórico-literária, de Fernão de Oliveira. Outra razão que poderá ser convocada é o facto de ambas as partes/histórias se situarem cronologicamente no século XVI, um século a todos os títulos significativo. Outro elemento histórico encontra-se na alusão do ataque Otomano à Hungria que foi previsto por Sá de Miranda, introdutor do soneto em Portugal. (18) Este acontecimento é relatado com mais pormenor na página 55, na qual se enaltece a luta contra o infiel, que queria tomar a Hungria. Assinalo, ainda, as várias referências ao Concílio de Trento e à sua ação no mundo religioso e a figura do Infante Santo Fernando cativo em Fez, por razões de Estado, que, sem dúvida, enformam historicamente a obra. (20)
2. O leitor mais distraído não terá dificuldades em nomear este romance de “histórico”, mesmo tendo em conta toda a carga subjetiva que o adjetivo transporta. Creio que o objetivo do autor passa por criar um esboço o mais nítido possível do primeiro gramático português e, desta forma, reabilitar a imagem, por vezes, tão maltratada pela investigação histórico-literária, de Fernão de Oliveira. Outra razão que poderá ser convocada é o facto de ambas as partes/histórias se situarem cronologicamente no século XVI, um século a todos os títulos significativo. Outro elemento histórico encontra-se na alusão do ataque Otomano à Hungria que foi previsto por Sá de Miranda, introdutor do soneto em Portugal. (18) Este acontecimento é relatado com mais pormenor na página 55, na qual se enaltece a luta contra o infiel, que queria tomar a Hungria. Assinalo, ainda, as várias referências ao Concílio de Trento e à sua ação no mundo religioso e a figura do Infante Santo Fernando cativo em Fez, por razões de Estado, que, sem dúvida, enformam historicamente a obra. (20)
Todo
o “Argumento” da segunda parte tece um retrato de Lisboa que é atual, embora se
reporte ao passado (152). Também, a narração do processo (187) que a Inquisição
moveu a Fernão de Oliveira (sendo tudo falso e as testemunhas orquestradas
contra ele), para além do indubitável valor histórico, pode ser lida como uma cáustica
crítica à administração da justiça nos tempos hodiernos.
Nomeio,
por último, não querendo ser exaustivo, a grande peste que assolou Lisboa, em
1569 (narrada no sexto passo, 207), onde encontramos expressões como “grande
mortandade” e “Se conto assim é porque fugi, fui mau, sobrevivi.” (208), que,
segundo penso, remetem para a primeira parte do poema “Nós” de Cesário Verde.
3. A estrutura bífida
do romance pode ser deduzida numa primeira leitura, até porque o escritor não
se cansa de o repetir em várias passagens.
Como já referi acima, o
romance apresenta duas partes: a primeira intitulada “Recto / Index” e a
segunda denominada “Verso / Uma História Mal Contada”, onde a ficção anda de
mãos dados com a realidade/verdade histórica. Registe-se o facto de o
dominicano que veta o lançamento do livro “Recto / Index” ser o mesmo que narra
o “Verso / Uma História Mal Contada,” segunda parte da obra. No entanto, a mão
do copista, ou melhor, do autor, é visível ao longo da narrativa, como
patenteia o excerto seguinte: “Digo que a escrevo aos vinte e cinco anos, com
factos históricos que só ocorreram depois, e um amigo, Duarte Nunes, acabado de
nascer (em 1530?), completará, se quiser”. (139) Neste capítulo, que é o último
da primeira parte, narrado na primeira pessoa, Fernão de Oliveira fala, em
jeito de autobiografia, das obras que já publicou. (139) Quero, também, destacar
a preocupação do gramático em escrever “este discurso em romance” (idem), o que
enalteceria e ajudaria a Língua Portuguesa a autonomizar-se e a impor-se,
definitivamente, ao Latim. (139, 40) Veja-se, a este propósito, o discurso
parentético sobre a sua obra A Arte da Navegação,
que passo a citar: “Perdeu-se;
mas também era em latim…” (140)
Outro
argumento que posso convocar para a unidade da obra cumpre-se nesta passagem da
segunda parte do romance: “Do que Fernando dá nota […] no recto de um
manuscrito, que desejava nosso primeiro romance em prosa.” (154,
sublinhado meu) Não será difícil passar o determinante do plural para o
singular, corroborando, em meu juízo, o “estratagema” do manuscrito e toda a
sua envolvência, como atrás demonstrei. Acrescento, apenas, que estas e demais
passagens escalpelizam a intenção, a sageza e a ars deste soberbo escritor/romancista que é Ernesto Rodrigues.
Encerro
este tópico carreando mais três exemplos. O primário diz respeito à menção de
um filho que Oliveira não conheceu, com que termina a primeira parte do texto:
“Com este manuscrito de Index,
encontrava-se roupa de mulher – a qual guardava (Deus da Salvação!) sinal
evidente do filho que ele não conheceu.” (144) A chave deste mistério o leitor
só a encontrará no final da segunda parte. Também as referências às missões em
que partira Fernando de Oliveira são idênticas em ambas as partes, a saber:
preferia ruas de Castela à cela lusitana, fuga amorosa e razões de Estado em missão
secreta (154). O derradeiro segmento textual que convoco encontra-se na página
170, quando se relata a história do crocodilo que emprenhou uma jovem: “Não
seria ele o crocodilo? Judite, a mulher formosa? E labirinto, aquele labirinto
e romance da sua vida, que sumulou em poucos dias de Setembro de 1532, como
diz?” Este excerto, para além de estabelecer a ligação com a primeira parte do
romance, apresenta-nos, igualmente, traços autobiográficos do protagonista da
obra.
4. Todo o romance, e
por defeito o histórico, assenta na simbiose entre realidade e ficção,
tornando, desta forma, o texto verosímil e a intriga mais apelativa e
interessante para o leitor. Digamos que à ficção cabe a função de embelezar e
suavizar (semelhante à mitologia nas epopeias) os dados ou a verdade histórica.
É, sem dúvida, desta luta titânica que germinam os grandes e imortais romances.
Dado
que sobre a vertente/realidade histórica já me pronunciei, o meu enfoque
centrar-se-á, agora, na ficção. Atendendo ao que já foi escrito, não devem
subsistir dúvidas de que estamos na presença de um romance autobiográfico. A
obra assenta na tríade: Eu / Fernão / Laura. (cf. Petrarca) Estranharão, porventura, o pronome pessoal. No
entanto, o escritor/Ernesto Rodrigues desvela-se na obra nas múltiplas alusões
aos seus dados biográficos, que, como são deveras conhecidos, dispensam-me a
obrigação de os apresentar.
Outro
dado ficcional, de grande relevância para a organização interna da primeira
parte do romance, materializa-se na figura do “cristo do ano”. Neste momento, o
narrador, recorrendo à ironia, apresenta-nos uma outra visão de Cristo, que nos
traz à memória o capítulo III de A
Relíquia, de Eça. Refira-se, a este propósito, que o autor se revela um profundo
conhecedor do texto bíblico, nas várias referência, citações e alusões que dele
faz, associadas à figura de Cristo [cf.,
a título de exemplo, as páginas 36, 45, 47, 48 e 92]. Cristo, ou melhor, os
vários concorrentes ao concurso “cristo do ano”, é-nos apresentado como um
simples humano que vagueia em alto mar em vez do deserto até à “queda
definitiva”. Também, o cristo-político, que chega com a sua assessora e o seu
guarda-costas (60), configura uma alusão clara e sarcástica à prática democrática
quotidiana. A Igreja e os seus dirigentes também não são poupados, quando
lemos: “Cristãos, é certo, mas nada apostólicos.” (143)
Refiro,
de seguida, alguns dados que auxiliam o leitor a desfazer a teia urdida, de
forma ficcional, pelo autor, quando divulga as datas da biografia de Fernão de
Oliveira (139).
No
capítulo catorze, “Índice”, que pode ser lido como o desenlace da primeira
parte, o relator desfaz o tecido, qual Penélope, que tecera no início e revela
ao leitor que tudo não passou de uma ficção: “Ficámos num ah. O leitor,
perplexo, que não era para menos. Fora enganado.” (130) Este tópico é retomado
no início da segunda parte, corroborando o que afirmamos acima sobre a unidade
da obra, em que o narrador interpela diretamente o leitor, à semelhança de
Garrett nas Viagens…, ao afirmar: “Eu
avisei-te, leitor.” (149) O autor/narrador, no seu intuito de codificar o texto,
para de certa forma ofuscar a lente, joga com a escrita, afirmando: “se não
escondesse, entre anátemas ao leitor, é que a minha vida não faria sentido.”
(185)
Outro
aspeto ficcional que enriquece o texto encontra-se nas razões que presidiram à
saída de Portugal de Fernão de Oliveira, uma vez que, sendo múltiplas, não são
claras. Para além das três, já referidas, menciono, ainda, vigiar a Europa que fazia
concorrência a Portugal, em especial na arte de marear. (154)
O
derradeiro aspeto ficcional que indico prende-se com o censor que redigiu o
“Parecer”. Parece-me que, para acentuar mais a ficção, o leitor é conduzido ao pensamento
de que este censor poderá ser o mesmo Frei Bartolomeu Ferreira que escreveu o
parecer de Os Lusíadas e que, segundo
reza a lenda, teria um gosto literário apurado, caso raro nessas funções, tendo
salvado vários livros da Inquisição, no século XVI. Por fim, no sétimo passo, o
narrador, ao referir-se, de forma condoída, ao conceito de fim da pátria, em
1580 (225), reafirma, dando a palavra a Fernão de Oliveira, que o que permanece
é a escrita e, dentro desta, sobretudo a ficção: “A ficção consegue esse
milagre. Transformou-me no que não tive coragem de ser, por cobardia, dando-me,
pouco antes de morrer, a coragem de me salvar aos olhos de dois amigos.” (226)
5. Outra característica que ressalta à vista, da leitura desta obra, é o seu pendor moralizante ou pedagógico, sempre orientado para a positividade da vida. O narrador começa por afirmar: “A dúvida marcou-me.” (17) E acrescenta: “Tem de haver razão forte para se continuar na mentira.” (17) A importância destas sentenças prende-se com a filosofia de vida que podem dar ao leitor, auxiliando a sua autognose e o conhecimento do mundo em que vive. Na página 28, encontramos: “Tem cada homem seus caprichos; e, se pudermos, não sejamos infelizes.” Aliás, a procura da felicidade é o ideal de todo o ser humano. A felicidade associada à tranquilidade e à paz de espírito auxiliam a caminhada terrena, como lemos nesta passagem: “É injusto não viver tranquilo.” (51) E como “Nunca sabemos para que funções estamos guardados.” (88), “Não podemos ser tão mudáveis.” (65), e, para a consecução desse desígnio, “A velha amizade, o melhor caminho”. (64)
5. Outra característica que ressalta à vista, da leitura desta obra, é o seu pendor moralizante ou pedagógico, sempre orientado para a positividade da vida. O narrador começa por afirmar: “A dúvida marcou-me.” (17) E acrescenta: “Tem de haver razão forte para se continuar na mentira.” (17) A importância destas sentenças prende-se com a filosofia de vida que podem dar ao leitor, auxiliando a sua autognose e o conhecimento do mundo em que vive. Na página 28, encontramos: “Tem cada homem seus caprichos; e, se pudermos, não sejamos infelizes.” Aliás, a procura da felicidade é o ideal de todo o ser humano. A felicidade associada à tranquilidade e à paz de espírito auxiliam a caminhada terrena, como lemos nesta passagem: “É injusto não viver tranquilo.” (51) E como “Nunca sabemos para que funções estamos guardados.” (88), “Não podemos ser tão mudáveis.” (65), e, para a consecução desse desígnio, “A velha amizade, o melhor caminho”. (64)
Noutros momentos regista-se a desilusão do
autor com a postura e a mentalidade dos seus concidadãos, que tendem a
valorizar o que é estranho: “É prática antiquíssima ir buscar fora o que não há
dentro.” (36) Tudo isto são consequências da liberdade em que vivemos e que
deve ser continuamente repensada e defendida: “Tê-la-íamos, à liberdade, sem
tantas imposições?” (57) Encontram-se, ainda, conselhos relacionados com os
livros, isto é, o alimento do espírito: “O amor vai bem na falta de livros.
Cresce em prazer.” (67); e, também, “Onde falta pão faltará livro.” (88)
Para
concluir, arrolo: “É muito antiga esta miséria portuguesa de não saber dar
lugar às virtudes, nem engradecer honrosos pensamentos, antes acanhá-los em
modas, e desprezá-los, contentando-se da glória de seus passados.” (167) Esta
afirmação em jeito de desabafo, ao estilo de Saramago, enfatiza a realidade
portuguesa, tanto passada como presente, visto que somos tão eficazes a
reconhecer e a louvar os de fora como a rebaixar os de dentro. Só deste modo se
pode compreender o desabafo do narrador: “A vida é triste; nem sermos bons nos
alegra por dentro.” (185)
6.
É um lugar-comum afirmar que o escritor escreve para o presente, embora o tema,
a ação do romance verse sobre o passado ou o futuro. O mesmo se infere das
palavras de Umberto Eco: “Haverá algum escritor que escreva apenas para as
gerações futuras? Não, nem pode sequer afirmá-lo porque, como não é
Nostradamus, só pode conceber os leitores futuros a partir do modelo daquilo
que sabe dos contemporâneos.” [Eco, 1984: 41]
Ora,
com este romance, Ernesto Rodrigues quer filar a mente dos seus contemporâneos
e auxiliá-los na sua via-sacra terrena, como vimos no apartado anterior, para
que os mesmos se tornem cidadãos mais cônscios, conscientes dos seus direitos e
deveres. Desta forma, o leitor não estranhará o facto de se criticar, sempre
com ironia, predicado do autor, o aproveitamento que as pessoas fazem da vida
nos dias de hoje, que jogam golfe e desperdiçam o tempo nestas e noutras
distrações mundanas, em vez de se dedicarem a causas mais nobres e que deem
sentido à existência: “Além do termalismo, estes metem bolas em buracos verdes
e disputam-se canoas, com afogamentos à mistura. É uma forma de passar a
vida.” (52, sublinhado meu) Note-se o verbo passar, que me parece ser sinónimo de gastar/perder a vida, ao invés
de a ganhar, salvando-se a si e ao próximo.
Outro
exemplo de que o escritor está preocupado com o presente da escrita pode ver-se
na referência que faz às lutas intestinas entre os membros da Igreja, que, pelo
poder, tudo realizam até matar e abandonar quem lhes possa fazer frente. “O
provincial, setentão, conquistara o lugar a troco de subornos. Leiloaram almas,
uma a uma, e, bom, em cinquenta anos de nenhuma oração rezada de cabo a rabo,
vira desertar uns para o Céu, outros para o século, chantageando restantes. Sem
amigos. O que esperava? Fazer-se cortesão. Cuidar imagem. Subir ao céu
possível.” (78) Isto se poderia dizer, sem trocar vírgula, da política
portuguesa atual, como o leitor, facilmente, deduzirá. Nem eu concebo retrato
mais sagaz e acabado da sociedade contemporânea. A denúncia e a condenação da
homossexualidade e dos abusos execráveis pelos membros da Igreja, que
infelizmente estão na ordem do dia, encontram-se forjadas nestas linhas: “O
adjunto concedia-lhe favores carnais. «Carne de sua carne», e riam.” (79) A
intemporal aliança e cumplicidade entre a política e religião é aflorada em
várias passagens; cito esta, a título de exemplo: “fosse um mártir da fé ou
cativo por razões de Estado. Fé e política irmanavam-se.” (134,5) A
administração da justiça e o comportamento dos magistrados davam/dão mau
exemplo ao estrangeiro, repercutindo-se esse facto, de forma negativa, nas
relações de Portugal com outros países: “Disto se segue que muitos dos nossos
infelizes compatriotas, mareantes e mercadores, entre aqueles e outros povos,
sofrem ofensas por falta de cautela dos magistrados deste reino, cuja prudência
por modo algum atende aos negócios externos.” (201)
Contudo,
esta aguarela portuguesa só fica completa com as tintas da ignorância e da
desinformação, porque o saber é encarado como um perigo para quem governa, que
não gosta de ver questionado o seu poder discricionário. Esta postura
remete-nos para as palavras, sempre atuais, de D. Miguel, na obra Felizmente Há Luar!, de Luís Sttau
Monteiro: “Sonho com um Portugal próspero e feliz, com um povo simples, bom e
confiante, que viva lavrando e defendendo a terra, com os olhos postos no
Senhor. […] Não concebo a vida, Excelências desde que o taberneiro da esquina
possa discutir a opinião d’el-rei, nem me seria possível viver desde que a
minha opinião valesse tanto como a de um arruaceiro.”[5]
O tríptico completa-se com as cores do
silenciamento e da uniformização, isto é, do pensamento único, ou melhor, da
rejeição do mesmo, sendo preferível seguir as ideias do “chefe” de forma
acéfala, muito em voga na atualidade. Tal como lemos no romance: “Tudo se faz
para que um homem não duvide. A pensar no bem de quem?” (134); “O latim é útil,
se traz o silêncio dos ignorantes e a mastigação corre de boca em boca
fechada.” (107, sublinhado meu)
A
terminar esta parte, apresento, à guisa de conclusão, este excerto que
sintetiza o pensamento do autor sobre o assunto, que corroboro: “Nós somos
criação divina, não criadores. Partes de uma obra que nos pede louvor, sem a
interrogar. Viver rotinas educa-nos a acção e desbota as cores fabulosas da
imaginação, que não é ofício próprio de quem reza para o mesmo lado.” (162)
7.
A defesa da língua Portuguesa é uma questão que atravessa todo o romance e o seu
elogio ou ataque é colocado nos lábios de vários personagens. Assim,
encontramos várias posições, desde logo, a de Fernão de Oliveira, que a sustentava
abnegadamente, em pleno tribunal da Inquisição, combatendo a posição desta, que
defendia a ideia de que “a nossa língua é um empecilho; maior, só mesmo quem a
mastiga.” (181) Perante esta tese, é impossível não pensar nos ataques que, de
forma mais ou menos velada, se fazem, no presente, à língua de Camões. Lembro,
ainda, o grande enfoque que se tem dado ao Inglês nos últimos anos, mais
parecendo que basta sermos proficientes nessa língua. Ouçamos, de novo, em
jeito de reflexão final, o autor: “Eu juraria que quem folga de ouvir língua
estrangeira na sua terra não é amigo de sua gente, nem conforme à música
natural dela.” (180)
Outra
agressão, em minha opinião, que deixou marcas insanáveis na Língua Portuguesa,
aconteceu com o último acordo ortográfico, agora em vigor, e no pouco cuidado
que os teóricos manifestaram perante as sensibilidades do idioma pátrio. Esta
atitude parece-me mais consentânea com a da Inquisição, referida antes. Talvez
seja por essa ordem de razões que o autor Ernesto Rodrigues não segue a nova
ortografia.
Saliente-se,
ainda, o interesse e a valorização das letras pelos cidadãos, pois os nobres da
época deixaram de convidar João de Barros por este não os citar nas suas Décadas. (cf. 191, 2) O assunto não pode sem mais atual, uma vez que os
elogios, por norma, se fazem por interesse e não por mérito. Este episódio
traz-nos à memória os decassílabos do canto V, estância 97, d’Os Lusíadas, “Sem vergonha o não digo:
que a razão / De algum não ser por versos excelente / É não se ver prezado o
verso e a rima, / Porque quem não sabe arte, não na estima.”[6]
Na
senda desta inquietação encontramos este exemplo: “Fernando contou de Júlio César,
que, embora clemente, despediu «um legado consular, por lhe escrever em uma
carta um icsi por epsi».” (202) De seguida, desabafa: “E agora tem-se tão pouco
respeito ao bom ou ao mau escrever…” (202) Creio que, se o leitor encontrasse
estas palavras descontextualizadas, não teria dificuldade em atribuí-las ao
presente, tal é a sua atualidade. Foi por estas e outras semelhantes atitudes
que o protagonista da obra padeceu, como se depreende da leitura, em dois
momentos, os suplícios do Santo Ofício, sendo vítima da inveja, da religião e do
tempo, que o odiavam pelas suas ideias vanguardistas para a época.
Apresento
um outro exemplo que ilustra o pioneirismo do gramático Fernão de Oliveira, no
qual defende a ideia de se escrever como soa (cf. 194). Esta proposição é, hoje, a pedra de toque da linguística
moderna e do novo acordo ortográfico. Por último, refiro esta citação:
“alimentava-se de pão e tinta.” (216) ‒ confirmando a grande afeição que Fernão
de Oliveira/Ernesto Rodrigues dedicam à Língua Portuguesa.
8.
A peregrinação terrestre sempre esteve associada ao sacrifício e ao cumprimento
de regras e preceitos. Desde o fardo bíblico ‒ “comerás o pão com o suor do teu
rosto” (Gen. 3,19) ‒ até aos nossos dias, a vida terrena é feita de trabalhos e
canseiras que só podem ser suavizados pela disciplina e pelas regras, estando o
ser humano em constante devir.
Assim,
o homem é ajudado pela disciplina e pelos ensinamentos que adquire sentado à
mesa de trabalho, imitando São Jerónimo: “onde erguera estante breve para
imitar São Jerónimo.” (123) Conclui-se, deste modo, que o labor intelectual é
austero, duro e sem distrações supérfluas.
No
capítulo “Final”, verificamos que o homem é transformado pela caminhada:
“Olhando para trás, estes dias são eternidade, e o que vejo está um pouco
antes, na juventude feita dúvida, naqueles olhos que não louvei bastante,
quando se entrefechavam no supremo prazer que só o amor admite.” (133) Estas
palavras podem remeter o leitor para os versos “caminhante não há caminho
faz-se caminho ao andar”, de António Machado. No entanto, o percurso cultural e
moral do homem é atribulado e feito de dúvida e de conhecimento: “Eu duvidava,
não de Deus, ainda” (48) Nesse itinerário, o homem dispõe da ajuda da mulher que
lhe prepara a fuga para o levar para longe e amá-lo, sem intrigas, invejas (63)
e longe dos enredos civis e religiosos. (64) A mulher, ou melhor, o
cristo-mulher inspirado na figura bíblica de Judite, não é mais do que um
instrumento da justiça divina para o bem e para o mal. (134)
A caminhada é árdua, mas o homem/narrador não
se dá por vencido; “Eu estive lá. Saí derrotado, mas não vencido.” (154) Creio
que estas palavras partilham da filosofia de vida do velho Santiago de O Velho e o Mar de Ernest Hemingway, que
afirma: “Um homem pode ser destruído, mas não derrotado.”[7] O
narrador/autor, para não claudicar, exercitava uma disciplina férrea que o subjugava:
“A disciplina custava-lhe, como a todos nós.” (162) Próximo do fim declara, num
tom mais intimista e até confessional, que amou e que nunca prejudicou
terceiros, e, por isso, segue em paz com a sensação de dever cumprido, embora
se queixe da indiferença de que é difícil libertarmo-nos: “Vou pacificado,
mártir ou santo de circunstância. Cada um dirá de mim parte dos seus receios.”
(140)
Termino
esta proposta de leitura convocando, em minha defesa, as palavras de Eduardo
Lourenço: “O crítico é o leitor que se crê autorizado a decidir por imaginar
ter descoberto os critérios, os pontos de referência, o sistema capazes de
introduzir uma ordem no caos da criação.”[8]
Nem
outro foi o meu propósito, sempre norteado pela sentença de Sá de Miranda:
“Quantos os ledores, tantas as sentenças.”
[1] GENETTE, Gerard, Paratexts:
Thresholds of Interpretation, Cambridge University Press, 1997.
[2] ECO, Umberto,
O Nome da Rosa, Difel, Lisboa, 1980.
[3]
Refiro o exemplo do parecer
de Os Lusíadas, que poderá ter
funcionado como modelo para o autor, visto que é o mesmo frei (Bartolomeu
Ferreira) que assina os dois “documentos”.
[4]
ECO, Umberto, Porquê «O Nome da Rosa»,
Difel, Lisboa, 1984. Na página 35 desta obra, podemos ler: “Só me apercebi
disso dois anos mais tarde, justamente ao tentar encontrar uma explicação para
o facto de o livro também ser lido por pessoas que não podem naturalmente
gostar de livros tão «cultos».”
[5]
MONTEIRO, Luís de Sttau, Felizmente Há Luar!, Areal Editores,
1999, pág. 69.
[6] Camões, Os Lusíadas, Leitura, Prefácio e Notas de Álvaro Júlio da Costa
Pimpão. Apresentação de Aníbal Pinto de Castro. ICALP, Ministério da Educação,
Lisboa, 1989, pág. 147.
[7] HEMINGWAY, Ernest, O Velho e o Mar, Tradução de Jorge de
Sena, Livros do Brasil, Lisboa, S. d., P.109.
[8] LOURENÇO, Eduardo, O Canto do Signo Existência e Literatura,
Editorial Presença, Lisboa, 1994, P. 21.
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