sábado, 12 de abril de 2014

Gente do Norte


Gente do Norte ou A História de Vila Rica (1977), de Leonel Brito, é uma docuficção em renovada sintaxe, que faz deste filme pequena obra-prima em menos de uma hora.
Na linha de experiências de Manoel de Oliveira ou João César Monteiro, o pós-Abril trouxe um interesse crescente pelas manifestações populares (cultura intersomática ou social) maioritariamente centradas no Alentejo e em Trás-os-Montes, bem como por casos de cooperativa, de pequena e grande empresa ou fábrica, em que pulsava o voto de uma democracia alargada.
No exemplo transmontano, tínhamos Oliveira e co-realizadores em O Acto da Primavera (1962), seguindo-se Alfredo Tropa, Pedro Só (1971), Festa, Trabalho e Pão em Grijó de Parada (1973), de Manuel Costa e Silva, e Falamos de Rio de Onor (1974), de António Campos. Sucederam Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro, Máscaras (1976), de Noémia Delgado, e Argozelo ‒ À Procura dos Restos das Comunidades Judaicas (1977), de Fernando Matos Silva.
Ora, neste ano, uma nova cinematografia emerge com Leonel Brito: não é só o trabalho de campo, de décadas, que vultos eminentes da filologia e das ciências sociais já tinham operado na região, acrescidos de musicólogos ‒ que o mesmo realizador segue em Encomendação das Almas (1979), onde também não falta o inquérito; nem tão-só um esboço de ficção, a caucionar o folclore, embora pequenas histórias, geralmente dramáticas, se encaixem na diegese. É, a par disso, um lento olhar picado do alto da serra, único a abarcar a grandeza de uma paisagem, rude e tirânica («Entra nos olhos e não sai mais», dizia Torga, no Diário XIII, que só essa tirania aceitava), da qual se desce ao indivíduo comum, para, lenta, a focalização abrir à comunidade – e, nessa alternância, contar-se a história económica, social, religiosa e política de Torre de Moncorvo, ‘vila rica’ de minério e regra legionária à sombra do templo, agora afrontada por anseios legítimos do retornado, emigrante, camponês, asilado, estudante.
Se o sociológico reforça uma etnologia que, a mais das vezes, se quedava na descrição, a novidade está em que, nesse alternar de paisagem física e humana (e, dentro daquela, entre uma grandiosidade e a típica casa decadente; e, dentro desta, entre sujeito e grupo), se abisma uma narrativa, circulando entre carpires na igreja e passagem do féretro na praça, com cena final do comboio ironicamente partido para segunda morte ou fim da linha, enquanto não chega terceira (prenunciada no casario da barragem do Pocinho), quando a beleza da Vilariça, decisiva no alardo de D. João I, ficar submersa por outra barragem. A praça, entre indiferente e expectante, pode ser a última esperança de sobrevida; percebe-se uma estratificação social; a menina ceguinha, suas rezas e vinho fino, são de um tempo revoluto; quem tem unhas toca guitarra, mas a desertificação é inelutável, mau grado a iniciativa de retornados ou emigrantes. O risco do jogo em feira ou taberna é improdutivo; as minas são, regularmente, notícia de futuro. Este filme ‒ no que estuda, documenta, deixa de nostalgia ‒ torna-se, sobretudo, um desafio…
…Também narrativo, cuja sintaxe ou montagem importa relevar. Há um texto (excelente, de Rogério Rodrigues; neutramente lido, para melhor sobressair a melopeia da frase, assente em discretas repetições) que vai a par ‒ como a vida vai a par do baptismo e do casamento, da festa e do baile, da igreja e da feira, do rio e da linha do Sabor, acontecendo, em cada momento desses, um sobressalto. Este dá-se, ainda, na mudança de planos (e, nestes, quem percebe logo vir aí um açude vertendo-se em catarata?) ‒ numa sequência de quem conhece o seu chão ‒, na batida musical de José Mário Branco, nos depoimentos bem gravados, quando o som era um bico d’obra no filme português… O cenário sai cumulado na fotografia de Elso Roque, cujo esplendor é via real para uma obra-prima. 


[Nota: Vimos este filme, ontem, 11 de Abril, na Cinemateca, ao lado de Leonel Brito.]           

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