segunda-feira, 14 de junho de 2021

Três livros na RTP 1

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Perseu

 

Evoquei, já, a importância de dois livros no meu despertar para a literatura: Narrativas e Lendas da Antiga Grécia (1956), de Nathaniel Hawthorne, e Coração, de Edmondo De Amicis. Recebi-os de uma prima, em 1961, tinha eu cinco anos, quando começava a ler. No limiar da tese de doutoramento, salientei Cuore, mas A Wonder Book perseguia-me. Assim, quase sessenta anos depois, pego nessa tradução (que há muito mandei encadernar, e não doei, com outros oito mil volumes), da qual sai, a abrir, “A cabeça da górgona”. Não me recordava disto, ao encadear 14 sonetos sobre Perseu, que dá título ao recente livro de poemas (Fafe: Editora Labirinto, 65 páginas). Mas é certo que, num escaninho da memória, esse herói me acompanhou durante décadas. Em ficção e estudos sobre a crónica, eu já aproveitara alguns feitos de Zeus. Terei acordado o meu herói à leitura, nos 25 anos, de André Bonnard, Les Dieux de la Grèce, tão extraordinária era a história de Perseu, com tanto de Bíblia como de Camilo Castelo Branco, e remissão para Édipo, mas sorte diferente. Retorna em 1992, pois o segundo capítulo de Mitologia Clássica. Guia Ilustrado, de A. R. Hope Moncrieff, trata de Perseu, nas cores de Ticiano e E. Burne-Jones. A Editora Labirinto dá na capa Perseu com a Cabeça da Medusa, de Antonio Canova, um neoclassicismo sereno que simplifica igual título do clássico Benvenuto Cellini, longe da imagem terrífica da górgona. A história é simples: o rei de Argos ouve de oráculo que um descendente vai assassiná-lo. Encerra a filha, guardas em volta de entrada cuja chave traz consigo. Zeus metamorfoseia-se em chuva de ouro e gera criança. Respeitoso do deus, o rei poupa filha e neto, que lança em barca frágil. Salva-os pescador, irmão de rei que, autoritário, sonha desposar aquela. Na tensão entre irmãos (já se adivinha qual ganha), e para afastar Perseu de uma decisão desfavorável, confia-lhe missão impossível: matar Medusa, cujo olhar petrifica mortais. Ajudado por Hermes e Atena, essa é só a primeira aventura, com manhas e pormenores que não descrevo. Mas a cabeça sabiamente cortada vai servir para acabar com a raça do rei mau e salvar a mãe, entretanto refugiada no templo de Atena. A segunda aventura é salvar Andrómeda de um monstro, com ela casar e subir ao céu. Acontecem outras, mas corramos ao final: durante uns jogos, falha um lançamento de disco e mata, involuntariamente, o avô, cumprindo-se oráculo. Recusa o trono de Argos, governa Tirinto (ou Tirinte) e funda Micenas. Persée é uma entrada do Dictionnaire des Symboles, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, que não acolhe muitos outros heróis, mas falha ao curar da «complexité de la relation père- -fils, fils-père, existant en tout homme». Ora, Perseu não tem problemas com Zeus pai, nem com o avô, cuja fatalidade é de outra ordem. E vencer, sobre um Pégaso alado, a Medusa – «image excessive de la culpabilité –, não significa vencer uma culpabilidade própria, mas, sim, «acquérir le pouvoir de se regarder soi-même sans défomation». Curar de «vanité» e de «ses propres monstruosités» (que não podemos extrair da vitória sobre o monstro desejoso de Andrómeda) sobre que Perseu triunfou é adulterar o mito de alguém esforçado, que nem o destino atropela (como se deu com Édipo), já recusando o fácil (Argos), já erguendo cidade do nada (Micenas). Eis a narrativa de um amadurecimento, sobre que os versos também evoluem. Outras considerações roubariam ao leitor o gozo de pequenas descobertas. Valha dizer que os sonetos deste livro (e só um texto não é soneto), conjugados com a variedade da penúltima selecção – Do Movimento Operário e Outras Viagens (2013) – completam a imagem que me faço da poesia, subida, afinal, das brumas da infância.


PERSEU, DE ERNESTO RODRIGUES: POESIA, AMOR E MITO

 

De Ernesto Rodrigues, veio a lume a obra poética que faltava na lírica portuguesa de hoje – Perseu. Digo que nos faltava ao constatar que esta poesia rompe todos os padrões que possamos conhecer, oriundos que sejam dos clássicos (antigos ou renascentistas), dos românticos, dos modernistas ou de quaisquer outros, que dos contemporâneos é o poeta seu representante maior. Motivado por Perseu, titã da mitologia grega, filho de Zeus e da mortal Danae, e inspirado por uma ninfa tágide, tem o mérito de conjugar, neste poemário, a cultura grega da Antiguidade com a poesia lusa dos tempos hodiernos. Há um primeiro capítulo metapoético – Da poesia. Primeiro porque os dois poemas iniciais, quase desgarrados (Sílabas e Caos) não formam tema algum e serão prolegómenos dos tratados que preenchem a obra e prenúncio do estilo rebelde que os vai marcar. Em Ernesto Rodrigues, a poesia acontece “Quando, por Março, erro da cidade / aos campos, silabando vida, bom / dia às aves, ao rumor de ser, / de súbito, no verde, como nunca / vi, amarelo-seda vem até /meus dedos…”. Poesia que está imanente na vida, na natureza, no ser… e que se consubstancia, basicamente, em sonetos e nos versos decassilábicos que constituem a sua essência e nos mesmos decassílabos de outras formas poéticas. Poderemos afirmar que é nestes versos que reside a força de sentir e expressar a natureza bela. Natureza, no sentido mais vasto, total, entenda-se, a humana e a imaterial, os campos, os rios, o mar, a arte e os sentidos. Natureza das coisas que nos fazem viver e nos preenchem a vida e que dela rememoramos, mais que tudo, a beleza: “Beleza – eu não sei como dizê-la, / tão jovem é, tão grácil, que nem Vénus…”. A beleza está na juventude e esta permanece eterna nos deuses, sendo ambas, a juventude e a beleza, a sua condição essencial (deixando de parte os seus pecados, considerando que os deuses foram feitos à imagem e semelhança dos homens). Depois, há a beleza das palavras ditas por sentidas, e nisto reside a essência da obra, ainda que, por vezes, inatingível (para os mais desatentos). E por isso é poesia, na qual, assim como em uma qualquer pintura ou em uma qualquer obra de arte, podemos ler o que mais nos impressiona, discorrer e ler e descobrir o que nem o próprio poeta em tal teria pensado. Se a poesia é a linguagem da paixão, viva e animada, escrita sob norma pré-estabelecida ou livre, regra geral, Ernesto Rodrigues optou pelo soneto e cumpre a norma para esta forma poética. À sua maneira, com recurso às liberdades poéticas (violações da norma?) como é timbre de um poeta rebelde. Não obstante, o decassílabo é intocável e é cumprido com rigor, que neste âmbito a liberdade foi suspensa. De liberdades continuou a usar o poeta na translineação em final de um verso para o seguinte. Mantendo-se o decassílabo, a rima e a acentuação. Senão veja- -se o poema IV de “Do amor incompleto”: “Sentes? Há um perfume no meu corpo, / que desce madrugada. Redivivo / poema, irei logo onde for pos- / sível para de novo estar contigo”. Em matéria de fuga à norma, constata-se um impensável e inédito desafio ao leitor nos últimos dois sonetos da obra: a translineação une o XIII ao XIV, sendo que o primeiro se apresenta violador da norma (será soneto sem a rima adequada?) e o segundo rigorosamente respeitador do modo parnasiano. Contudo, é neste duplo soneto que assenta a conclusão – a salvação de Perseu, que coragem não lhe falta, perante os perigos maiores que residem ofuscados pela rara / beleza da Medusa. Liberdades poéticas. O amor é, para qualquer poeta, um tema incontornável. Porém, em Perseu, distingue-se o “amor” do “amor incompleto”. Bizantinices ou subtilezas de poeta-filósofo? Nem uma nem outra destas propostas de justificação se podem aqui adequar. Obviamente, a resposta perpassa pela linguagem da paixão verdadeiramente vivida, a que chamamos poesia do sentimento amoroso: “Há muito tempo foi; resta-me só / a cor do teu sorriso; nem sequer / a pele nua, bela, que beber / bebo aqui. Quis-te minha: nem lazer, nem sofrimento. Dura foste. Oh, / se a terra não soubesse amar o pó…”. Por isso, já nem a beleza desperta sentimento daquilo que sentiu; a relíquia que foi assemelha-se agora a uma antiga nevrose. E então, só o adeus pode confortar o poeta. Mas, por outro lado, no tema “Do amor”, as quadras e tercetos decassílabos bem estruturados segundo a norma do soneto, ou em elaborada poesia de dísticos com a mesma métrica (porque se encaixam nas mesmas estrofes), exprimem a natureza bela do amor vivido, amor supremo pelo qual até a vida se pode entregar: “Bebido teu nocturno beijo, / vou dizer às flores como sou feliz”. Ernesto Rodrigues conseguiu, neste capítulo, subverter a ideia de que o poeta tem de ser necessariamente sofredor. Não conseguiu fingir (porque sofrimento não tem aqui lugar), facto que configura, talvez, mais uma violação da norma: o poeta é feliz porque “fazer amor é supremo bem”. E aqui, neste soneto IX (será influência do canto IX de Os Lusíadas?) os versos respiram sensualidade, luxúria, fogo, felicidade. Em “Do amor” representa-se o belo em formas de felicidade completa. Para longe vai a ideia de poeta infeliz. Encerra a obra o tema cujo nome lhe dá o título – Perseu. Herói da mitologia grega, era uma espécie de semideus, por ser filho de Zeus e de Dánae, neto de Acrísio, rei de Argos. O poeta logra unir dois factos da nossa cultura ocidental, muito afastados no tempo e no conteúdo: o mito de Perseu da cultura helénica e a mais avançada poesia lusófona. Para lograr este desiderato, ele próprio se faz “narrador participante”, como se pode constatar logo no poema I do capítulo: “Busquei em terra, mar, fogo, ar, cheiro / de parca, mas ninguém a viu. Derroto / a sorte, que persegue fracos, quando / outro destino urdo – de que sou”. A mitologia reza: um oráculo não-identificado previu que um neto do rei Acrísio o haveria de matar. Por isso, mandou lançar ao mar mãe e filho (Perseu), dentro de uma caixa a servir de barco: “Cauteloso (não sei inda / o que isso é) face ao pai de / minha mãe, que não gosta de mim…”. O poeta identifica-se com Perseu que recebeu ordem do amante de Dánae, sua mãe, para cortar a cabeça de Medusa. Elimina seus medos, ou por outra, “tira do medo forças” e enfrenta a beleza da ninfa e seus longos cabelos, vendo-a apenas por meio de instrumentos cedidos pelo deus Hermes (uma espada), por Plutão (uma bolsa e o elmo), por Atena (escudo bem polido) e pelas traiçoeiras ou amedrontadas górgonas (fazendo dele Pégaso com asas nos pés), e corta-lhe a cabeça. Regressou ao ponto de partida e entregou a cabeça de Medusa a Atena. O risco era tremendo: a deusa, como castigo pela entrega de Medusa, em amor, transformara os seus longos cabelos em serpentes e a terrível sina de petrificar quem a fixasse no seu olhar. Metaforicamente, o poeta reconhece que “perigos maiores / vivem os ofuscados pela rara / beleza da Medusa, cuja lisa / e longa cabeleira prende quantos / não olham ao ser, mas ao fingimento”. E assim encontrámos a simbologia do mito de Perseu, aliado ao de Medusa: o medo reside naqueles que penetram na essência profunda dos seres, desvalorizando a superficialidade das coisas vãs. O medo existe apenas na mente dos fracos: “Com cabeça, olhemos o céu, sem / falsas defesas… Ser tudo ou nada”. Segundo a lírica de Ernesto Rodrigues, eis o mito de Perseu.

António Pinelo Tiza

“A Terceira Margem” é o mais recente livro do escritor transmontano Ernesto Rodrigues

 O romance histórico parte das raízes transmontanas do autor, de Torre de Dona Chama, no concelho de Mirandela, e chega ao Brasil. Conta a história de uma família, ao longo de mais de 200 anos, que por coincidência tem o mesmo apelido do navegador Pedro Álvares Cabral.

“É uma história que começa quer em Lisboa, quer em Torre de Dona Chama, onde dois avós vão contar uma história em família. A história começa, em Torre de Dona Chama, onde o primeiro avô casou com Maria Cabral, que era da família descendente de Pedro Álvares Cabral”, contou o autor.

O oitavo romance do escritor leva o leitor ao cerne da abolição da escravatura e da pena de morte.

Um alerta ainda necessário nos dias de hoje.

Além da abolição da escravatura e da pena de morte, as marcas do colonialismo, as tensões sociais, momentos altos e figuras maiores da história são temas também abordados n’A Terceira Margem, livro de Ernesto Rodrigues, que foi lançado esta semana.

Escrito por Brigantia

Jornalista: 
Olga Telo Cordeiro

terça-feira, 8 de junho de 2021

Uma história em família

 A Terceira Margem

(Lisboa, Guerra & Paz, 2021)

 


Pedro Álvares Cabral (1956) nasceu no Rio de Janeiro, aonde regressa com a mãe centenária, no significativo 7 de Setembro de 2022, e quando se perfazem 266 anos de uma linhagem luso-brasileira contada em A Terceira Margem.

Ainda criança, trocou o Rio por Lisboa, levado pelo avô (1870-1966). Neste, desembocam as memórias da dinastia familiar – àquele transmitidas –, desde um juiz do crime (Lisboa, 1756-1852), cujo nome só tardiamente se revelará, e Pedro Álvares (Torre de Dona Chama, 1756-1822), lavrador, que deu à filha Maria Cabral (1782-1831) o apelido da esposa descendente do descobridor do Brasil.

O discurso começa em 1876, quando, acompanhado pelo escravo Congo, o avô do narrador, agora menino de seis anos, leva uma carta do pai, Francisco António (Rio de Janeiro, 1822-1888), a figura enigmática protestando contra a escravatura na redacção do Jornal do Commercio, na Rua do Ouvidor. Congo é comprado no dia seguinte e, durante 90 anos, interroga-se o portador se a carta não era anúncio de venda de escravo… Veremos como essa criança deu o salto para a terceira margem, a da dignidade, assente nas epígrafes do padre António Vieira – «Oh trato desumano, em que a mercancia são homens!» – e da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A segunda geração assenta no casapiano Pedro Álvares (Lisboa, 1782-Torre de Dona Chama, 1851), que deserta na Guerra das Laranjas (1801) e encontra guarida nesta vila, casando com Maria Cabral. Nasce Pedro Álvares Cabral (Torre de Dona Chama, 1802-Rio de Janeiro, 1876): com dez anos, o abade da terra, das relações daquele juiz, emprega-o em tipografia de Lisboa. Abade e juiz têm duas mancebas, mãe e filha, respectivamente: a vingança daquela será a tragédia desta, em que arrasta esse padre cura, o pai, um irmão desconhecido e sobrinho, entre outros, disseminando-se em intriga camiliana…

Espíritos liberais, juiz e jovem tipógrafo fogem do reino no dia dos mártires da Pátria (18-10-1817). Desembarcam no Rio na hora da coroação de D. João VI (6-2-1818), para, esquivando os festejos, terem o primeiro choque: um italiano vendia escravo acorrentado. O juiz não só o negoceia, como lhe encontra companheira e adquire sobrado para os quatro.

Com a independência, faz-se capitalista: adquire terras, liberta escravos e relaciona-se com o imperador D. Pedro II. Após visita a Santos Marrocos, emprega o afilhado na tipografia oficial. O jovem Pedro Álvares Cabral sofre na composição de anúncios que prolongam o esclavagismo. Apaixona-se, entretanto, por Iara Maria de Santa Teresa (Rio de Janeiro, 1802-1831), que lhe dá Maria Álvares Cabral (1822-1888), quando também nasce o amigo Congo, filho do primeiro casal liberto.

Mal na pele de português que a independência do país não fez brasileiro, enviuvando cedo, Pedro Álvares Cabral entrega a filha ao ex-juiz do crime, para acompanhar o ex-imperador D. Pedro I até França, onde conhece Garrett, Herculano, e integra os 7 500 bravos do Mindelo.  Dos Açores ao Porto liberal sucedem-se aventuras, logo descido a Lisboa, onde contacta outros intelectuais A. P. Lopes de Mendonça, António Rodrigues Sampaio, etc. , lutando pela abolição da pena de morte, na peugada de Herculano contra Castilho. Angustiado por não receber novas do Brasil, e mais pela notícia do crime que envolveu o pai e quem se descobriu irmã deste (1851), despede-se de Torre de Dona Chama e de Lisboa.   

Na chegada ao Rio, vê mal o casamento da filha, Maria Álvares Cabral, com o filho daquele italiano, Francesco Schiavo, ou Francisco António. Este, sempre ausente, representa a fina-flor esclavagista, revertendo as decisões do ex-juiz abolicionista – em cujo palacete de Botafogo se fez rei e senhor e afastando o sogro para o centro do Rio. Vê abolicionistas nos republicanos e alerta para golpes imaginados nas viagens europeias de D. Pedro II.

Contra o terror doméstico, Maria Álvares Cabral chama a si o filho e segura o primeiro casal de escravos, libertos desde 1818, mas que não vêem o filho Congo e perderam uma neta. Convida-os, mesmo, para uma récita teatral, onde debatem com um muito presente Machado de Assis, que já vem das relações tipográficas do pai. O convite para a peça machadiana celebrando Camões no 10 de Junho de 1880 desvela ao avô do narrador, com dez anos, quem era aquela personagem no Jornal do Commercio

O 13 de Maio de 1888 é libertação plena dos escravos e, também, do jovem agora com 18 anos, que reencontra Congo vingando-se do antigo patrão, sem oposição do filho; morre, entretanto, a mãe, e, seguindo os passos imperiais, vem gastar a fortuna na Europa.

Entre um encontro londrino com Jaime Batalha Reis, a Exposição Universal de Paris (1889), uns olhos que persegue até Budapeste, virá gerar em suposta filha da imperatriz Sissi outro Pedro Álvares Cabral (1890-1986), pai do narrador. Mas é o avô cronista que vive os desacertos políticos de Portugal, enquanto a esposa, afastando-se, denuncia atrocidades europeias. Segue-a o filho, com aventuras do coração que só percebemos na última página.

Aos dez anos, por morte do avô (1966), tem o narrador o essencial da história, que a mãe, Teresa Cristina (1922), enfim encontrada, vai completar. Regressam ao Rio natal para celebrar os duzentos anos de uma independência digna – de indivíduos não sujeitos, nem mercancia, e de país livre. É a terceira margem do Atlântico.

Pedro Álvares Cabral, narrador, fora já personagem no romance Torre de Dona Chama (1994). Cosmopolita, mas apreendendo o cheiro do discurso nordestino, avança, recua e conjuga os tempos, como vai das derivas da memória. Constrói-se uma diacronia na eleição de momentos fortes desde finais de Setecentos, em que intervêm figuras conhecidas com textos e falas próprias. O rigor da informação vai a par de sucessos inesperados.  Sentimo-nos em casa, como se as invasões francesas ou o Ultimatum inglês tivessem sido ontem. O sonho de um autor é tornar tudo próximo e reconhecível, para que o leitor faça parte da família. 


domingo, 16 de maio de 2021

A Terceira Margem

     Acaba de sair o meu oitavo romance, A Terceira Margem, Lisboa, Guerra & Paz, 2021, 192 páginas.

A Terceira Margem ficciona sete gerações de uma família luso-brasileira (com pozinhos de Europa Central) entre 1756 e 7 de Setembro de 2022, quando se comemora o bicentenário do Grito do Ipiranga. Nestes 266 anos, ergue-se dinastia com raízes no navegador Pedro Álvares Cabral e em desembargador na Casa da Suplicação centrada no avô (1870-1966) do narrador, em defesa da dignidade humana, margem que recusa a escravatura, a pena de morte, os aljubes do pensamento. Momentos altos e figuras maiores de aquém e além-Atlântico, com a presença especial de Machado de Assis, aproximam-nos de uma História comum que esta prosa singular também celebra.

sábado, 24 de abril de 2021

Teatro, arte da respiração

 

No ano em que me estreei em livro (Inconvencional, poesia, 1973), escrevi a primeira de onze peças, agora reunidas em Teatro (Lisboa, Edição do Autor, 2021, 572 páginas). Era o sonho de uma arte participada por todos, como se exigia para uma diferente respiração nacional, politicamente moribunda. A Pedra metaforizava a opressão desse tempo, na figura de polícia que vem prender jovem universitário rebelde, escrevendo peça com o mesmo título, enquanto pai emigrante sufoca, sem perspectivas de amanhã, sob o cinismo do regime.  Voto colectivo, homens, mulheres e crianças abrem esta «penetragédia» (seja, quase tragédia, nas soluções corais), transformando um regresso de funeral em manifestação de protesto, em cujos cartazes se lê «Queremos respirar!».

Longe de mim pensar que, 47 anos depois, iria escrever Pandemia, em que a respiração tudo suspende, dos abraços à liberdade. Nestas cem páginas entre camilianas e detectivescas, adensa-se cada psicologia, e não sei se deva realçar oportunismos, as relações intrafamiliares, a construção de uma amizade, a abnegação e o bem morrer. Em off, um narrador enquadra as cenas: imagino projecção no cenário de quanto vemos diariamente nos ecrãs.

Entre estas duas peças, não deixei de questionar outros avanços – na estrutura do Poder, tantas vezes cruel e dissoluto, em que incluo conflitos interpessoais –, também da dramaturgia. Assim, Faca no Sol (1974) debruça-se sobre a construção de uma sociedade sem escravos, em que se arrisque a esperança. Escrita no pós-25 de Abril, troca, no final, o hieratismo do tom pela discussão solta entre os actores (já não as personagens) e o público.

O Golpe (1975) desenvolve A Pedra, no que tem de guerrilha efectiva a um governo de Direita autoritária bajulada pela sua Direita extrema. Quem manda, afinal? O desafio da liberdade, ainda num impasse, como nesse Verão Quente de esquerdas totalitárias e satélites, é compensado por quadros delirantes, validando o à-vontade de encenador imaginoso.

Duas personagens (e um empregado pouco falador) protagonizam Jardim (1977), que já publicara como conto em A Flor e a Morte (1983). O diálogo é a forma suprema de respiração: sem diálogo, asfixiamos. Tento por esta via, desde sempre, uma ficção facilmente adaptável à cena, e mais quando sabemos da dificuldade nacional em ‘falar naturalmente’. Mas deixando, por agora, o risco de contaminação entre géneros, direi da surpresa em ler aí a guerra entre genes masculinos e femininos, e como, em cada um de nós, se disputam, algo que deveria acalmar quem supinamente ignora fundamentos da genética.

Vinte e um anos depois, voltei à nossa condição de mortais: Acidente (1998-2000) começa por ser uma conversa sobre a actualidade entre dois mortos na morgue, cujos gavetões abrem e fecham, a par de existências comentadas por vivos, assim misturando memórias. O absurdo está na vida, nos vícios ou síndromes privados, como divertidamente mostro em Delírio (2015). Cada pausa anuncia uma explosão do sentido. Além de um teatro parco de meios e agentes – e as minhas personagens são mais indicações do que nomes próprios, capazes de desdobramentos, se um encenador quiser seguir esse guião –, junte-se boa disposição, além de um pé no quotidiano que nos afecta.

Diferente das cinco que antecedem e seguem, O Divino (2002) narra os últimos momentos de Almeida Garrett. Há restos de um conflito conjugal, de amores fugidos, da amizade reatada com Alexandre Herculano, eu sei lá! Conheço tão bem este autor, que preferi olhar ao homem, do qual, por vezes, me julgo companheiro. Ele é o nosso primeiro intelectual, cosmopolita por excelência, que sabe vestir bem, unindo coragem e génio brincado. Dá nome a praças, e à mais central de Bragança, que, todavia, não nos lembra. Espoliado da pátria, soube, também soldado, recuperá-la.

A mais longa, Sábado (2012-2013), assenta neste dia de reflexão, véspera do voto. Como ganhar uma eleição contra sondagens e evidências? Deve ligar-se a Doença (2016-2017), inaugurada com longo comício, em que um decrépito Pai da Pátria sobrevive à custa de sósias. Do jornalismo venal a um atentado gratuito, vale tudo, neste pântano e seus miasmas. À atenção, pois, de leitores e eleitores. Outra forma de sobrevivência, cínica e abjecta, é propor uma Guerra Civil (2019). Nesta trilogia, com micro-histórias onde, a par da denúncia, não deixo de exaltar valores, está a violência do nosso tempo, manipulador, em que se respira menos do que julgamos.

Deve a arte, entretanto, opor-se a qualquer veio de tirania; dizê-lo claramente em palco, a bem da nossa saúde.